Endeath – O Outro Lado

              

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Dedico esta obra a meu

filho Harrison Brandão Nunes,

que apesar da distância, está

em meu coração e mente todos

os dias de minha vida.

 

 

 

 

              Texto Autor Endeath

 

1.

 

 

 

                              Em 2027, quando o mundo todo já tinha como idioma oficial o inglês, por causa da ameaça de novo bombardeio atômico pela Coréia do Norte, várias cidades espalhadas pelo mundo se protegeram dentro de redomas de impact glass (vidro de impacto). Este novo produto, apesar de mais resistente que qualquer outro da categoria, não impedia que a cidade fosse destruída em caso de ataque direto, porém, se a bomba caísse nas imediações, a cidade estaria protegida contra os seus efeitos. Anos antes, a Coréia havia entrado em uma corrida armamentista aparentemente sem propósitos diretos. Construiu ogivas, mas também comprou armas nucleares de outros países. Pressionada pelas outras nações, a ONU resolveu investigar e, após se certificar do diâmetro do problema, deu ultimato de desarmamento imediato ao país oriental. A Coréia respondeu com bombardeio no Norte da Europa, destruindo a sede das Nações Unidas e vários países das imediações. O dano era irreversível. A semente do mal havia sido jogada ao vento. O planeta entrou em comoção total. O presidente dos Estados unidos da América planejava uma maneira de atacar a Coréia do Norte, mas sabia que era impossível pegar a nação de surpresa, então, com pressa e vigor, começou a construir redomas em torno das principais cidades americanas para se proteger do contra-ataque. Não demorou para que outros países do mundo começassem a imitá-lo. Em setembro de 2028, finalmente, sem aviso prévio, o presidente dos Estados Unidos lançou seus mísseis contra o alvo, que revidou a ofensiva, liberando de uma só vez todo o seu poder bélico nuclear contra várias cidades no mundo inteiro. A Coréia do Norte e os países vizinhos a ela simplesmente desapareceram do globo terrestre. Infelizmente, todas as cidades do planeta que não possuíam proteção de redomas e que não foram atingidas diretamente, também foram destruídas. Somente oito anos após, as comunicações entre algumas cidades sobreviventes foram retomadas. Nossa história começa aqui.

 

- Não acredito... Não acredito... Consegui estabelecer contato pelo rádio. Venham ouvir isso, rápido.

 

                              Mais de quinze pessoas que se encontravam no refeitório correram para a sala de rádio, que ficava bem ali ao lado. Umas atropelando as outras, sem poder acreditar nas palavras de Zachary, o operador de rádio. Chegando lá, o afro-americano apontava, sorrindo, para um microfone, de onde puderam ouvir as palavras carregadas de sotaque, porém em inglês.

 

- Quem está aí? Por favor, responda. Pode dizer seu nome e de onde fala?

 

- Meu nome é Zachary e falo de Denver, no Colorado.

 

- Meu Deus... É a primeira cidade americana com a qual faço contato depois do cataclisma nuclear. Meu nome é Jean Pierre e sou francês, mas falo de uma redoma sul-africana. Como vocês estão por aí?

 

- Sobrevivendo, mas com dificuldade. Quantas redomas há na África do Sul?

 

- Somente três cúpulas sobreviveram ao ataque.

 

- Ao ataque dos inumanos?

 

- Como assim inumanos? Estou falando do grande ataque da Coréia. O que são inumanos?

 

- É como chamamos os que vivem na área de exposição, ou seja, fora da redoma.

 

- Do que você está falando? Ninguém sobrevive muito tempo na área afetada. Não há inumanos nem sobreviventes fora das cúpulas aqui na África. Não entendo como isso é possível.

 

- Nem nós, mas que eles estão lá fora, estão. De tempos em tempos, atacam uma das redomas, partindo o impact glass e expondo a todos à radiação. No começo eram poucos, mas agora estão se reproduzindo rapidamente e seus filhos também são imunes à radioatividade. Suas crias chegam à idade adulta com um ano de idade. São carniceiros malditos. Depois de romper a redoma, promovem uma carnificina, poupando somente algumas mulheres, que levam consigo para gerar mais inumanos. Eles as vestem com roupas especiais anti-radiação, mas ainda assim, após alguns anos elas morrem, por que de vez em quando tem de tirá-la, para fazer necessidades, para comer, e também para praticar sevícias com os malditos deformados.

 

- Por que vocês não os caçam, em vez de ser caçados por eles?

 

- Porque os desgraçados são superiores a nós em força e velocidade. Eles tem os sentidos mais aguçados que os nossos e possuem agilidade e reflexos sobre-humanos. Não somos páreos pra eles. Já sabíamos de sua existência, mas eles só atacavam humanos que faziam a travessia de uma redoma pra outra, protegidos por uniformes especiais anti-radiação. Depois que se organizaram, liderados por um inumano que chamamos de Death Crawler (Rastejador da Morte), passaram a atacar não só os viajantes, mas também as cidades protegidas. Tudo o que podemos fazer é aguardar nossa vez. Eles já destruíram quatro cidades americanas. Agora somos somente sete. Não há sinal de sobreviventes das redomas destruídas por eles. Os inumanos são verdadeiros animais carniceiros. Matam e devoram aqueles que um dia foram seus semelhantes. Eles não possuem nenhuma compaixão.

 

- Puxa vida... Lamento muito pelo que vocês tem passado aí nos EUA. Que sorte a nossa não termos nada parecido com esses inumanos por aqui.

 

- É, meu amigo francês... Porém, não conte vantagem ainda. Pelo que tenho ouvido por aqui, a intenção de Death Crawler não é parar na América. Os rumores dizem que ele odeia tanto os humanos que sua intenção é extinguir nossa raça. Seu objetivo é dizimar os seres humanos definitivamente, permitindo dessa maneira que a nova raça inumana domine o planeta. O líder dos malditos se auto-denomina a evolução da espécie.

 

                    Jean Pierre sentiu um calafrio percorrer a sua espinha. Death Crawler, antes do ataque nuclear, era um cientista brasileiro residente nos Estados unidos. Irônico saber que ele lutava para encontrar um antídoto contra os efeitos da bomba atômica nos seres humanos, permitindo desta maneira, que eles sobrevivessem na área contaminada, caso viesse realmente a acontecer uma tragédia nuclear. Em suas pesquisas, acabou por inventar uma combinação química que dizia ser uma espécie de vacina contra o envenenamento radioativo, então, injetou a solução em si mesmo e em todos os seus auxiliares. Os inumanos de hoje, são os pesquisadores de ontem. Antes que fosse possível repassar o soro pra população, o desastre ocorreu. Logo após, todos os que haviam assimilado o soro começaram a passar por mutações, até se tornarem os deformados de hoje. A vacina havia funcionado, mas com uma estranha reação. Os pesquisadores parecem ter enlouquecido, além de se tornar seres deformados e brutais. Após alguns anos se reproduzindo com mulheres sãs, formaram uma verdadeira horda de inumanos, não tão fortes quantos os originais, mas tão violentos e insaciáveis quanto estes. Dos dezessete cientistas a se injetar o soro, somente dez ainda viviam. Quatro morreram em combate nas redomas, um outro numa rixa entre eles mesmos e os dois últimos foram assassinados por seu líder, para servir como exemplo. Os inumanos chamam seus rivais de confinados e vêem duas únicas utilidades neles. Alimento e procriação.

