Por André Nunes
Dedico meu primeiro
livro à minha mãe, Roseli
Reis de Faria, por ter
me apresentado ao
fantástico universo
da leitura.
Índice de Capítulos
1 - Dimensão Paralela
2 - De Volta à Dimensão Sinistra
3 - Dimensão Sinistra – Ela Existe!
4 - Inferno na Terra
Capítulo 1
Dimensão Paralela
Meu nome é Marcos Antônio, mas eles costumavam me chamar de Bicudo. Eu estava tentando prestar atenção na aula de Física, enquanto o Animal fazia um tremendo barulho batendo na própria mesa com seu caderno. Seu nome verdadeiro era Eduardo. Na nossa turma de primeiro ano do segundo grau no Colégio Inspiração havia três Eduardos. Animal era o mais barulhento deles. Um dos outros Eduardos, que na verdade se chamava Carlos Eduardo, estava discutindo com o Marcel, como sempre. Ambos estavam sentados atrás de mim.
Marcel era um escuro alto e magro e estava servindo o exército naquela época. Era o mais velho de nosso grupo (formado por eu, Carlos Eduardo, Lúcio e ele) e estava com dezoito anos. Carlos Eduardo tinha estatura média, era parrudo e muito branco. Tinha um gênio terrível, e agradeço por ele ser meu amigo e não o contrário. Lúcio era moreno claro, tão parrudo quanto Carlos Eduardo, e muito extrovertido, mas também não levava desaforo pra casa. Eu era e continuo sendo baixinho e gordinho, na época com dezesseis anos contra dezessete de Lúcio e Carlos Eduardo.
Para explicar mais ou menos a personalidade de cada um, vou contar uma história ocorrida alguns dias antes daquele. Lúcio chegou um pouco atrasado na aula alegando ter sido vítima de uma tentativa de assalto em uma ponte ali perto. Obviamente não entregou a carteira e o relógio que os três assaltantes exigiram, e acabou se embolando com os três. Estava arranhado, soado e possesso. Carlos Eduardo levantou-se de um pulo e exigiu de Lúcio que este nos mostrasse onde os marginais estavam. Fomos correndo para o local, mas não encontramos mais ninguém. Estou certo de que teria havido um tremendo combate caso os tivéssemos localizado.
Em certa ocasião, num barzinho ao lado do Colégio, num intervalo, lembro-me que Lúcio comentou com Carlos Eduardo.
- Reconheço que você é um dos caras mais corajosos que eu já conheci, Eduardo, mas tenho que te dar um alerta... Se você continuar com essa personalidade, agindo sem medir consequências, vai morrer cedo, meu camarada.
- Que nada... Covarde é que morre cedo. Tô brincando... É, você tem razão, Lúcio. Só que eu nunca vou deixar de ser assim. Vamos ver no que é que vai dar.
Acho que a cena envolvendo Carlos Eduardo e sua personalidade extrema que mais me marcou naquele tempo foi quando em uma ocasião pegamos um ônibus, eu, ele e a namorada dele, pra ir a um Shopping na Penha. O ônibus estava meio cheio e uns caras que tinham acabado de entrar ficaram tirando sarro na garota dele. A porrada estancou feio ali dentro mesmo. Tinha gente se jogando pela janela com o veículo em movimento. Eu também quase fui junto. Quando Lúcio viu o que sobrou do rosto de Carlos Eduardo, desatou a gargalhar. Em falar neles dois, havia uma coincidência interessante. Nasceram exatamente no mesmo dia mês e ano. Eu já conhecia o Carlos Eduardo antes do início das aulas, mas não tinha intimidade. Marcel também conhecia Lúcio de vista, por morarem na mesma rua. Depois que fizeram amizade na sala de aula, Lúcio passou a ir a escola de carona no Gol de Marcel.
Como eu estava dizendo, Animal fazia um tremendo barulho com o caderno em sua mesa. Barulho este que foi interrompido por um assovio estridente e pelas expressões de surpresa e pavor. Era uma quinta-feira dia vinte de outubro de 1988. Espantosamente o teto da sala de aula se abriu, as estrelas ficaram turvas e após uma intensa e sinistra gargalhada, toda a turma 1.102 foi sugada com violência para dentro do vórtice que acabara de se formar onde há poucos minutos ficava o terraço do Colégio Inspiração.
Não sei exatamente quanto tempo se passou até que eu acordei, e sinceramente, pensei que estava acordando de um pesadelo terrível. A hipótese de pesadelo foi logo descartada, pois a dor intensa que senti ao abrir os olhos me deu a certeza de que o que parecia ser impossível ou no mínimo inacreditável havia acontecido. Ouvi um ruído vindo de trás de mim e me virei assustado. Um animal esguio que jamais havia visto antes acabara de passar por entre as plantas. E o que era mais incrível... Eu estava no meio de uma floresta. Tornei a ouvir o ruído que me despertara e o mesmo animal passou de uma moita para outra, foi então que percebi que ele estava me espreitando. Me desesperei. A folhagem se abriu e meu terror aumentou porque desta vez ele estava bem próximo de mim, babando. Seus olhos eram avermelhados e seu grunhido lembrava o som que os porcos fazem embora esta criatura nada se assemelhasse com os suínos. Me encarando diretamente, o esguio animal aumentava o ritmo dos passos até que repentinamente saltou em minha direção abrindo e fechando a boca ensandecidamente. Agi por puro instinto de sobrevivência. Sequer raciocinei. Escalei a árvore que estava ao meu lado com toda a rapidez que pude, com a mandíbula daquele pequeno monstro a centímetros da minha carne. Só parei quando estava a uns trinta metros do chão. Olhei pra baixo e vi o sedento animal arranhando aquela estranha árvore, sem conseguir escalá-la. Continuei subindo até chegar ao topo da árvore, de onde tive uma boa visão de tudo lá embaixo. Foi então que vi alguém se movimentando entre a vegetação a uns duzentos metros da árvore onde eu me encontrava. Um pouco mais adiante avistei um grupo de pessoas se aproximando e o homem que vira há pouco se uniu a eles. Tornei a olhar a criatura e o que pensei que fosse acontecer acabou por ser. Ela os ouviu. Se abaixou por entre as plantas numa atitude de animal que vai caçar e começou a se arrastar na direção deles. Gritei com todas as minhas forças para alerta-los, mas eles pareciam muito confusos e ficaram parados onde estavam. O maldito animal então saltou furtivamente pegando Marcel pelo pescoço e o arrastando enquanto os outros se debatiam e corriam. A criatura adentrou a mata carregando Marcel entre os dentes como se este pesasse poucos quilos. Nunca mais voltamos a ver nosso amigo. Quando consegui alcançar o grupo que ainda estava perplexo com o acontecimento, fui informado que Carlos Eduardo, numa explosão de fúria, se atirou floresta adentro em perseguição ao estranho animal. Ninguém tentou impedi-lo. Ficamos todos ali, apavorados, esperando que outros alunos aparecessem e que Carlos Eduardo retornasse, tentando entender o que nos tinha acontecido, até que começou a anoitecer. Começou também a fazer muito frio, nos obrigando a acender uma fogueira. Márcia, que era fumante, nos facilitou trazendo um isqueiro. Das poucas mulheres da turma 1.102, Márcia era a mais apegada ao nosso grupo. Era alegre e descontraída e com um Q.I. bem abaixo dos seus 16 anos de idade. Era a primeira vez que eu a via chorar. Se aproximou de mim, deitou-se no meu ombro e desabafou.
- Não acredito que aquilo comeu Marcel. Onde nós estamos? Por que viemos parar nesse lugar? Não acredito que estamos no Brasil. Tudo aqui é muito diferente.
- A coisa é mais complicada do que você imagina, Márcia. De fato nós não estamos no Brasil. Nós nem estamos no planeta Terra.
- Que loucura é essa? O que é então? Estamos em outro planeta? Fomos seqüestrados por alienígenas?