 

                              Zachary já era especialista em rádio desde os tempos em que servia o exército americano antes do grande cataclisma e não foi difícil conseguir aquele emprego na cidade redoma de Denver. Sua patente era de cabo das forças especiais de Denver, mas ao contrário do tradicional uniforme do exército e cabelo reco, ele vestia joelheiras por cima da calça, jaqueta sem mangas por cima da blusa branca também sem mangas, mochila nas costas, onde o cabo de sua espada ninja ficava a mostra, duas tranças na barba e várias no cabelo, além de uma enorme pulseira ao estilo heavy metal no braço direito, sem falar de sua companheira inseparável... Sua pistola automática de estimação, sempre no coldre envolto na cintura. Estava nitidamente excitado por ter conseguido contato com uma redoma no continente africano. Deixou seus amigos conversando com Jean Pierre e foi informar seus superiores do ocorrido, mas não foi necessário ir muito longe porque assim que passou pela porta da sala de rádio avistou Doc entrando no refeitório para fazer um lanche. Doc, que era coronel das forças especiais de Denver o olhou surpreso pelo fato de não haver uma viva alma além de Zachary no refeitório, levando-se em consideração que era a mais freqüentada ala de todo o complexo.

 

- Onde estão todos?

 

                              Zachary sorriu e apontou pra porta da sala de rádio, mas não falou nada. Doc se aproximou e pôde ouvir o som estático da voz do francês no rádio. Ficou muito surpreso e tomou-o da mão de um soldado, passando a assumir a comunicação com Jean Pierre.

 

- Você pertence a que posto?

 

- Não sou militar, amigo. Sou um rádio amador civil.

 

                              Doc se virou para Zachary e lhe mandou ir imediatamente informar a situação sem precedentes ao comandante das forças especiais de Denver, o que ele tratou de fazer no mesmo instante. O comandante Foster era um homem sério, de semblante sofrido. Ele perdera seus cinco filhos e a esposa no dia em que a Coréia atacou, mas era a imagem da filha menor que não lhe saía da cabeça durante todo a trajeto do dia, semana após semana, mês após mês. A menina tinha apenas três anos de idade e era a paixão de sua vida. Ele estava longe de casa quando aconteceu. Fica imaginando a menina chamando por ele, pedindo por socorro. Fica se torturando, imaginando como deve ter sido o fim de cada filho, além da esposa. Teriam morrido imediatamente, ou tido uma morte lenta e dolorosa? Ele sabe que jamais saberá. Ele possui somente uma certeza... A de que eles não conseguiram sobreviver. Ao receber a notícia, nenhum músculo de seu rosto se alterou. Não houve nenhuma demonstração de emoção de sua parte. Ele, um homem de cinqüenta e cinco anos de idade, branco e de cabelos e bigodes muito grisalhos, se limitou a agradecer pela notícia, de maneira ríspida. Ao contrário do que Zachary imaginou, ele adentrou seus aposentos e fechou a porta. Como podia aquele homem, que comandava todo aquele poderoso complexo, se calar diante da informação de que após oito longos anos de tentativas frustradas, finalmente conseguiram firmar comunicação via rádio? Não era tarefa pra ele queimar seus neurônios tentando entender. Quando começou a retornar pelo corredor, a porta dos aposentos do comandante voltou a se abrir e ele chamou o cabo pelo nome.

 

- Faça-me um favor... Diga a Doc que eu o aguardo aqui para conversarmos a respeito do ocorrido.

 

- Sim senhor...

 

                              Zachary ficou imaginando o quanto estranho era aquele homem. Se pudesse saber pelo que ele havia passado, talvez o entendesse melhor. Menos de quinze minutos após, Doc bateu à porta do quarto de Foster, que atendeu prontamente.

 

- Entre, Doc.

 

- Como vai o senhor hoje, comandante?

 

- Por favor, Doc... Corte o “senhor”. Estamos sozinhos. Você é meu amigo e não precisamos dessas formalidades. Ao que você atribui o fato de termos restabelecido contato pelo rádio?

 

- Não faço idéia, Foster, mas o caso não se limita à redoma sul-africana. Há poucos minutos atrás recebemos uma avalanche de contatos de cidades do mundo todo. Algo de maravilhoso aconteceu aqui hoje. Isso não lhe traz uma pontada de esperança? Trocando idéias, podemos chegar a uma solução para nossos problemas.

 

- Eu duvido muito. Porém, quem sabe?

 

                              De repente, alguém bateu à porta pedindo a presença dos dois que lá dentro conversavam, e, pelo tom da voz, parecia ser algo muito sério. Com medo de ser um ataque inumano à redoma, Doc se levantou da cadeira onde estava sentado com um salto e, após receber a liberação do comandante, abriu a porta. Diante da entrada estava o capitão Gabriel, pálido.

 

- General... Coronel... Estabeleci contato com uma redoma no Brasil, numa cidade chamada Salvador, em um de nossos rádios.

 

- Até aí não vi nada demais. Antes de vir conversar com o comandante, já havíamos feito contato com Israel, Canadá, África do Sul, Bolívia e Austrália.

 

- Senhor, aposto que nenhuma destas nações lhe revelou algo que acabo de ser informado.

 

- É...? E o que seria?

 

- Tive uma boa conversa com este brasileiro. Falamos sobre o que acontecia por aqui e ele ficou chocado ao saber dos inumanos, e foi então que me lembrei que o líder dos deformados é também brasileiro. Eu disse isto a ele e falei também o nome verdadeiro de Death Crawler, assim que me recordei. Ele levou um susto, pois reconheceu o nome dele imediatamente.

 

- E o que há de espantoso nisso? Todos os brasileiros conheciam muito bem Alberto Escarpa. Ele era tido como herói no Brasil. Um gênio famoso no país natal dele.

 

- Eu vou concluir... Ele conheceu o cientista pessoalmente. Disse ser amigo da esposa de Death Crawler. Ele disse também que se havia algo que Alberto amava ainda mais que a ciência, era ela.

 

- Continue.

 

- Ele falou também que esteve somente uma vez com ela depois do cataclisma, na cidade redoma do Rio de Janeiro, onde morava até o ano passado.

 

- Você tem toda a minha atenção, capitão.

 

- Ela o teria dito que no dia do grande ataque, na parte da manhã, após Alberto sair de casa para ir trabalhar, pegou um vôo para o Rio de Janeiro em segredo, para ver a mãe que tinha acabado de ter um AVC e estava internada em estado grave numa clínica da região. Esta atitude acabou, por puro acaso, salvando sua vida, pois a casa em que morava com Alberto ficava bem aqui na redoma vizinha, em Boulder, que sofreu um ataque direto. Uma bomba caiu sobre a cidade, destruindo-a por completo. A mulher, que se chama Helena, não sabia dizer se o marido havia sobrevivido, mas tenho certeza que ele acha que ela está morta.

 

- Tudo bem, capitão... É uma história realmente fantástica.

 

- Coronel, o senhor não consegue enxergar a vantagem que temos nas mãos neste momento? Se pudermos localizar esta mulher e trazê-la pra cá, duvido que aquele louco destrua nossa redoma.

 

- Será? Você mesmo chamou ele de louco. Louco é o que ele é. O que esperar de alguém assim?

 

- Coronel... A conversa não termina aqui. Helena viajou às escondidas porque estava grávida, e este bebê era tudo o que Alberto mais desejava na vida. Por anos eles haviam tentado, até que ela engravidou. Ele, marido apaixonado e super-protetor, a proibiu de viajar, com medo de que algo lhe acontecesse ou a criança que ela trazia dentro de si. A criança nasceu no Brasil, protegida pela redoma da cidade do Rio de Janeiro. Ele nem sequer desconfia que sua amada mulher está viva e que tem um filho.

 

- Gabriel... Quero todos os nossos rádios ocupados na tentativa de estabelecer contato com a cidade redoma do Rio de Janeiro. Quero esta mulher localizada o quanto antes. Parabéns, capitão. Belo trabalho.

 

                              Antes de ir, o comandante Foster pegou Gabriel pelo braço e disse-lhe asperamente.

 

- Capitão... Somente os nossos homens incumbidos da tarefa de localizar a mulher pelo rádio deverão saber o que está se passando. Para os demais, isto é totalmente confidencial. Se a notícia se espalhar, daqui a pouco todas as cidades redomas nos arredores vão querer Helena, e farão qualquer coisa para tê-la.