- Nessa altura do campeonato, eu nem disso duvidaria.
Márcia, que outrora foi possuidora de coxas lindas, apresentava naquele momento um ferimento enorme na perna direita. Tive pena dela, mas não imaginava o que fazer para ajuda-la. Lúcio também percebeu.
- Marcinha... É melhor desinfetar esse machucado. Sei que vai doer muito e poderá deixar uma cicatriz desagradável, mas é melhor eu pegar um desses gravetos em brasa e cauterizar isso antes que infeccione.
Ao perceber a intenção de Lúcio, a menina que já chorava muito passou a soluçar em desespero total. Pedi a ele então que desistisse da idéia.
- Ela não vai agüentar, cara. Olha só o estado emocional dela.
- É melhor fazer isso agora do que esperar o pior. Tá legal... Daqui a pouco eu procuro um pouco de água limpa para pelo menos lavar o machucado. Se é que existe isso por aqui. Luiz... Você que é o representante da nossa turma, se lembra quantos alunos estavam presentes?
- Eu passei a relação de chamada e a guardei no bolso. Espere um pouco. Aqui está ela. Trinta e cinco! Trinta e cinco alunos confirmados.
- Então trinta e seis pessoas, contando com o professor Mauro, foram sugadas naquele vendaval, ou seja lá o que for aquilo que nos arrancou do colégio. Me faz um favor, Luiz... Conte quantos de nós estão aqui neste momento.
Luiz era franzino, tinha uma expressão de assustado (mesmo antes do ocorrido. Era característico dele) e tão branco quanto Carlos Eduardo. Ajudava seu pai que era torneiro mecânico em sua oficina de reformas. Conhecia Lúcio de longa data, pois cresceram em ruas próximas. Após alguns minutos ele retornou alegando que havia vinte e dois alunos ali contando consigo mesmo. Chegamos a conclusão de que nove pessoas estavam desaparecidas, uma vez que era sabido que três de nós haviam morrido na queda, Marcel fora atacado e provavelmente devorado pelo estranho animal e Carlos Eduardo havia se descontrolado e se perdera desde então.
- Temos de procurar os outros, Bicudo.
- Vamos deixar isso pra amanhã de manhã, Lúcio. Um daqueles animais pode aparecer. De dia corremos menos perigo.
- Você está certo. Será que Carlos Eduardo conseguiu salvar Marcel?
- Lúcio... Seja realista. Você viu a maneira como aquilo mordeu o pescoço dele. Não pode ter sobrevivido.
- É verdade. Só nos resta torcer pra que o Cadú esteja bem.
Cadú, para quem não sabe, era o apelido de Carlos Eduardo. Os três companheiros de classe que confirmadamente haviam morrido na queda eram Marcelo, Luis Cláudio e Felipe. Eles foram encontrados logo após o fenômeno ter ocorrido. Tiveram o azar de cair sobre rochas. Eu não quebrei nenhum osso por pura sorte. Acho que os galhos da árvore que estava ao meu lado quando acordei amorteceram a minha queda. Carlinhos não teve a mesma sorte. Quebrou a perna. Lúcio tinha um corte que se iniciava na testa, passando pela sobrancelha sem ter afetado o olho, e indo até a maçã do rosto. Segundo ele, o mesmo galho que lhe salvou a vida por pouco não o cegou. Haviam outros feridos entre nós. Muitos choraram a noite toda. Alberto, o CDF da turma se aproximou da fogueira e nos pediu a todos para não se espalhar caso a criatura retornasse, pois acabaríamos nos perdendo uns dos outros. Deu a sugestão de subirmos nas árvores para nos proteger, uma vez que aquela coisa não conseguiria nos perseguir. Já estava dando sinais de que iria amanhecer quando surpreendentemente Carlos Eduardo apareceu em nosso acampamento improvisado. Todos nós o cercamos de imediato, atônitos, querendo saber o que havia acontecido.
- Não consegui alcançar aquele desgraçado. O animal é muito veloz e sabe como se mover nessa floresta. Quando desisti de persegui-lo, percebi que estava perdido, então sentei, exausto e acabei adormecendo. Quando acordei percebi a fumaça e vim em sua direção, até que achei vocês.
- Estamos felizes em te ter de volta, cara.
O comentário era de Lúcio. Ele realmente gostava do Cadú. Os dois eram quase irmãos.
- Enquanto eu corria atrás da criatura, passei pelo corpo do Eduardo Farias. Acho que ele quebrou o pescoço na queda. Também vi o Antônio. Ele também morreu, mas não acho que foi na queda. Estava todo rasgado. Uma daquelas criaturas deve ter encontrado ele.
Mal Cadú acabara de falar, para nossa surpresa e felicidade mais dois colegas até então desaparecidos chegaram juntos ao nosso acampamento, também atraídos pela fumaça. Eram Josilene e Moreno, reduzindo desta maneira o número de desaparecidos para quatro. Os olhos de Lúcio brilharam quando ele viu que Josilene estava aparentemente bem. Ele tinha uma queda por ela e todos nós sabíamos. Ele não fazia segredo quanto a este sentimento.
- Vocês encontraram alguém pelo caminho? Alguém que não tenha sobrevivido?
- Não... Mas sabemos que o Pancadão morreu. Quando me recobrei da queda, vi Josilene tentando tirar ele de um lago, mas ela não conseguiu. Um peixe ou algum outro bicho mordeu ela. Não acho que teria adiantado. Ele estava imóvel. Deve ter se afogado.
Amanheceu e começamos a procurar os que ainda estavam desaparecidos. Após alguns minutos avistamos o professor Mauro imóvel, sustentado por alguns galhos no alto de uma árvore. Nossos temores se concretizaram quando Lúcio a escalou, e em seguida apontou seu polegar para baixo, indicando que nosso mestre estava morto. Pouco mais a frente localizamos mais um infortunado. Era Carine. Reconhecemos mais pela roupa que pelo rosto. Estava semi-devorada. Continuamos procurando, exaustos, com sono e famintos, parando vez ou outra para comer frutas que sequer sabíamos se eram venenosas. Faltava achar um corpo. O de Hélio. Após várias horas, acabamos desistindo e começamos a nos distanciar daquele lugar. Lúcio olhou para seu relógio de pulso.
- Não estou entendendo, Bicudo. A noite de ontem durou umas doze horas. Quanto tempo levará o dia?
- Mais um indício de que não estamos no planeta Terra.
- Do que você está falando? Onde estamos então?
- Em qualquer outro lugar. Você já viu esta vegetação? Já viu algum animal pelo menos parecido com o que pegou Marcel? Já esteve em algum país onde a noite dura doze horas? Percebeu que havia três luas no céu ontem? Onde você acha que estamos? No país das maravilhas? Quem sabe a gente não encontre Alice por aí?
Lúcio permaneceu em silêncio. Sua expressão era de muita preocupação. Alguns de nós tinha retalhos no lugar de roupas. Muitas horas de caminhada depois, e chegamos a um cercado. Para nossa surpresa aquele lugar parecia ter sido construído por alguma raça inteligente. A cerca, que era feita de troncos amarrados por cipó, possuía o diâmetro de um pequeno bairro e em seu interior havia muitas construções que obviamente se tratavam de moradias. As pequenas casas eram ovais e pareciam construídas com madeira, folhagem e uma espécie de argila esbranquiçada. Percorremos todo o interior do cercado, mas ficou claro que aquele lugar estava abandonado. Foi engraçada a maneira como adentramos aquele lugar. Estávamos tensos e sorrateiros. Ninguém deu sequer um pio, até que Animal quebrou o gelo ao gritar.
- Ei, pessoal... Dêem uma olhada nisso.
No centro do cercado havia um pomar, repleto de frutas suculentas. Olhamos uns para os outros, sorrimos e nos deliciamos. Permanecemos naquele cercado por vários dias, por ele nos fornecer abrigo e alimento. Um certo dia, Flávio apareceu com algo surpreendente. Ele havia achado uma espécie de mapa na casa em que dormia. O mapa não continha escrita, mas era bem específico. No extremo direito do mapa havia o desenho de um ser com olhos de gato, chifres enormes e orelhas pontudas com brincos em forma de meia-lua. Várias áreas do mapa mostravam regiões distintas e nelas estavam vilarejos caracterizados por desenhos de cabaninhas, inclusive aquele cercado onde estávamos. O reconhecemos por causa da gravura das cercas e do pomar. Aquele mapa nos animou a continuar nossa peregrinação. Queríamos a qualquer custo encontrar uma raça inteligente que nos pudesse dizer ou ao menos dar uma pista de o que estávamos fazendo naquele lugar e, principalmente, como voltar para casa. Enchemos algumas mochilas com todas as frutas que pudemos e seguimos para um trecho que o mapa apontava como sendo um outro vilarejo. Cadú me alugou o tempo todo, reclamando da vida. Ele dizia que justo agora que fizera as pazes com a mãe e o padrasto e que resolvera aceitar a união dos dois, tudo aquilo estava acontecendo. Disse que estava se sentindo bem com a decisão que tomara a respeito do casamento dos dois, e que pela primeira vez estava se relacionando bem em casa. Ele namorava firme há anos uma garota mais velha que ele e estava muito preocupado a respeito do que ela iria imaginar que teria acontecido. Pra mim, ele estava mesmo era louco com a idéia de que talvez ela se cansasse de esperar por ele e colocasse outro em seu lugar. Andamos e andamos, até que o território deixou de ser uma mata densa para se tornar um terreno plano e de pouca vegetação. Chegamos a uma montanha que estava descrita no mapa. Como estávamos exaustos após horas de caminhada, acampamos antes de começar a subida. A noite se fez e ali dormimos. Acordamos com o som de pancadas. Era Wellington que batia incessantemente com um galho contra um animal que se assemelhava a uma coruja, mas tinha três vezes o tamanho de uma, e no lugar do bico havia presas. Assamos aquilo na fogueira e até eu experimentei um pouco. Não era ruim, mas o sal de cozinha faz muita falta.
- Onde foi que você achou esse bicho, Wellington?
- Eu ouvi um grunhido vindo daquela árvore e peguei um galho em chamas da fogueira pra ver do se tratava. Quando me aproximei, o desgraçado saltou na minha direção. Não pensei duas vezes. Arrebentei com ele.
Acordei no dia seguinte com Lúcio me cutucando a costela. Começamos então a escalar aquela enorme montanha. Seria mais um grande desafio. Eu nem imaginava que estava preste a viver a experiência mais surpreendente da minha vida. Em algum ponto da subida, me destaquei dos outros para urinar e me aproximei de uma gruta. Quando terminei, fixei a visão para dentro da mesma e quase desmaiei de susto. Num canto escuro havia uma criatura que aparentava ser um homem, mas tinha quase uns três metros de altura, olhos muitíssimo arregalados, magro, careca, e ao invés de cinco dedos nas mãos e nos pés, ele possuía apenas três. Gritei de pavor e fui atendido imediatamente pelos meus colegas, que ficaram tão apavorados quanto eu. O engraçado é que acho que a pessoa mais espantada ali naquele momento era o próprio hominídeo. Ele se encolheu no canto onde se encontrava e não parava de tremer e gemer.
- O que é essa coisa?
- Não sei, mas tenho a impressão de que não é agressiva. Está com mais medo de nós do que nós dela.
- Veja só. Ele usa uma espécie de saia como vestimenta. Isso demonstra certa inteligência. Talvez possamos nos comunicar com ele. Quem sabe até não nos diz como voltar pra casa. Olha... Está apontando pro topo da montanha. Venha amigo... Nos leve até o que deseja nos mostrar. Será que ele pertence ao vilarejo discriminado no mapa?
- Vamos descobrir... Abram espaço pra ele passar.
Tão logo abrimos espaço, o gigante amarelado saiu rumo ao topo da montanha e passamos a segui-lo de uma certa distancia. A jornada nos custou mais algumas horas, porém não ficamos surpresos com o resultado. Lá estava a aldeia do nosso amigo. Ao contrário das casas de argila esbranquiçada do cercado que foi nosso lar por alguns dias, aquela gente vivia em enormes cabanas construídas no topo de árvores. Havia milhares daqueles zumbis circulando por ali, e ao nos verem, nos cercaram, curiosos. Por sorte eram amistosos. Quando a curiosidade cessou, eles simplesmente voltaram aos seus afazeres. O único que não nos abandonou foi o hominídeo que nos levou até lá. Batizamos ele carinhosamente como Tonga. Nosso amigo fez sinal para continuarmos lhe seguindo, e foi o que fizemos. Passeamos pela aldeia, no que percebemos várias outras criaturas co-existindo com aquele povo. Tratava-se de animais de estimação. Tonga parou em frente a uma árvore e alcançou a cabana no topo dela por intermédio de cipós. Ele fez aquilo com tanta facilidade que nos impressionou. Tivemos de aprender a fazer o mesmo e nos divertimos muito com aquilo. A companheira e o filhote de Tonga eram extremamente tímidos, mas se habituaram a nós. Tonga tirou dos bolsos de sua saia (que pareciam ser feitas de folhas bem rígidas) algumas raízes comestíveis que dias depois aprendi a colher na gruta em que o conheci. Deu pra nos alimentar por algumas horas. Os dias foram passando e nossa afeição por aquele povo aumentou muito, principalmente por Tonga, que nos ensinou onde e como procurar alimento. Todos nós perdêramos muito peso nos dias que se seguiram ao incidente, e agora começávamos a recuperar um pouco, pois as frutas e os tubérculos que colhíamos eram ricos. Aquela raça de hominídeos era totalmente vegetariana. A carne nos fazia muita falta. Como a cabana de Tonga havia sido projetada para ele e sua família, ninguém conseguia ter conforto, principalmente para dormir, então com sua ajuda começamos a construir nossa própria cabana no topo de uma árvore. Foi nessa ocasião que substituímos nossos trapos de roupa por saiotes. As mulheres além dos saiotes usavam colãns para tapar os seios. Tudo feito com a ajuda da companheira de Tonga. Tivemos momentos felizes naquele povoado, principalmente quando da ocasião da construção de nossa casa na árvore. Batizamos o local onde caímos de Floresta Marcel e a montanha de Pico dos Zumbis. Quando nossa moradia ficou pronta era a maior do povoado, com um total de sete quartos com varandas independentes. Fizemos uma festa incrível. Wesley comentou que só faltava a cerveja. Ele e Ana Cláudia estavam se relacionando havia algum tempo e tiveram um dos quartos só pra eles. Wesley era magro, aproximadamente 1,75 cm, 19 anos, branco e muito gozador. Ana Cláudia era dois anos mais nova e nada bonita de rosto, mas tinha um corpo escultural. Alberto os aconselhou a evitar a concepção, se valendo do fato de que aquele planeta não era o lugar ideal para se ter um filho. Foi nessa época que percebi que Márcia estava interessada em Lúcio. Ela nem conseguia disfarçar. Curiosamente o ferimento de sua coxa não infeccionou. Pelo contrário... Curou em tempo record, deixando uma enorme cicatriz naquela perna linda. Lúcio também ganhou uma cicatriz grande na face, mas não era feia. Deu um ar mais agressivo a ele. Márcia tinha longos cabelos pretos e eu a admirava desde os tempos da escola. Fiquei muito infeliz quando percebi seu interesse por Lúcio. Não tinha coragem de falar sobre os meus sentimentos com ela. Eu achava que ela ficaria surpresa e me descartaria com todo seu charme e educação. Lúcio por sua vez parecia ainda mais interessado em Josilene. Flagrei-o por diversas vezes engolindo ela com os olhos.