 

                              Dois dias se passaram e nenhum contato foi feito com a cidade em questão, até que no terceiro dia, o sargento Mathias trouxe as novas e boas notícias à sala do comando.

 

- Senhor... Estou na linha com um sujeito do Rio de Janeiro.

 

                              Todos os militares que estavam na sala de comando saltaram de suas posições e correram à sala de rádio. Lá, o coronel estabeleceu contato com um homem que se apresentou como Luís.

 

- Olá Luís... Como vão vocês, amigos brasileiros do Rio de Janeiro?

 

- Por aqui, assim como pelo mundo afora, as coisas não vão bem como em dias passados. Mas isso eu não preciso lhe dizer. Todos estamos a par de nossa situação atual. O mundo como conhecíamos, não existe mais. Estamos obrigados a viver com o pouco dele que nos restou e devemos e agradecemos a Deus por isso. Afinal de contas, podia ter sido pior.

 

- Luís... Estamos com certa urgência de encontrar uma mulher que vive aí. Seu nome é Helena Escarpa. Ela é esposa de um cientista famoso no Brasil, Alberto Escarpa. Você a conhece?

 

- Eu já ouvi falar dele, inclusive o vi algumas vezes na televisão, quando existiam TVs por aqui. Nunca ouvi falar nela e não a conheço. A cidade é muito grande, afinal.

 

- Amigo, você encontraria esta mulher pra nós? Trata-se de um caso de vida ou morte. Na verdade, de vários casos de vida ou morte. É claro que se houver alguma maneira de retribuirmos o favor, estaremos a seu dispor.

 

- Eu posso tentar. Sairei amanhã para tentar localizá-la. Caso tenha sucesso, a colocarei em contato com vocês. Torçam pelo meu sucesso.

 

- Amigo, pode ter certeza que há vários homens aqui comigo torcendo pelo seu sucesso.

 

                              Nos dias seguintes, por várias vezes houve tentativas de contato com o rádio de Luís, porém sem sucesso. O comandante já estava para desistir dele, quando, mais de uma semana após o último contato, a voz de Luís soou. Muitos militares estavam na sala de rádio no momento, incluindo o coronel Doc, e foi ele que rapidamente pegou o microfone.

 

- Olá, amigo... Estamos atrás de notícias suas há mais de uma semana. Alguma novidade?

 

- Não falei com vocês antes porque estava entretido em uma difícil tarefa. Tarefa esta que acabei por obter sucesso.

 

- Você conseguiu localizá-la, Luís?

 

                              A voz que surgiu logo após não foi a de Luís, mas sim uma inconfundível voz feminina.

 

- Eu sou Helena Escarpa. O que vocês têm de tão urgente para me dizer? É sobre meu marido? Ele está com vocês?

 

- Senhora Escarpa, é sobre o seu marido Alberto sim, mas ele não está conosco.

 

- Ele morreu, não foi?

 

- Não, ele não morreu. Está bem vivo.

 

                              Todos puderam ouvir os soluços de Helena pelo microfone. Ela estava chorando convulsivamente.

 

- Onde ele está? Ele pode falar comigo de onde está?

 

- Não sei se ele pode falar com a senhora, mas eu acho difícil, porque ele está lá fora.

 

- Como assim lá fora? Ele está exposto à radiação?

 

- Sim, ele está. Mas a radiação não lhe faz mal. Acho que até o fortifica.

 

- Então seu trabalho não foi em vão. Ele conseguiu mesmo. Quando poderei falar com ele?

 

- Dependendo da senhora, fará melhor do que falar com ele. Se nos autorizar, irei pessoalmente, escoltado por uma equipe de meus melhores soldados para buscá-la. Aí então, poderá vê-lo novamente.

 

- Buscar-me? Estou no Brasil... Como pretende fazer isso?

 

- Helena, eu iria até a Antártida se fosse necessário, para trazê-la de volta aos Estados Unidos.

 

- Por quê? Por que faria isso por mim? Foi ele quem pediu?

 

- Não, ele não pediu. Na verdade sequer sabe que você está viva. E não faço isso pela senhora, mas sim por meu povo. Os detalhes desta conversa, prefiro contá-la quando de nosso retorno. A senhora nos autoriza ir buscá-la?

 

- Sim... Quero demais voltar a vê-lo. Quero também que conheça nosso filho. Fará isso por mim?

 

- Farei isso por mim.

 

- Quando acha que estará chegando?

 

- Levando-se em consideração o terreno acidentado e a distancia, imagino que em seis meses estejamos chegando. Dependendo dos imprevistos e das dificuldades que enfrentaremos pelo caminho, até mais, mas tenha certeza de que chegaremos.

 

- Que Deus os acompanhe durante toda a sua jornada. Eu os estarei esperando ansiosamente.

 

                              Já no dia seguinte, o Marechal Clemens em pessoa subiu ao palanque do complexo militar da cidade redoma de Denver, após soar o comunicado pelo rádio exigindo a presença de todos no vasto campo de treinamento. O marechal era a maior autoridade na cidade e poucas vezes esteve dentro do quartel, o que causou certo espanto naquelas pessoas. Apesar de a maioria não fazer idéia do motivo daquela reunião, todos sabiam que o assunto em pauta era sério, uma vez que aquele homem altivo e de olhar penetrante havia deixado sua política de lado para estar ali presente naquele momento.

 

- Primeiramente quero agradecer pelo brilhante trabalho que vocês, soldados respeitáveis, vem fazendo nesta cidade que já há alguns anos se tornou nosso lar e nosso reino. Venho regendo esta redoma de maneira clara e responsável, como vocês bem sabem. Somos um povo democrático, e seguindo a política que decidimos adotar neste local desde o grande ataque da Coréia da Norte, vim aqui hoje pedir voluntários para uma missão nada fácil. Não vou ser hipócrita... Trata-se de uma missão quase impossível. Porém, se cumprida com sucesso, estará garantindo a segurança e sobrevivência desta cidade por tempo indeterminado. Em outras palavras... Fizemos uma descoberta nos últimos dias que certamente nos trará um pacto de não agressão por parte da horda inumana que vem chacinando nossos vizinhos americanos. Não posso entrar em detalhes, pois qualquer informação adicional que eu venha a lhes passar estará colocando em risco todo o sucesso da missão. Como bem sabe, nenhum de vocês é obrigado a aceitar esta tarefa, principalmente por conta do alto grau de periculosidade, porém, aqueles que porventura aceitarem fazer parte da caravana, serão considerados heróis desde já e serão celebrados como tal enquanto eu viver, e creio eu, muito além disto. Sem mais rodeios até porque a viagem é longa e nosso tempo, curto... Quais de vocês, valentes soldados das forças especiais de Denver, topam sair numa missão por terra que os vai levar até a cidade redoma do Rio de Janeiro, no Brasil? Toda a missão deverá levar um ano um pouco mais, dependendo do que se vai encontrar pela frente. Vocês contarão com alguns jipes e carros de combate e terão vasto arsenal e uniformes anti-radiação a seu dispor durante todo o trajeto. Quero enfatizar que a missão possui teor vital para esta cidade. Por favor, quem for voluntário queira levantar uma das mãos.

 

                    Onze pessoas ali presentes assim o fizeram. O marechal não disfarçou sua cara de decepção com o baixo contingente.

 

- Onze soldados, dentre um exército de trezentos e vinte e sete homens? Onde está a bravura de vocês? O que está em jogo aqui é seu lar e sua família.