Eu estava sentado na varanda do quarto que dividia com outros colegas quando Animal se sentou ao meu lado. Ele era da minha idade, bem moreno e possuía um bigode ralinho. Era morador da Vila da Penha. Seu companheiro inseparável na sala de aula era o Alexandre (Pancadão). Certa vez esta união foi alvo de piadinhas de nosso professor de matemática, o Sr. Aloísio. Animal retrucou a piada com ignorância, se dizendo espada. Como eu ia dizendo, ele se sentou ao meu lado e sugeriu que nosso grupo precisava de um líder, para acabar com as pequenas desavenças e discordâncias que estavam ocorrendo desde o primeiro dia. Concordei com ele.
- Você tem razão. Vamos propor aos outros uma votação.
- Isso... Veja só, Bicudo... Se você votar em mim só vai ganhar com isso, ok?
- Tudo bem... Eu vou pensar.
Claro que eu nunca votaria nele. Animal era um perfeito 171. Nunca morri de amores por ele. Nem eu e nem ninguém. Se eu fosse votar em alguém seria em Carlos Eduardo ou Lúcio. Tanto um quanto outro tinham espírito de liderança e eram meus amigos. No dia seguinte, Animal já havia feito sua propaganda para todo o restante do grupo. Ficou combinado que votaríamos no dia seguinte e que a pessoa eleita seria seguida fielmente pelos outros. Naquela manhã resolvemos ir caçar, pois já não agüentávamos mais a dieta vegetariana. Confeccionamos alguns arco-e-flechas e facas feitas de pedra. Nós as amolamos e as colocamos em nossos sarongues. Todos os homens da turma adentraram a floresta que ficava localizada no outro extremo do cume da montanha. Os arqueiros, que eram Moreno, Lúcio e Animal iam na frente, seguidos pelos demais. Poucos minutos depois que ganhamos a floresta, avistamos um pequeno animal do porte de um esquilo, mas como ninguém foi capaz de alveja-lo com flechas, ele foi mesmo abatido com estocadas de faca. Continuamos nossa busca, pois um animal daquele tamanho não daria pra dividir por vinte e seis pessoas. Depois de mais alguns minutos de caminhada, localizamos um animal maior. Não conheço nenhum bicho semelhante de nosso mundo pra comparar aquele espécime. Só posso dizer que era do tamanho de uma capivara adulta. Lúcio, Moreno e Animal alvejaram a criatura simultaneamente. Como ela continuava se movendo com várias flechas espalhadas pelo corpo, Carlos Eduardo e Flávio apoiaram os joelhos sobre ela e passaram a esfaqueá-la. Foi quando um javali pesando uns duzentos quilos nos surpreendeu a todos jogando Flávio a vários metros de distância e esmagando a coxa direita de Cadú com suas presas enormes. Cadú caiu para o lado enquanto aquele animal ensandecido se concentrou em devorar a criatura que havíamos abatido. A esta altura estávamos quase todos protegidos em cima de árvores. Os arqueiros conseguiram alvejar o javali algumas vezes, mas este parecia nem se incomodar com as flechas. Carlos Eduardo, que não parava de gritar e se contorcer de dor, pegou sua faca caída e avançou sobre o monstro. O maldito animal então o mordeu no mesmo local de antes, desta vez arrancando a perna de Cadú que terminou por desmaiar. Lúcio gritou do alto da árvore onde estava e com ódio nos olhos largou o arco e saltou em cima do javali com uma faca, atingindo seu crânio em cheio. Quando ouvi o som causado pela faca na cabeça do animal imediatamente percebi que ele estava acabado. Lúcio se concentrou então em Carlos Eduardo, mas seus olhos estavam revirados e de sua artéria femoral jorrava sangue sem parar. As folhas das plantas que estavam ao seu redor e o corpo de Lúcio jaziam banhados do sangue dele. Percebi que Lúcio não sabia o que fazer, e após alguns segundos Cadú morreu nos braços dele. Lúcio chorou. Retalhamos o javali em vários pedaços para podermos carrega-lo para o povoado e no meio do caminho enterramos nosso colega. Nosso compadecimento aumentou tremendamente ao chegarmos ao povoado. Nunca podíamos ter imaginado o que aconteceria. Os zumbis nos viram entrar com os pedaços do javali e com os outros dois animais abatidos e tiveram uma reação inesperada. Gritavam em protesto e gesticulavam querendo nos dizer para sair da aldeia. Tonga logo nos avistou e baixou a cabeça, envergonhado conosco. Nos deixaram apenas pegar nossos pertences e as meninas que nos aguardavam em nossa ex-cabana, e então nos expulsaram. Naquele dia sofremos uma dura derrota. Voltamos a adentrar a floresta que passou a se chamar mais tarde de Floresta Cadú, mas acampamos por volta de um quilômetro depois. Estávamos exaustos, chateados e famintos. Fizemos uma fogueira e comemos parte da carne que trazíamos. As meninas choravam muito. Nossa turma ainda contava naquele dia com vinte e cinco das trinta e seis pessoas que caíram naquele planeta maldito. Já havíamos perdido nove colegas e um professor e Hélio não havia sido localizado. Após a refeição, decidimos votar pelo líder ali mesmo, pois o momento era propício. Eu, Lúcio, Márcia e Animal queríamos seguir o mapa até o próximo povoado. Sérgio, Josilene e Luciene queriam voltar ao ponto em que caímos na floresta Marcel achando que alguém poderia ter conseguido nos seguir de nosso mundo e nos dar ajuda (hipótese que achei ridícula), Moreno, Wesley e Ana Cláudia achavam que devíamos voltar ao Povoado Zumbi na esperança de convencê-los ou forçá-los a nos aceitar de volta. Luiz, Alberto e Wellington eram favoráveis a construir outra cabana dentro da Floresta Cadú. Por sua vez, os irmãos Carlinhos e Carla desejavam simplesmente que voltássemos ao cercado que nos serviu de abrigo tempos atrás e de lá não mais sair. Os outros eram neutros ou estavam em dúvida sobre o que deveriam fazer. Cinco de nós se propôs a ser o líder. Animal (que já não era nenhuma surpresa), Moreno, Luiz, Sérgio e Alberto. A eleição foi secreta. Anotamos o nome de nosso candidato em pequenos papeis e os juntamos em uma mochila, depois os analisamos todos juntos. Alguns votaram em Luiz por ele ser o representante da turma 1.102. Alguns votaram em Alberto por ele ser sem sombra de dúvida o homem mais inteligente entre nós. Moreno e Sérgio também ganharam alguns votos e Animal somente um, o seu próprio. No final, fiquei satisfeito com o resultado, pois o ganhador era o meu grande amigo Lúcio. Se Cadú ainda fosse vivo, acho que teria grande chance de ter sido ele o eleito, pois com certeza teria se candidatado. A disputa seria acirrada, mas na minha opinião, naquela época Carlos Eduardo era o mais popular entre os dois.
- Obrigado por todos me confiarem uma tarefa tão difícil. Quero que vocês saibam que meu objetivo principal será nos tirar desse planeta, ou seja lá o que for isso. Quero levar todo mundo de volta pra casa e não vou medir esforços. Respeito a opinião de quem queria voltar ao cercado ou mesmo construir uma cabana aqui nesta floresta, mas estaríamos nos entregando. Sei que podemos achar o caminho de volta. Não quero viver o resto da minha vida neste lugar estranho. Voltar ao ponto de partida na Floresta Marcel? Acho muito improvável que vá nos trazer resultados positivos. Também não concordo em voltar ao povoado Zumbi. Eles se iludiram conosco. Trata-se de um povo adorável. Forçá-los a nos aceitar? Que ingratidão é essa? Esqueceram o que eles fizeram por nós? Eles só nos expulsaram porque tem aversão a violência. Agora acham que somos selvagens. Quem sabe um dia nos perdoem? Bom... Eu estou pronto para continuar... E vocês?
- Eu ainda estou cansado e muito desmotivado.