 

                              Diante do apelo daquele homem idoso, que se tornara símbolo de sabedoria e paz naquela cidade, quatro outros homens e até mesmo uma mulher, levantaram uma das mãos. Desta maneira, estava formada uma equipe de dezesseis militares das forças especiais de Denver para encarar uma missão desconhecida pela maioria deles. No comando da missão estava o coronel Doc e abaixo dele, o capitão Gabriel, o tenente Andriew, o sargento Mathias, o cabo Zachary e os soldados Carl, Connor, Joseph, Lilith, Memphis, Mike, Nick, Reeves, Donut, Roger e Torn. Todo o grupo passou as horas seguintes se preparando para partir na manhã seguinte e quando amanheceu todos se encontraram à frente da portaria principal da redoma, que, como sempre, estava fortemente vigiada por guardas armados até os dentes. Dois enormes carros de combate e dois jipes médios estavam lá, prontos para levá-los a seu longínquo destino. Após a cerimônia deflagrada pelo marechal Clemens, a multidão de civis ovacionou os novos heróis, que se apressaram em se despedir de seus familiares. Foi uma cena comovente. Todos choravam, numa quase certeza de ser a última vez em que se veriam. A impressão geral era de se estar partindo em uma missão suicida. Adentraram os veículos, já vestidos com sua indumentária especial e fizeram sinal para que a primeira das três gigantescas portas reforçadas fosse aberta. Neste momento, o cabo Marlon se aproximou do general Foster e lhe pediu permissão para falar.

 

- Permissão concedida, cabo...

 

- Senhor... Sei que estamos muito em cima da hora, porém... Fiquei pensando a noite toda nas palavras do marechal. Percebo agora que meu destino está ligado ao desses homens, general. Por favor... Me permita unir-me a eles.

 

- Você trouxe suas coisas consigo?

 

- Tenho tudo do vou precisar nesta mochila em minhas costas, senhor.

 

- Então, cabo... Este é o momento. Corra e una-se a seus irmãos de guerra.

 

                              O militar sorriu e se apressou a chegar a um dos grandes carros de combate. O general acenou aos guardas que lhe deixassem entrar, e, dessa maneira, Marlon se tornou o décimo sétimo integrante da caravana. Após o primeiro quilômetro rodado pelo pequeno pelotão, começaram a aparecer carros de passeio, em sua maioria queimados, obstruindo a passagem dos veículos, porém, o carro de combate que seguia na dianteira da caravana possuía duas grandes hastes acopladas a seu capô, com o propósito obvio de afastar as sucatas, o que Joseph parecia saber fazer com extrema habilidade. O soldado Joseph estava vestindo um uniforme protetor negro, com uma máscara de oxigênio horrorosa e um capacete de aço pintado de vermelho e preto, igualmente feio por cima dela. Lilith, que se encontrava logo ao seu lado, no banco do carona, tentava conversar com ele, mas a máscara não o deixava ouvi-la direito, e, o pouco que ele conseguia entender, respondia de uma maneira inintendível, pois a máscara abafava e deturpava o som de sua voz. A máscara de Lilith era bem mais moderna, permitindo-a se comunicar de maneira mais aberta. O veículo em que estavam possuía uma enorme metralhadora .100 logo acima da carroceria e em seu gatilho estava a mão ávida de Carl, que vestia um traje de proteção que mais lembrava uma dessas grossas jaquetas de inverno. Sua máscara era da mesma série da de Lilith. Em seu colo, descansava o que eles chamam de unidade incineradora. Tratava-se de uma arma capaz de cuspir labaredas de fogo a uma distancia impressionante. O chato é que ele tinha de levar nas costas o combustível da máquina, dividido em dois pesados galões numa espécie de mochila de metal. Na parte central do veículo, Doc inspecionava o banheiro químico, o refeitório e o dormitório, únicos locais seguros para se permanecer sem as roupas especiais de proteção, pois possuíam avançados sistemas de descontaminação. O quinto e último passageiro daquele carro era o recém chegado cabo Marlon, que foi incumbido por Doc de manusear o guindaste localizado na parte traseira do veículo, que apesar de incrível, não era o mais poderoso ali, pois perdia pro outro carro de combate, em poder bélico e em resistência, pois apesar da dianteira daquele carro ter a aparência de uma carreta, sua traseira era como a de um tanque de guerra, capaz de passar pelos mais difíceis obstáculos. Além disso, era totalmente blindado e encouraçado, com cavidades abertas ao longo da carroceria, por onde se podia fazer mira com fuzis e outras armas de grosso calibre. Era movido a radiação nuclear, ao contrário dos outros, à diesel, álcool e gasolina. Quem recebeu a honra de guiá-lo foi o sargento Mathias, que tinha um lança-foguetes entrelaçado em seu ombro, além de muitas granadas em compartimentos de seu colete à prova de balas, que ficava sobre sua roupa especial. Por cima de sua máscara, ele vestia uma outra máscara de pano, que amenizava as suas feições. O sargento era um homem alto, forte e de poucos amigos, por isso, o cabo Zachary, que lhe fazia companhia dentro da boléia, desistiu de puxar assunto, pois o homem, se ouvia, não estava nem aí pra responder. Havia ainda uma cadeira giratória no topo do veículo, onde se chegada por meio de uma escada de aço acoplada à carroceria. À frente da cadeira, mais uma .100, esta, operada pelo soldado Mike, que vestia uma túnica por cima do uniforme de vedação. Dentro do carro de combate, estavam ainda, de prontidão e atentos, o tenente Andreiw, Roger e os amigos inseparáveis, Reeves e Donut. O veículo era o último da fileira, com os dois jipes ao centro da caravana. O jipe da frente possuía dois canhões, sendo um laser e o outro de projéteis e levava uma rede por cima da carroceria. Os canhões eram acionados pelo computador de bordo, e não manualmente, portanto, ficava a cargo do carona atirar, no caso, Torn, enquanto Memphis pilotava. O segundo jipe levava um canhão de projéteis no capô e uma metralhadora laser no topo da carroceria, ambos operados pelo painel do veículo, trabalho feito pelo carona, que neste caso era o soldado Connor. Na direção estava o capitão Gabriel. Dando cobertura a ambos, Nick, com seu fuzil automático. Ele, dentre todos os outros, era o homem que melhor se podia ver o rosto, pois sua máscara era transparente e muito discreta. Vestia uma calça camuflada por cima da roupa especial. Seguiam em direção ao Novo México, pois deveriam atravessá-lo até a fronteira do México. Após cortar todo o país vizinho, passariam pela Guatemala, Honduras, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Colômbia e enfim, Brasil. Já dentro do país, deveriam percorrer milhares de quilômetros, levando-se em consideração a extensão territorial do mesmo. Passariam pelo Amazonas, Pará, Tocantins, Bahia e Minas Gerais antes de chegar a seu destino final, a cidade redoma do Rio de Janeiro. Seis horas de viagem se passaram até que Joseph reclamou de fome. Fez contato com Doc pelo rádio embutido na máscara e este avisou toda a caravana que iriam parar para comer. Em grupos de seis ou cinco, se revezavam para entrar no pequeno refeitório e no dormitório, onde cabiam no máximo três deles em cada cômodo. Após a refeição, sem direito a descanso para digestão, partiram novamente, até que se fez noite e Doc ordenou novamente que parassem. A única iluminação no local era a dos faróis e o único som vinha dos motores, o que deixou o comandante da operação preocupado, pois poderiam ser notados por inumanos com facilidade, então resolveu que sempre ao cair da noite parariam e desligariam tudo, pelo menos até estarem fora do território nacional, dominado pelos deformados. Doc, Gabriel e Nick foram os primeiros a descansar no dormitório, enquanto todos os outros fizeram um circo com os quatro veículos e se sentaram no centro dele. Somente Connor e Joseph montaram guarda, ao alto dos dois carros de combate, com os dedos no gatilho. Zachary se aproximou de Lilith. Ele estava de olho nela desde que haviam partido. A mulher tinha no rosto uma máscara escura e por cima de todo o corpo uma espécie de capa de chuva, o que impedia de saber se era bonita, mas Zachary nem quis saber, porque era a única mulher presente, e sabendo disso, queria conquistá-la o mais rápido possível, pois seus colegas não demorariam a sentir o efeito da abstinência sexual e as investidas começariam logo.

 

- Sabe onde estamos, soldado?

 

- Não, cabo... Não faço idéia. Que lugar é esse?

 

- Estamos em Boulder. A cidade foi destruída por uma bomba atômica. A desgraçada caiu em cima da redoma.

 

- Que pena... Deve ter sido uma bela cidade, outrora. Veja estes prédios e viadutos. Mesmo em ruínas, ainda são bonitos.

 

- Sim... Há destroços por todos os lados. Vai ser barra pesada passar por eles amanhã de manhã. Acho que este era o centro da cidade.

 

- Acha que conseguiremos cumprir a missão?

 

- Sim, acho... Tenho fé que conseguiremos. E você, o que acha?

 

- Também tenho fé.

 

- Você é muito corajosa. Teve mais garra do que muitos de nossos homens. A maioria dos soldados ficaram apavorados. Ninguém quer correr o risco de topar com Death Crawler por aí.

 

- Sim... Mas o que é melhor? Aguardar a morte dentro da redoma ou correr atrás da salvação fora dela?

 

- Tem razão. Pena que a grande maioria não pense como você.

 

- Você faz idéia do que estamos indo buscar no Brasil?

 

                              Zachary pigarreou e levou alguns segundos, para então responder.

 

- Não... Não faço a menor idéia.

 

                              Lilith percebeu imediatamente que o negro mentia, mas não quis se aprofundar. Aquela informação não era pra ela.

 

- O que você fazia antes do grande ataque?

 

- O mesmo que agora.

 

- Ah, sim... Já era militar.

 

- Perfeito. E você, o que fazia?

 

- Trabalhava como secretária em Nova Iorque e me preparava pro meu casamento, que teria acontecido em cinco meses, não fosse o desastre. Eu só sobrevivi porque curtia férias em Denver, na casa de minha mãe. Meu noivo não deve ter sobrevivido.

 

- É... Eu soube que Nova Iorque foi totalmente dizimada. Nada restou dela. Sinto muito, Lilith.

 

- Eu já superei isso. Está tudo bem.

 

- Ele era um cara legal?

 

- Sim... Acho que teria sido o marido dos sonhos de qualquer mulher. Pelo menos foi o namorado dos meus sonhos. Fui mesmo feliz do lado dele.

 

- Você já encontrou alguém? Digo... Tem se relacionado com outro homem?

 

- Saio com um carinha lá na cidade... Nada sério, até porque não quero compromisso. Se tivesse que rolar, seria com meu noivo, mas parece que não vai mesmo acontecer, então tudo bem.

 

- Eu... Me senti atraído por você.

 

- Por mim? Você me conhece lá do complexo militar? Não me lembro de já nos termos visto antes.

 

- Na verdade, nem eu. Me senti atraído por você aqui, agora.

 

- Há, há, há...

 

                              Lilith não conseguiu segurar a gargalhada. Levantou-se olhando Zachary nos olhos e antes de se retirar, ainda sorrindo, exclamou.

 

- Bela tentativa, cabo. Até amanhã.

 

                              O operador de rádio nunca havia ficado tão envergonhado em toda a sua vida. Sabia que era cedo demais para atacar daquela maneira, mas não desfrutava de tempo. Decidiu ir atrás dela para pedir desculpas, mas ao se virar, percebeu que ela já havia deitado no chão para dormir. O pedido de desculpas ficaria para o dia seguinte. Enquanto isso, os amigos de infância, Reeves e Donut conversavam com o gigante Torn, que usava um uniforme anti-radiação transparente, deixando seus músculos à vista e calça de napa preta. Sua máscara era também preta e envernizada, provavelmente para combinar com a calça. Atravessado sobre suas pernas, um enorme e pesado cajado a laser. Aquela arma parecia ter sido inventada para ele próprio. Com ela, além de efetuar disparos capazes de abrir imensos buracos na carne, Torn podia também esmagar crânios com a pesada ponta saliente. Ele possuía ainda luvas de napa nas mãos e uma ombreira de aço no ombro esquerdo. Donut estava vestido com uma jaqueta com gorro por cima da roupa especial e mochila nas costas, enquanto seu inseparável amigo estava de casaco e capacete militar cobrindo a indumentária. Seu rifle estava quase totalmente desmontado em seu colo e ele limpava peça por peça.

 

- Você já bateu em alguém com esse baita cajado, Torn?

 

- Só no treinamento.

 

- Cara, deve ter doído pra valer.

 

- Só alguns hematomas, nada demais.

 

- Será que você terá a oportunidade de usar ele pra valer nesta missão?

 

- Conto com isso, amigo.

 

- Como assim conta com isso?

 

- É pra isso que estou aqui. Por este motivo me alistei. Estou aguardando por uma oportunidade destas há anos.

 

                              Reeves e Donut se entreolharam, pasmos. Estaria o grandalhão falando a verdade ou queria somente impressionar? Enquanto todos ali oravam para não ter incidentes pelo caminho, o gigante parecia torcer pelo contrário.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

2.

 

 

 

                              Doc foi o primeiro a se levantar, assim que o sol nasceu. Tratou de acordar os outros, pois o tempo era escasso. Seu traje especial era muito folgado e possuía fortes e resistentes luvas e botas, feitas do mesmo material de seu cinto. Sua máscara era parte integrante do uniforme e era feita de impact glass. Tudo muito bem vedado e lacrado, impedindo o corpo de ter contato com a atmosfera. O vidro especial reluzia muito ao contato com os raios ultravioleta. Aquela indumentária lembrava um pouco um uniforme de astronauta. Tão logo despertou, Zachary foi de encontro a Lilith, mas antes de dizer qualquer coisa, a mulher percebeu sua intenção e se antecipou a ele.

 

- Não precisa dizer nada, cabo... Está tudo bem. Eu até gostei. Não se preocupe.

 

                              O “eu até gostei” agradou o operador de rádio imediatamente. Quando ela se afastou, um sorrisinho ficou estampado em seu rosto. Aquele comentário dava entrada a outras investidas. Nos dias seguintes todos já se conheciam bem. Um laço muito familiar começava a existir entre eles. Zachary estabelecia contato com Denver pelo rádio pelo menos três vezes por dia para informar a situação, que era sempre a mesma. Nada de surpresas nem novidades. Até então, o cenário era de devastação e abandono, mas após a primeira semana de jornada, a caravana avistou de longe uma redoma. Uma redoma partida. Ao contrário da redoma de Denver, brilhante e límpida, esta se encontrava fosca e empoeirada. Todos se olharam, mas nenhum comentário foi feito. Era óbvio que se tratava de uma das cidades atacadas pelos inumanos. Doc sentiu uma profunda tristeza a vislumbrá-la. Alguns sentiram arrepios e até mesmo medo. O comandante decidiu adentrá-la, embora alguns achassem perigoso demais.

 

- Quero aprender um pouco sobre os malditos zumbis vendo o estrago que eles fizeram aqui. Vamos no desviar de nosso principal objetivo, mas somente por algumas horas.