- Mais desmotivado do que eu deveria estar? No primeiro dia perdi um grande amigo e hoje o segundo. Daqui a algumas horas vai anoitecer e paramos novamente. Temos carne e frutas para sobreviver alguns dias. Quando for necessário caçaremos de novo.
Após o fim do discurso, mantivemos nossa palavra e seguimos Lúcio. Ele ia na frente, só de sarong, com o arco-e-flecha atravessado no peito e a faca na mão afastando a vegetação. Anoiteceu e dormimos. Naquele planeta desconhecido não havia pernilongos. Pra dizer a verdade era raro ver um inseto, por isso as noites eram quase silenciosas. Quando um barulho qualquer nos acordava, ficávamos alerta pra valer. Levantamos antes de amanhecer como sempre. Isso era porque as noites lá eram bem maiores do que em nosso planeta natal. Passamos a fabricar lanças grandes e pequenas e porretes com a madeira local. Nesta altura, armas é que não faltavam. Até as mulheres andavam protegidas com lanças pequenas e facas. Animal se aproximou de Márcia, que trazia uma mochila e enfiou sua mão dentro dela, tirando um apagador.
- Que droga é essa? Estou pensando que vou tirar um suculento pedaço de carne assada de dentro da mochila e me vem um apagador?
- Esta não é uma mochila de comida, e sim de apetrechos. Isqueiros, roupas, canetas, cadernos, apagador...
- Fala sério... Isso não tem utilidade alguma aqui.
Dizendo isso, Animal atirou longe o objeto, indo pegar alimento em outra mochila. Cinco meses haviam se passado desde aquele fatídico dia na escola. Em nossa caminhada em busca do povoado discriminado no mapa, chegamos a um trecho daquela floresta que possuía uma mata tremendamente fechada. Aquilo nos atrasava o avanço terrivelmente. Num certo ponto, começamos a ouvir estalos estranhíssimos. Pareciam bolas de gude caindo num chão de piso. O som foi aumentado e ficamos assustados, então paramos e ficamos esperando cessar, mas ao invés disso o ruído continuou aumentando. Lúcio então se abaixou no mato e nos mandou fazer o mesmo. Se fosse algum ser vivo, ele esperava que passasse por nós sem nos ver. Arrastei-me até onde Lúcio se encontrava abaixado e vi na hora que ele tirou uma flecha da mochila que tinha nas costas. A colocou no arco e puxou o mais que pôde. Ouvimos Flávio gritar e nesse momento Lúcio se ergueu pronto para disparar a flecha, mas só conseguimos ver Flávio ser puxado pra cima de uma árvore por algo transparente parecido com teia. Lúcio fixou a visão no topo da árvore e só então conseguiu ver uma aranha de uns três metros. De todas as criaturas que tinha visto até aquele momento naquele lugar temeroso, aquela foi a que mais me apavorou. Tive vontade de correr, mas me limitei a ficar atrás de Lúcio. Quando ele percebeu que ela iria enfiar as presas em Flávio, ele finalmente a alvejou. Isso não a impediu de decepar-lhe a cabeça. Lúcio tornou a alveja-la várias vezes até que a maldita terminou por cair, mas os estalos não cessaram, o que indicava que havia outras delas por ali, escondidas nas árvores. De repente, Mário, o surfista da turma (na verdade ele não era surfista, nós nos referíamos a ele assim por que era loiro de cabelos compridos) se ergueu com o arco na mão e fez vários disparos em direção a uma outra árvore. Vimos então mais uma delas cair, e ouvimos em seguida Mário gritar e aparecer por cima do mato suspenso pela teia. Rapidamente ele passou sua faca por ela conseguindo se libertar. A aranha, irada, deu um salto de mais de cinco metros na direção dele que sabiamente fincou uma lança em seu abdômen. Teria sido uma incrível vitória, se ela tivesse morrido rapidamente. A desgraçada, se contorcendo, alcançou Mário e o ferroou. Os outros arqueiros então deram cabo dela com vários disparos. Quando alcançamos Mário, ele estava espumando uma secreção branca pela boca e morreu em segundos. Ficou claro que as malditas aranhas eram venenosas. Mais dois de nós foram enterrados naquela floresta. Voltamos a nos mover, ainda mais desmotivados que antes. Carlinhos nos atrasava muito, pois quebrara a perna na queda meses antes, e apesar de lhe termos imobilizado com talos de madeira, o osso não havia se recuperado.
- Por que será que a perna do César havia curado bem e a de Carlinhos não, Lúcio? Os dois quebraram a perna com a queda, mas a do César se recuperou dias depois que a imobilizamos.
- O César não deve ter quebrado o fêmur, Bicudo, e sim destroncado. Carlinhos não teve tanta sorte. Coitado, sente dores terríveis.
- Coitada da irmã dele também, que serve de apoio o tempo todo.
Depois do episódio com as aranhas gigantes, começamos a perceber alterações no comportamento de Luiz. Ele parecia extremamente perturbado e às vezes dizia coisas desconexas. Lúcio desconfiou que estava enlouquecendo. Nosso amigo, que outrora fora o representante da turma 1.102 não estava agüentando a pressão que aquele lugar nos impunha. Nós homens estávamos com uma tremenda barba por fazer. O máximo que conseguíamos era aparar um pouco com a faca. Outra coisa que nos estressou muito foi a falta de água. Próximo ao povoado Zumbi havia uma nascente maravilhosa onde tomávamos banho todos os dias e também matávamos nossa sede. Agora estávamos andando há dias só com o suprimento que trazíamos nos cantis cedidos por Tonga, e não iria durar muito. Outra noite veio caindo e paramos mais uma vez. No caminho até ali, achamos uma toca com alguns felinos orelhudos e os levamos conosco. Eram cinco e nos serviriam como alimento. Sabíamos que eram somente filhotes, mas aquilo não era hora para termos crises de consciência. A pior parte foi decidir quem e como matá-los. Concedemos a tarefa a Wellington, uma vez que ele já havia demonstrado prática para tal.
- Peraí, pessoal... Aquela coruja crescida me atacou. Foi diferente. Mas tudo bem... Eu vou fazer.
Wellington então puxou o primeiro deles pra trás de um arbusto e quando ergueu a faca, foi surpreendido pela mãe do animalzinho. Pulamos em direção aos arcos e lanças que estavam deitados na grama e partimos pra cima dela, que berrava alto e num ímpeto de fúria investia ainda mais contra Wellington, que era um negro careca. Quando finalmente fizemos aquele gato enorme cessar, nosso amigo já estava mortalmente ferido. Escorria muito sangue de sua cabeça e também do ombro e braço esquerdos. Ele gemia muito alegando sentir uma forte dor de cabeça e alguns minutos depois desmaiou. Israel chegou bem próximo do grande felino e disse que ele ainda estava respirando. Rogério então se aproximou com uma lança e a fincou no coração do animal. Seus filhotes miavam sem parar, ao lado da mãe. Alguns chegaram a mamar nela, mesmo depois de morta. Wellington sobreviveu por toda a noite sem acordar mais. Desconfiamos que uma mordida havia fraturado seu crânio. As presas daquele animal eram enormes. Lembravam um pouco as do extinto tigre dentes-de-sabre. Pela manhã, Wellington parou de respirar sem que pudéssemos ter feito nada por ele. Nos afastamos dali e fomos seguidos pelos filhotes. Lúcio tentava enxota-los, mas foi impedido por Sandra e Aline.
- Não vou aceitar isso. Matamos a mãe deles. Esses pobres bichinhos não tem como sobreviver sozinhos.
- Sandra, o que você tem em mente? Vai amamentá-los ou alimenta-los? Mal há carne pra nós. Mal há água pra nós. É a lei da selva. Os mais fortes sobrevivem.
- Não adianta, Lúcio... Eu também não vou abandonar esses animais. Os pobrezinhos viram a própria mãe ser assassinada. Eu e Sandra vamos cuidar deles.
- Eu não consigo entender... Ontem a noite estavam todos de acordo que iríamos sacrificar os filhotes pra nos alimentar. Agora vocês se negam a abandoná-los.
- Porque agora já temos a mãe dele pra aplacar a fome e nos envolvemos com os pobrezinhos.
- Ha, ha, há... Eu não acredito no que estou ouvindo... Vocês ouviram isso? Olha, meninas, eu só vou concordar com isso por que sei que eles estão nos seguindo por causa do cheiro da mãe. Tão logo nós almocemos ela, o cheiro vai se extinguir e eles irão tomar outro rumo. Isso se eles sobreviverem até lá.
- Ok... Quero sua promessa de que quando nossa carne terminar eles não serão abatidos.
- Aí eu vou precisar da opinião dos nossos outros amigos, Aline... E aí, o que vocês acham?
- Deixa essas malucas pra lá, Lúcio... Elas estão querendo fundar a sociedade protetora dos animais desse planeta infernal. Concorde e vamos embora...
- Os outros estão de acordo com o Sérgio? Então está decidido. Os filhotes vivem. Quem diria... Ganhamos mascotes.
Lúcio tinha um ar de deboche. A atitude delas tinha justificava. Os animaizinhos pareciam lindos bichinhos de pelúcia de dar dó. Aline era uma moreninha de cabelos lisos compridos, bonitinha e magérrima. Sandra, que pesava uns 100 quilos antes da queda, agora estava até bonita, embora ainda tivesse que emagrecer mais. Israel que também era gordo estava esbelto. Todos os outros, que tinham o peso mais ou menos apropriado, apresentavam um emagrecimento excessivo, porém, todo o trabalho braçal que nos víamos obrigados a desempenhar naquele lugar, nos deixou sobre-carregados de músculos. Até as meninas estavam hiper saradas. Naquele momento, éramos treze homens e nove mulheres. As baixas entre os homens eram muito maiores. Pra dizer a verdade, até aquele momento só havíamos perdido Carine na queda. Eu estava tremendamente incomodado com as investidas de Sérgio em Marina. Ela era uma loira bonita, apesar das espinhas, de cabelos curtos e corpo escultural. Estava na cara que era muita areia pro caminhão dele, mas o cara não se tocava. Tudo bem que ele estava sem sexo desde o incidente na escola, mas fora Wesley e Ana Cláudia, Luciene e Israel, nós todos também estávamos. Moreno também investia sutilmente em Josilene, que já parecia começar a ceder. Ele ficava o dia inteiro ao lado dela e até na hora de dormir ele ficava por perto. Isso impedia Lúcio de tentar algo. Eu podia perceber a frustração nos olhos dele. O estado de Luiz piorou a ponto dele começar a falar sozinho. Parecia conversar com alguém invisível. Enquanto caminhávamos, lembrei de Hélio. Ele foi o único que não foi encontrado por nós, nem vivo nem morto. Onde estaria ele? Havia se passado mais de trinta horas desde que nossa água se acabou. Dos cinco filhotes três morreram. Quando ouvimos o som de uma cachoeira, corremos pra valer e em seguida avistamos um lago enorme onde ela desembocava. Era um lugar lindo. Matamos nossa sede e a dos animais. Aline e Sandra passaram a pegar alguns peixes com os quais os alimentaram. Fizemos o mesmo. Embora ainda tivéssemos um pouco de caça, quanto mais alimento melhor. Ficamos ali durante horas mergulhando e nos banhando. Alguns de nós chegamos a gritar de felicidade. Eu também estava muito alegre, e teria continuado, se não tivesse visto um cardume enorme passar por baixo de nós. Era óbvio que seja lá o que fossem foram atraídos pelo barulho e o remexer da água. Fiquei petrificado de medo. O segundo a perceber foi Wesley, que começou a gritar pra todos saírem da água. Quanto mais se aproximavam, eu percebia que eram maiores que um ser humano, mas foi só quando saltaram fora da água que vimos que não eram peixes. Moreno, Lúcio e Luciene conseguiram sair do lago a tempo e se uniram a Carlinhos, que os entregou arcos e lanças que haviam ficado na areia, mas nós que não conseguimos fugir, contávamos apenas com algumas facas presas aos saiotes. Eram criaturas negras, de pele extremamente lisa e brilhante. Não sabíamos para onde estavam olhando porque seus olhos eram totalmente negros, se confundindo com a pele. Não possuíam nariz nem cabelos. As orelhas eram pontiagudas como de duendes. Tinham guelras no pescoço, quatro braços magérrimos com unhas maiores que os próprios dedos. Na altura da cintura, começava uma calda escamosa, não como a de sereias, pois tinham placas grossas e aspecto agressivo. Eram verdadeiros monstros. Nos cercaram tão logo emergiram da água e passaram a nos estudar. As meninas choravam sem parar. Lúcio viu Moreno esticar o arco e gritou para que ele esperasse.
- Só estão curiosos. Se quisessem nos fazer mal acho que já teriam feito. Calma... Vamos ver o que acontece.
Os homens-peixe continuaram ali nos observando por alguns minutos sem dar um pio, depois um deles se aproximou de Carla, que começou a rezar em voz alta. O irmão dela, da areia, fez pontaria com a lança que tinha nas mãos.
- Calma, Carlinhos... Confie em mim. Aguarde a minha ordem.
O anfíbio passou a língua na pele dela. Sua boca era em formato de balão, com fileiras de dentes pequenos e finos como de moréias. Eram uns quarenta e não teríamos a menor chance contra eles, pois eram fortes e vigorosos. De repente, o que havia se aproximado da Carlinha grunhiu algo inintendível e se afastou, sendo seguido pelos outros. Estranhamente, dois deles se entreolharam e num berro estridente avançaram sobre Ana Cláudia e Rogério, mas foram surpreendidos pelos seus próprios semelhantes, que retornaram e os retalharam com suas unhas e dentes terríveis. Aproveitamos para sair dali o mais rápido possível, e já seguros na areia ficamos observando aquele espetáculo absurdo. Depois de fazerem os dois em pedaços, eles os comeram.
- O que é que está acontecendo? Eu não estou entendendo mais nada. Por que fizeram isso?
- Acho que houve um desentendimento entre eles. Não posso dizer com certeza, mas acho que o carinha que lambeu a Carla era o líder e não admirou muito o gosto dela, então se retirou. Os dois que ficaram pareciam não ter aceitado bem a decisão e pretendiam nos almoçar, mas foram castigados pela desobediência. Sorte nossa.
- Lúcio... Agora percebo porque te elegemos nosso líder. Suas interpretações são mesmo incríveis. Essa é boa... Que imaginação, cara. Quer dizer que o castigo foi devorá-los?
- Sim... Por que não? São canibais... Canibais aquáticos.
Caímos todos na gargalhada, inclusive Lúcio. Rogério se aproximou de Carla que ainda tremia.
- Como é que pode isso, Carlinha? Eu preferia mil vezes ter comido você.
- Muito engraçado... Ha, ha, há... Como você é engraçadinho.
Carla era a menina mais nova da turma 1.102. Devia ter uns quinze anos. Tinha cara de menina, porém corpo de mulher. Era bem baixinha e possuía coxas bem grossas. Era muito bonitinha. O irmão dela era mais velho uns dois anos e era bem ciumento.
- É pessoal, como eu duvido muito que alguém vá querer voltar ao lago depois dessa experiência traumatizante, sugiro que peguem suas coisas e encham os cantis com água porque vamos pegar a estrada.
Naquele mesmo dia, a noite, acampados, Luiz chorava e gritava alto.
- Saia da minha cabeça, desgraçado... Saia de perto de mim. Eu não agüento mais...
O pior é que não havia ninguém perto dele. Tive muita pena dele. Márcia se aproximou de mim com sapatos de couro animal que ela mesma havia feito.
- Veja... Fiz pra você. Os seus não vão agüentar nem mais dez quilômetros.