 

                              E assim foi feito. A caravana começou a se dirigir para uma passagem além de um grande portão tombado, por onde entraram os carros. Logo nos primeiros metros começaram a surgir corpos, e sua quantidade ia aumentando conforme avançavam. Alguns dos cadáveres, que estavam em adiantado estado de decomposição, não possuíam cabeça. Aqueles homens haviam sido decapitados. Lilith sentiu náuseas. Uma profunda tristeza se apoderou daquelas pessoas. Estavam chocados, amedrontados e com uma revolta profunda dentro do peito. Doc percebeu em que situação se encontrava seus soldados e decidiu que já era o bastante. Ordenou ao comboio que retornasse e para isso foi necessário passar pela rua paralela. Voltando para o acesso á cidade redoma destruída, passaram pela porta de uma creche, onde Joseph freou. Aos degraus da escada que ficava frente à porta da creche, um amontoado de pequenos esqueletos se encontrava. Eram crianças. Pelo menos duas dúzias delas. Alguns corpos possuíam ossos fraturados ou rompidos. Havia sido uma chacina. Só uma coisa veio à cabeça daqueles homens naquele momento. Não podiam deixar que tamanho massacre chegasse em sua cidade. Algo assim não podia lhes acontecer. Doc fixou sua visão em um corpo que estava do outro lado da rua, em cima da calçada e saltou do carro. Ao se aproximar, teve a certeza de que aquilo não se tratava de um ser humano normal. A criatura tinha um crânio afunilado e uma fileira de dentes tremendamente salientes. Em seu osso externo, um buraco de bala. Ficou feliz por um segundo, por ter visto pelo menos um dos inimigos mortos. Procurou, em meio ao outros corpos espalhados por toda parte, na intenção de encontrar pelo menos mais um deles, mas não acho nenhum outro além daquele. Sentiu um aperto no peito por conta disso e voltou ao carro, observado pelos seus homens.

 

- Vamos sair logo daqui.

 

                              Quarenta minutos depois, Nick quebrou o gelo.

 

- Senhor... Seja lá o que for que estamos indo buscar, é algo que nos permitirá dar o troco a essa gente maldita? Poderemos fazê-los sofrer?

 

- Pelo contrário, soldado. Caso tenhamos sucesso, iremos estar proporcionando muita alegria ao líder deles.

 

                              Nick franziu o cenho, sem entender. Preferiu esquecer aquele comentário, pois pra ele, naquele momento, não fazia o menor sentido. Algumas cidades reforçaram suas redomas e sua segurança, outras triplicaram o número de guardas. Nada disso impediu o avanço dos deformados. Sua fúria animalesca sempre sobrepujava as defesas humanas. Alguns dias depois, Doc conferia o estoque de alimento e chegou a conclusão de que não havia suprimento suficiente para um ano. Deveriam conseguir mais víveres ao chegar ao Brasil. Olhou pela janela e percebeu que seu carro passava por uma ponte naquele momento. Uma grande ponte que dava acesso a uma cidade em ruínas. De repente, ouviu um silvo e por extinto olhou para cima. Gritou um palavrão o mais alto que pôde e um segundo depois foi arremessado contra a porta do armário da dispensa, por causa do forte impacto causado pelo foguete que destruiu parte da ponte. Ouviu seus soldados gritando e sentiu o carro acelerar ao máximo. Olhou novamente pela janela e conseguiu enxergar silhuetas humanas no topo de um relógio gigante que ficava em cima de uma construção parecida com um castelo. Lá, entre eles, alguém segurava uma arma que Doc logo percebeu se tratar de um lança foguetes. Um segundo homem tentava, às pressas, encaixar um foguete à arma, quando Doc, de estalo, saiu pela porta com um megafone na mão e o pressionou contra sua máscara, na altura da boca.

 

- Somos amigos... Viemos em paz. Não somos inumanos. Repito... Não somos inumanos. Cessem o ataque. Cessem qualquer hostilidade. Estamos aqui em paz.

 

                              Doc percebeu que o homem que segurava o lança-foguetes, de repente, arriou a arma. Podia ver que estavam em cinco, e, segundos depois, desapareceram. Seu carro de combate brecou e ele foi arremessado ao chão.

 

- Mas que merda... Pra que frear dessa maneira? Já estava com as costelas doloridas por causa da porta do armário da dispensa e agora quase quebrei o braço.

 

                              Joseph largou o volante e veio ao socorro do coronel, mas este dispensou sua ajuda e se ergueu sozinho. Olhou novamente pro alto para se certificar de que aqueles homens não mais estavam lá e em seguida se voltou pra ponte, que agora tinha um buraco considerável. Todos os carros e seus ocupantes estavam bem. Nick se aproximou de do coronel.

 

- Comandante, por favor, dê-nos ordem para sairmos daqui o mais rápido possível. Há inumanos nesta cidade. Não estamos seguros aqui.

 

- Não são inumanos. São gente como nós.

 

- Como pode saber, coronel?

 

- Porque deformados não usam máscaras.

 

                              Nesta altura, todos os outros integrantes da equipe estavam próximos a ele, de armas em punho, apontadas para o grande relógio, mas logo perceberam movimentação na portaria do edifício. Os cinco homens passaram por ela, vindo de encontro ao grupo. Não apontavam armas, nem apresentavam comportamento hostil. Doc percebeu e ordenou seus homens que abaixassem sua armas. Eles imediatamente obedeceram. Um negro alto, vestindo uma espécie de armadura por cima do traje anti-radiativo ergueu a mão em direção ao coronel Doc e apressou-se em lhe pedir desculpas. Ele trazia trançada ao ombro o lança-foguetes.

 

- Peço-lhe mil desculpas. Estamos com os nervos à flor da pele por aqui. Pensamos que eram deformados. Na dúvida, atirei contra a ponte, para que não pudessem passar. Não tentei matá-los, mas sei que o susto foi grande.

 

- Está desculpado. Sei que todo americano tem passado maus bocados. Quem são vocês? Viajantes?

 

- Não... Moramos aqui mesmo nesta cidade devastada.

 

- Sem a proteção de uma redoma? Como pode isso?

 

- Construímos por conta própria um abrigo com tecnologia anti-radiativa no interior daquele grande relógio e lá temos vivido desde então.

 

- Vocês estão em cinco?

 

- Não... Somos onze. Nós cinco, mais nossas esposas e ainda uma criança de cinco anos, que é filho deste rapaz simpático aqui ao meu lado.

 

- Amigo, na situação de vocês, eu não teria feito o que fizeram. Destruir a ponte não iria impedir os inumanos de passar, e, quando isso acontecesse, vocês e seus familiares iriam virar patê. Teria sido mais prático ficarem escondidos até que o perigo passasse.

 

- Obrigado pelo conselho, amigo... Vocês estão vindo de onde?

 

- Denver.

 

- E pra onde estão se dirigindo, se me permite perguntar?

 

- Para o Brasil.

 

- Brasil...? Puxa...!!! Fantástico!!! Vocês tem uma bela caminhada pela frente.

 

- Sabemos.

 

- E o que vocês procuram no Brasil?

 

- Negócios.

 

- Ah, sim... Bom, bem vindos a Santa Fé. Querem entrar e conhecer nossa família?

 

- Se nos permitir, adoraríamos.

 

- Vamos entrando, então. Há espaço lá dentro para todos se acomodarem.

 

                              Uma das esposas acionou o mecanismo que permitia que a primeira das três portas se abrissem e tão logo o grupo adentrou o compartimento, uma chuva química caiu sobre eles, lavando até mesmo o menor indício de radiação de seus trajes. A mulher que operava o sistema abriu a segunda porta e um vapor azulado secou todos os trajes, em seguida, o computador acionou um apito, liberando a última porta e os convidados puderam entrar, junto com sues anfitriões. As mulheres olharam os visitantes de maneira estranha, pois havia anos que não viam ninguém de fora. O menino Billy estava simplesmente apavorado, pois jamais vira estranhos armados. Após alguns minutos, todos já se sentiam mais à vontade. O complexo era maior do que parecia, visto de fora, e não demorou pra que pedissem para descansar. Somente Torn, Carl e Marlon permaneceram acordados, conversando o todo tempo com os novos amigos, mas ao anoitecer, foram rendidos por outros soldados e se renderam ao sono. Pela manhã, Doc agradeceu a gentileza e chamou seus homens para continuar a travessia pelo continente, mas Harry, o negro que portava o lança-foguetes interveio.

 

- Nada disso, meu amigo... Antes de partirem, comeremos juntos. Sei que devem estar cansados daquela ração militar. Eu próprio já fui um soldado e sei que gosto tem aquilo. Estamos racionando ao máximo nossa comida, mas hoje é um dia especial e iremos dividi-la com vocês. Além disso, quero ter uma conversa com o senhor ainda, coronel. Uma conversa muito séria.