- Márcia... Não sei como agradecer.
- Eu sei como você pode me agradecer.
- É...? Como?
- Entregando este outro par que fiz ao Lúcio e...
- E...?
- Sabe como é... Me elogiando pra ele... Você sabe...
- Quer que eu coloque ele na sua fita... Sabe o que eu acho? Acho que você deveria abandonar sua timidez e fazer isso você mesma. Eu não sou pombo correio. Só que tenho que te alertar que você provavelmente vai cair do cavalo. Ele só tem olhos pra Josilene.
Márcia olhou pra mim com uma enorme expressão de desgosto. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela se afastou sem dizer mais uma palavra, levando consigo o par de sapatos de couro. Ficou vários dias sem falar comigo. Acabei me arrependendo de tê-la tratado daquele modo, mas o que eu poderia fazer numa situação daquelas? Eu gostava tanto dela...
Dias depois, ficou claro pra nós que o inverno daquele lugar estava para chegar. À medida que avançávamos, a temperatura caía. Alberto disse que pelas coordenadas do mapa, o povoado que estávamos procurando não devia estar longe. Ele estava certo. Dois dias após sua afirmação, chegamos a um descampado repleto de cabanas de palha. Os seres que lá viviam nos observavam com feições de espanto, mas não nos cercaram curiosos como os Zumbis do povoado anterior. Eles iam abrindo espaço na medida que andávamos em direção ao centro da aldeia. Viemos a chamar aquele lugar de Tribo dos Nacacos. Demos este nome porque suas cabanas de palha lembravam ocas de índios americanos e eles possuíam pêlos cinzentos pelo corpo todo. Seus maxilares eram grandes e com poderosos dentes. Eram corcundas e meio abobalhados. Os filhotes eram extremamente brincalhões. A presença dos dois felinos que trazíamos como mascote parecia desagradá-los, pois eles agora eram quase adultos. Esqueci de mencionar que àquela altura nós nos afeiçoamos muito àqueles elegantes animais. Eles nos respeitavam e brincavam conosco, como fazem os gatos domésticos. O macho se chamava Puma e a fêmea era Juma. Chegamos ao centro da aldeia e Lúcio tentou estabelecer contato com os nativos. Uma fêmea tocou o umbigo de Josilene com a unha encardida e depois cheirou.
- O que ela está fazendo?
- Deixe-a tocá-la, Josi... Precisamos nos comunicar.
Com muito custo, por intermédio de gestos e com ajuda de papel e caneta (com o povoado Zumbi foi bem mais simples estabelecer contato. Aqueles símios eram bem menos inteligentes) conseguimos faze-la entender nossas intenções. A anciã Nacaco que passamos a chamar carinhosamente de vovó nos levou até uma cabana que parecia abandonada e nos deixou lá, retornando logo após com comida. Tratava-se de uma papa com mistura de legumes e verduras. Não era ruim.
- Parece que a vovó gostou de nós. Será que também são vegetarianos, Lúcio?
- Acho que sim... São primatas. A maioria dos primatas são herbívoros, Moreno.
- É verdade... Acho melhor não cometermos o mesmo erro uma segunda vez, não acha?
- Está falando sobre caçar? Concordo plenamente. Vamos conhece-los melhor primeiro.
- O que vamos fazer quanto à mudança de clima? Cada vez faz mais frio. Já não conseguimos dormir a noite.
- Não creio que esse povo possa nos ajudar quanto a isso. Olha pra eles... Tem o corpo completamente coberto de pêlos. Certamente não possuem o hábito de se agasalhar. Tenho uma idéia. Vamos “conversar” com a vovó o quanto antes a respeito da aceitação de seus semelhantes quanto a caça.
E assim foi feito. Vovó nos passou a certeza e a tranqüilidade de que não haveria repúdio de seu povo quanto a matança de alguns animais selvagens, então pegamos nossos dois dentes-de-sabre e partimos para a mata, deixando as mulheres vigiadas por Moreno. Nossos mascotes foram de imensa utilidade na caçada. Sozinhos, abateram dois animais do tamanho de ursos, porém inofensivos. Com mais algumas criaturas abatidas, conseguimos alguns cobertores de couro. Voltamos felizes pra nossa cabana, mas o sorriso de Lúcio se extinguiu quando ele se deparou com Josilene nos braços de Moreno, aos beijos. Ele tentou disfarçar sua frustração, mas eu o conhecia melhor que qualquer outro colega ali presente. Os dias passaram e se tornaram meses, até que casualmente vovó viu nosso mapa num canto de nossa cabana e gritou em total espanto.
- Harakit... Harakit... Ahhhhhhhhhhh...!
A seguramos na intenção de contê-la. Estava fora de si.
- Vovó... O que aconteceu?
Ela apontava para o desenho da estranha criatura com chifres do mapa e tornava a gritar, apavorada...
- Harakit... Harakit...!
Após alguns minutos ela se acalmou e a colocamos sentada longe do mapa.
- Será que ela conhece o tal chifrudo do mapa, Lúcio?
- Parece que sim, Bicudo. Acho que descobrimos algo importante hoje.
- Esse cara parece não ser boa coisa.
- Gostaria de ter mostrado este desenho pro Tonga. Queria ver se sua reação teria sido a mesma. Acho que está na hora de pegarmos a estrada novamente. Quero saber mais sobre este “demônio” no próximo povoado que encontrarmos.
Nos despedimos de vovó e de toda Tribo dos Nacacos e partimos. Havia completado um ano que estávamos naquele estranho planeta. Paramos de ter baixas graças aos nossos seguranças Puma e Juma que agora eram grandes e fortes felinos. Aline e Sandra viviam jogando isso na cara de Lúcio, orgulhosas de seus gatos de estimação, mas dias depois, em um de nossos encontros com animais agressivos, Juma teve um corte no abdômen e Lúcio se feriu na coxa direita. Um enorme animal que me lembrou o megatério (bicho-preguiça pré-histórico) nos atacou e em seguida foi morto por Puma. Acampamos ali naquele dia, pois não conseguiríamos carregar nossa mascote e precisávamos de tempo para destrinchar o animal abatido. Sandra e Aline não paravam de chorar. Sabiam que o estado de Juma era grave. Seus intestinos jaziam para fora da barriga. Nada poderia ser feito por ela. Seu irmão lambia o ferimento sem parar. A noite, Márcia trouxe um remédio feito a base de ervas que aprendera com vovó e untou o ferimento de Lúcio, depois enfaixou com folhas e cipó.
- Fiquei desesperada quando vi aquilo te jogar longe. Pensei que você tinha morrido. Eu não teria conseguido ficar neste lugar sem você.
- Por que não, Márcia?
- Você sempre soube porque não. Fingiu não perceber porque só pensava em Josilene. Eu amo você... Muito e com todas as minhas convicções.
- E por que nunca me falou?
- Nunca tive coragem. Só agora que ela está com Moreno que imaginei que talvez tivesse alguma chance. Tenho?
- Tem... Há um ano eu te achava sexy, porém infantil. Agora não te acho mais infantil. Esse lugar fez você crescer, não foi? Você tem razão sobre Josilene... Eu a desejei muito e ela sabe. Por causa da namorada que tenho, ou tinha, lá no nosso planeta, nunca cheguei a cantar ela. Agora é tarde. Acho que nunca vou descobrir se ela estava accessível.
- E sobre você e eu? A namorada que você não sabe mais se tem vai nos impedir de viver um grande amor?
- Não... Tenho medo de ficar aqui alimentando certezas de que vou retornar e acabar sozinho pra sempre. Quero ter alguém e quero que seja você, mas estou com receio de magoar um grande amigo.
- Amigo...? Que amigo?
- Márcia... Bicudo é um cara tão discreto, que se não tivesse me contado eu nunca teria percebido.
- Você não pode estar falando sério...
- Estou sim.