 

- Já que é assim... Adiaremos uma ou duas horas nossa partida. De onde provem sua alimentação? De onde tiram o sustento?

 

- Daqui do complexo mesmo. Há um setor onde criamos e abatemos alguns animais. Também cultivamos uma horta.

 

- Bela iniciativa.

 

- Sim, mas nossos recursos estão cada vez mais escassos, e este assunto esta na pauta de nossa conversa.

 

                              Havia uma espaçosa sala de jantar e os convidados foram guiados até lá por Harry. Seus pratos já estavam postos e ao sentarem-se, o afro-americano voltou a falar.

 

- Coronel Doc, gostaria de lhe fazer uma proposta. Vocês irão passar por territórios desconhecidos, provavelmente cheios de perigos e surpresas desagradáveis serão uma certeza em todo seu trajeto. Gostaria de lhe oferecer minha ajuda, e também a de Dennis e Robert. Estou certo de que seremos de vital importância, pois ambos temos treinamento militar.

 

- E o que vocês ganhariam com isso?

 

- Em troca, o senhor nos levaria, ao final da missão, não somente nós três, mas todos os onze, a sua cidade redoma, onde ganharíamos cidadania.

 

- Entendo. Desejam se mudar pra Denver.

 

- Sim... Como pode ver, não estamos seguros aqui, e segundo um de seus soldados, o qual não mencionarei nome, a missão de vocês trará paz eterna a sua cidade. Quero garantir o salvo conduto de minha esposa e amigos, coronel, e quero tanto, que estou me colocando a sua disposição. Além disso, não sei por quanto tempo conseguirei alimentar essas bocas. O que o senhor me diz?

 

- Sinto muito, mas não há espaço em nossos veículos para mais três pessoas.

 

- Tenho dois jipes de assalto escondidos aqui perto. Eles estarão a seu dispor durante toda a missão.

 

- E quanto a sua família? Eles ficarão sem proteção.

 

- Não, coronel. Por este motivo, ficarão dois de nós para proteger as mulheres e Billy. Todos somos ex-militares. Já lutamos em guerras e sabemos nos defender.

 

- Sinto muito, Harry... Não posso fazer isso sem autorização prévia de meus superiores.

 

- O senhor tem o rádio. Pode pedir autorização agora mesmo. Duvido que eles rejeitem minha ajuda num momento tão difícil quanto este.

 

- Não adianta insistir, Harry. Você tem sido muito condescendente conosco, mas a verdade é que não lhes conheço bem, e pode certeza, sou um homem muito cauteloso. Não teria chegado a meu posto atual se não fosse.

 

- Por favor, coronel. Não me faça implorar. Reconsidere. Estou suplicando.

 

- Já chega... Lamento, mas minha resposta definitiva é não.

 

- Estará condenando onze almas, comandante.

 

- Vocês se viraram bem até hoje, porque seria diferente?

 

- Por que acabamos de matar nossos últimos coelhos e porquinhos da Índia para alimentar seus homens.

 

- Desgraçado... Você fez isso de propósito. Você armou essa só pra me deixar sem escolha. Quero que me leve até onde você os criava. Só acreditarei vendo.

 

                              Doc seguiu Harry por duas seções até que o negro adentrou uma terceira sala, onde o cheiro de urina e fezes animal era bem forte. Algumas grades estavam espalhadas pelo lugar, mas não havia animal algum nelas.

 

- Devia deixá-los comendo alface pro resto de suas vidas. Vocês tem minha permissão para acompanhar a caravana, porém, nem quero saber qual a patentes de vocês outrora. No meu pelotão, serão soldados. Sigam minhas ordens à risca, e, se um só de vocês trair minha confiança, não queiram saber qual será seu destino. Fui claro?

 

- Como água, coronel.

 

- Além deste lança-foguetes e das pistolas deles, que outras armas vocês possuem?

 

- Tenho um fuzil com lança-granadas acoplado, um canhão de ar e dois fuzis a laser. Os fuzis a laser são verdadeiras relíquias. Trata-se do último modelo lançado pela fabricante antes do grande ataque.

 

- Ok... Deixe duas pistolas e um dos fuzis laser aqui no complexo, o resto vem conosco. Quero ver os jipes dos quais me falou.

 

- Sim, senhor, mas não prefere terminar sua refeição?

 

- Está bem.

 

- Doc praticamente engoliu sua comida sem mastigar. Estava tenso e ansioso. Minutos depois, chegavam às portas de um galpão. Harry levantou-as e Doc pode ver os dois veículos, em excelente estado de conservação, mas o que lhe chamou mesmo a atenção foi um blindado do tipo rasteiro, totalmente vedado, com sistema de ar condicionado e três canhões duplos, um na dianteira, outro no topo do veículo e o último na parte traseira do mesmo. Todos operados internamente pelo computador de bordo. Para completar, o carro possuía dois imensos faróis auxiliares. Era uma máquina de guerra perfeita. Um dos jipes era idêntico a um dos que estava em uso pelo grupo e o outro, um modelo vedado, capaz de levar somente um motorista dentro e um atirador fora, porém, apesar de pequeno, possuía blindagem reforçada e continha uma bateria anti-aérea acoplada. É claro que ninguém esperava ver aviões em dias como aqueles, mas a bateria seria muito útil em outros propósitos.

 

- Quero o jipe fechado e o carro blindado, ao invés dos dois jipes.

 

- Coronel, minha gente precisa do carro como plano de retirada de emergência. O jipe é pequeno e aberto.

 

- Ou isso ou nada feito.

 

                              Houve um silêncio que durou alguns segundos e então, Harry concordou com a cabeça.

 

- Zachary, faça contato com Denver e diga-lhes que recrutamos alguns mercenários.

 

- Sim, senhor.

 

                              Todos se despediram e a caravana voltou a tomar seu rumo, desta vez com o reforço de dois novos veículos e três homens de guerra. Doc mandou o capitão Gabriel ficar de olho nos três que passou a chamar de mercenários, embora o título não coubesse a eles. Antes da partida, Doc entregou nas mãos da esposa de Harry alguns quilos de ração militar, que contém todos os nutrientes necessários ao corpo humano e após, prometeu-lhe retornar para levar a todos consigo. Rachel era uma mulher negra de uns quarenta e tantos anos, de expressão triste e desesperançosa. Mais de uma semana depois, o comboio chegou ao deserto na fronteira entre os Estados Unidos e o México.

 

- Lilith, se tem algo que não mudou nada com as explosões nucleares foi esta região.

 

- Mudou sim, meu amigo... Só que as mudanças não são visíveis. Não há mais cascavéis ou qualquer outro tipo de animal por aí.

 

- Mas há cactos... Olhe lá um deles.

 

                              Zachary interrompeu a conversa para atender o rádio. Era a base militar querendo saber como estava o deserto. Eles sabiam a localização exata do grupo por que cada carro continha um rastreador. Zachary disse a eles exatamente o que acabara de dizer a Lilith e então o sinal foi perdido. O operador de rádio se virou para a única mulher da expedição e tornou a dirigir-lhe a palavra.

 

- Então, Lilith... Acha que já nos conhecemos o suficiente para que eu possa lhe dar outra cantada? Pelo menos agora já lhe vi sem esta máscara e este avental enorme e, não vou mentir, me agradou um pouco.

 

- Um pouco, você diz... Seu pilantra safado. Quem sabe quando seu repertório melhorar e o pouco virar muito?

 

                              Ambos caíram na gargalhada.

 

- Ai, Zac... Suas cantadas são horríveis. Mas você até que é um cara legal. Você já foi casado?

 

- Ainda não... Estou esperando por você.

 

                              Novas gargalhadas.

 

- Deixou pelo menos uma namorada esperando por você em Denver?

 

- Somente algumas pretendentes.

 

- Ah, sei... Umas cinqüenta, não?

 

- Umas trezentas.

 

- Definitivamente, você é o homem mais mentiroso que já conheci nesta vida.

 

- Estamos prestes a adentrar o primeiro país dos vários que vamos visitar em nossa longa jornada.

 

- Nossa... Foi tão profundo. Até agora somente um incidente. Você confia nesses caras, Zac?

 

- Sim... Você não?

 

- As vezes sim, as vezes não. Eles tem uma cara meio estranha, principalmente aquele tal de Apock. Ele tem um aspecto aterrador.

 

                              Apock era de estatura média tinha uns trinta anos de idade. Raramente se ouvia sua voz. Estava sempre atento a tudo e a todos e jamais se desgrudava do fuzil com baioneta que ganhara de Gabriel. Tinha várias facas que guardava em cavidades de sua calça camuflada, com os cabos para fora, de maneira a facilitar seu manuseio em emergências. Enquanto o grupo atravessava o deserto, um comerciante viajava de Denver a uma outra cidade redoma com intuito de fazer negócios, quando seu pior medo se tornou realidade. De longe, ele percebeu a movimentação de pessoas que pareciam dançar em volta de uma grande fogueira no local onde um dia existira uma praça. Tentou dar ré com seu carro sem ser percebido, mas os gritos inumanos que ouviu em seguida deixaram claro de que havia sido descoberto. Pelo menos duas vezes por ano aquele desafortunado homem fazia exatamente aquele mesmo trajeto, com seu veículo lotado de mercadorias de Denver para vender em outra cidade, sem que nada houvesse ocorrido a ele. Na verdade, ele nunca vira nada do que tivesse que se preocupar. Só que hoje sua sorte havia mudado. Como sabia que o motor de seu carro era possante, deu um cavalo de pau e saiu em disparada, retornando rapidamente pelo mesmo caminho que usou para chegar até aquele trecho, mas ficou muito surpreso ao olhar pelo espelho retrovisor e perceber que um bugre rato-de-areia se aproxima dele a toda velocidade, carregado de deformados. Quando viu que eles o alcançariam de qualquer maneira, reduziu e os esperou, imaginando que poderia negociar com as criaturas. O bugre emparelhou com ele e tendo uma submetralhadora apontada para seu rosto, finalmente pisou no freio. Um homem vestindo uniforme, capa, botas e luvas negras, além de ter o próprio rosto pintado de preto, saltou do veiculo com a submetralhadora na mão direita, um estilete na mão esquerda e um fuzil atravessado nas costas. Ele era diferente dos outros, que pareciam animais selvagens, grunhindo o tempo todo, em atitude ameaçadora. Percebeu também que aquela criatura que portava a submetralhadora era a única que estava armada. De vagar e muito calmo, o ser negro se aproximou do viajante.

 

- Que azar o seu, amigo... Topar com uma horda de inumanos sedentos de sangue.

 

                             Só então o comerciante pôde ver que até os dentes daquela criatura eram pintadas de preto, mas quando ele se aproximou ainda mais, constatou que não era tinta, mas propriamente dele. O homem estava diante de uma aberração totalmente tingida de preto. A única parte de seu corpo que estava à mostra e não era de coloração negra eram seus olhos, que possuíam um certo brilho azul, que o negociante chegou a conclusão que era radiação que por ali emanava. Entendeu então que estava diante de um dos braços direitos de Death Crawler, e não de um simples lacaio nascido do cruzamento com uma mulher humana.

 

- Senhor... Estou certo de que podemos negociar algo. Tenho certeza de que podemos chegar a um acordo. Eu certamente tenho algo de que o senhor precisa e estou totalmente disposto a lhe repassar.

 

- Sim, você tem algo que aprecio. O sangue que corre em suas artérias e os órgãos que vou assar naquela fogueira, tão logo tiver arrancado sua maldita cabeça.

 

- Por favor... Escolha algo e tome para si. Fique com tudo que tenho. Tome meu carro. Eu voltarei pra casa a pé. Não me importo.

 

- Idiota... Você é retardado? Tudo o que está já me pertence, inclusive você. Não preciso negociar nada.

 

- Eu tenho algo... Eu tenho algo precioso para o senhor aqui comigo. Algo de valor inestimável.

 

- E onde está? Passe pra mim.

 

- Esta coisa está em minha mente, e é uma informação valiosa. Mas para eu lhe contar, preciso de uma garantia de que me deixará ir.

 

- Algo como minha palavra de honra?

 

- Sim... Tenho certeza de que o senhor é uma pessoa honrada e séria, não é mesmo?

 

- Não sei porque, mas tenho a impressão de que você está dizendo isso por não ter outra escolha. Vamos logo com isso e me diga o que eu preciso saber.

 

- O senhor ainda não me disse seu nome e nem me deu a sua palavra.

 

- Meu nome original não existe mais. Eu agora sou conhecido como Shadow Killer (Assassino Sombrio). Eu prefiro este, pois possui mais impacto e é mais a minha cara, você não concorda?

 

- Sim senhor.

 

- Ok, eu lhe dou a minha palavra de que não lhe farei mal em troca da informação.

 

- Sim... Perfeitamente. Ok... A informação é que, pouco mais de um mês atrás, um comboio militar saiu da cidade redoma de Denver em direção ao Brasil. Os rumores que estão rolando por lá é que o coronel foi buscar uma arma capaz de aniquilar de uma só vez, todos os deformados. Parece que é uma espécie de bomba atômica ao contrário. A arma, depois de detonada na área de exposição, vai extinguir toda a radiação e, conseqüentemente, eliminar vocês.

 

- Interessante história, porém, como cientista nuclear que fui, duvido que tal máquina possa existir. Creio que deva ser um improviso de uma mente desesperada buscando auto-preservação, mas ainda assim levarei o assunto a meu chefe, Death Crawler. Acho que você já deve ter ouvido falar dele.

 

- Sim senhor.

 

- Bom, hora de morrer.

 

- Mas o que é isso...? O senhor prometeu...

 

- Eu não prometi, idiota, eu dei minha palavra. E minha palavra foi de que eu não lhe faria mal. Quem vai fazer não sou eu, mas sim meus filhos, que estão com fome desde cedo. Você será seu almoço. A propósito, não gosto da palavra “deformados”. Prefiro que nos chamem de inumanos. Podem se divertir, meninos, mas deixem um pouco pras suas irmãs.

 

                              O pobre homem engoliu um pouco de ar e fechou os olhos. Não conseguia acreditar que estava ali, passando por aquilo. Os zumbis caíram por cima dele, rasgando sua pele e carne com suas próprias unhas imundas, enquanto o debochado pai deles se afastava em direção as filhas, que dançavam em torno da fogueira, aguardando por um pedaço de carne fresca. Ele ouviu um grito histérico de dor e olhou para trás, só para ver o homem, já ensangüentado, tentando fugir de seus algozes e sendo dominado logo em seguida. Uma brutal mordida em seu pescoço acabou por romper uma artéria e segundos depois ele já não gritava. Shadow Killer sentiu uma pontada de preocupação ao relembrar a história contada pelo homem e sabia que deveria informar seu mestre o quanto antes, então, pegou um radiotransmissor em seu bolso e informou-lhe todo o ocorrido.

 

- Não acho que tal máquina exista, mestre. Parece ficção.

 

- Por via das dúvidas, entre em contato com Snake Wish (Feiticeira Serpente). Sua equipe está no Novo México. Mande-a interceptar o comboio e me trazer o líder deles para ser interrogado. Quanto a todos os outros... Mande-a oferecer em banquete a seus rebentos.

 

                              Snake Wish estava tomando banho em um lago quando recebeu a notícia. Sorrindo, recolocou sua curta roupinha que mais lembrava uma fantasia cavada de desfile carnaval. Em sua tanga, um grande, escamoso e afiado rabo pendia. Mal podia esperar para por suas mãos naqueles suculentos soldados.

 

 

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