- Puxa vida... Coitado! E eu ainda o pedi que convencesse você. Ele é um amigo maravilhoso, mas você é o homem que sonho ter pra mim.
- Que é que eu faço?
- Converse com ele.
- Não tenho coragem.
- Então eu mesma converso.
No dia seguinte de manhã Márcia cumpriu o que dissera pra Lúcio. Contou-me toda a conversa que tiveram. Fiquei enciumado e envergonhado. Não disse uma só palavra.
- Se você pudesse me dizer que está tudo bem, minha consciência ficaria muito mais tranqüila. Você é um dos poucos amigos que me sobraram. Faço questão de que continuemos assim.
- Você não precisa da minha permissão pra ficar com Lúcio, Márcia.
- É verdade, mais vou ficar feliz se você disser que não vai ficar magoado nem comigo nem com Lúcio.
- Lúcio é meu melhor amigo. Poucas coisas abalariam nossa amizade, e essa não é uma delas. Eu sempre soube que você não era pra mim. Está tudo bem. Pode ir em paz.
- Então dê um sorriso.
- Aí você está me pedindo algo que não posso fazer agora. Não se preocupe. Eu vou sobreviver.
Na noite anterior eu havia visto os dois conversando a sós, mas não tinha desconfiado que o assunto era aquele. Senti um mal estar horrível quando ela me disse que Lúcio lhe havia dito sobre meus sentimentos, e outro ainda mais intenso quando a vi pela primeira vez beijando-o na boca. O tempo cicatrizaria tudo. Nessa ocasião, Aline e Alberto também se entenderam. Puma, que acabara de perder a irmã Juma, entrou em depressão e já não se alimentava como antes. Parecia também enciumado com Aline e Alberto. Um dia, se afastou de nós e desapareceu mata adentro. Perdemos um apoio importantíssimo para nosso grupo. Por causa disso, começamos a treinar intensivamente com arco-e-flecha, e combate corpo-a-corpo com lanças e facas. Os melhores eram Animal, Lúcio e Moreno. Numa certa noite começou a nevar e enquanto dormíamos ouvi Luiz sussurrar o nome Harakit várias vezes. Lúcio se levantou e o acordou.
- O que foi, Luiz? Por que está repetindo este nome?
- Ele vai nos matar. Ele é o dono de tudo aqui. Não podemos fazer nada.
- Isso foi só um pesadelo. Fique calmo. Volte a dormir.
- Não sabe nada sobre ele, Lúcio. Eu falei sobre você e ele riu de mim. Ele gargalhou. Ele não nos teme. Ele não teme nada.
Lúcio voltou a dormir com uma expressão de preocupação ainda maior. Na manhã seguinte nos reuniu para comentar o fato.
- O que mais me chamou a atenção foi ele ter comentado que o tal Harakit gargalhou. Quando fomos soltos em pleno ar após o incidente que nos trouxe a este lugar eu pensei ter ouvido uma gargalhada.
- Você não pensou... Ecoou mesmo uma gargalhada. E não é só isso, Lúcio. Tenho sonhado com o tal Harakit freqüentemente.
- Por que não falou sobre isso antes, Sandra? Isto é muito sério.
- Porque tive medo de acharem que eu estava louca como Luiz.
- O que acontece nos sonhos?
- Você já teve um daqueles sonhos que você sabe que é um sonho? Pois é... É um desses. Ele ameaça o tempo todo. Parece que se alimenta do nosso medo. Sua boca não se move, mas ouço ele falar assim mesmo. Diz que não somos nada e que será nosso dono como é dono de tudo aqui.
- Espere um pouco... Há uma grande coincidência. Nos sonhos de Luiz ele também mencionou que este lugar pertencia a ele.
- Não é coincidência, Lúcio... Ele está mesmo se comunicando conosco por meio de nossa mente. É mais freqüente enquanto dormimos, mas acontece as vezes quando estou acordada.
- Minha nossa... Mais alguém já sonhou com ele?
Israel e Carla levantaram o braço. Pálidos e muitíssimo assustados com toda aquela revelação.
- O que há com vocês? Como puderam omitir algo dessa gravidade? Essa criatura parece ser muito poderosa. Podemos estar aqui por causa dele. Sabe-se lá o que tem reservado pra nós...
- Lúcio... Sabe o que eu acho?
- Fale logo, Wesley.
- Acho que esse monstro desgraçado é sim o responsável por termos vindo pra este lugar maldito e acho que ele está se divertindo com o nosso desespero.
- Pode ser... Mas se ele soube como nos trazer pra cá, certamente sabe nos mandar de volta. Isso torna nossa prioridade encontrá-lo.
- Só que ele pode estar nos esperando, e como você mesmo disse, o desgraçado deve ser muito poderoso.
- Wesley... É bom pra ele estar preparado pra mim, porque quando eu puser as mãos no maldito, ele vai se arrepender de ter nos arrancado daquela escola.
Os olhos de Lúcio brilharam de puro ódio. Continuamos nossa trajetória afundando as pernas até os joelhos na neve fofa. Nunca em nossas vidas sentimos tanto frio. Por sermos todos cariocas, não estávamos acostumados aquele clima. Ana Cláudia começou a sentir enjôos e vez ou outra vomitava. Desconfiamos de gravidez embora ela negasse. Continuamos andando dias e dias até chegarmos a um penhasco. Não havia como descê-lo. Lá embaixo, um rio. A altura era de um prédio de cinco andares.
- Vamos ter que pular.
- Está louco, Lúcio...? Deve ter gente aqui que não sabe nadar. E olha só a altura...
- Acho que é você que está com medo, Israel... Eu não cheguei até aqui pra ter que voltar.
- Lúcio... Eu também não concordo... Já parou pra pensar na temperatura dessa água? E tem outra coisa... Como saber que criaturas podem viver nesse rio? Já se esqueceu dos Canibais Aquáticos?
Quando percebeu que a maioria de nós não pularia, Lúcio jogou sua mochila repleta de flechas no rio e saltou em seguida. Chegamos todos juntos até a beirada do precipício e o vimos lá embaixo boiando.
- Estão vendo? Ainda não fui comido e a água também não está tão gelada. Vocês não deram suas palavras de que me seguiriam cegamente? Estou aqui esperando.
Carlinhos se virou pra nós.
- Muito bem, pessoal, todos sabem que não posso nadar por causa da minha perna. Vou pedir a alguns de vocês pra me segurar quando eu cair na água.
Sérgio, solidário, disse a Carlos que não se preocupasse.
- Além da minha irmã, mas quem não sabe nadar?
Marina levantou o braço e foi tranqüilizada pelo restante do grupo. Em seguida, fiz algo que não acreditava ser capaz. Pulei. Quando bati na água, o choque térmico aliado a pancada violenta me deixaram completamente desnorteado e comecei a afundar. Senti um braço me puxando e me lembro que logo após estava em terra firme. Descansamos um pouco e não tivemos mais pique para retomar o caminho. Alguns colegas discutiram muito com Lúcio por ter-nos enganado a respeito da temperatura da água. A noite chegou e a enorme fogueira que tínhamos no meio de nosso acampamento improvisado já não nos protegia do tremendo frio. Não consegui pregar os olhos um minuto sequer, enquanto os outros dormiam pesadamente. Parece que fui o mais afetado pela temperatura. Tremi a noite toda, e quando já quase amanhecia, ouvi um abafado bater de asas e olhei em direção ao som. Petrifiquei quando vi o vulto enorme pousar no topo de uma árvore. A adrenalina que foi injetada em meu sangue me fez parar de tremer imediatamente. Sabia que aquilo nos observava. Apesar de quase imperceptível, percebi que o animal era branco como a neve sobre a árvore em que se encontrava. Era uma camuflagem perfeita. Tinha dois olhos vermelhos que brilhavam. Eu podia vê-los de onde estava. Como estava apavorado, não quis gritar e me limitei a acordar Wesley, que estava mais próximo de mim, com sussurros. Ele abriu os olhos e me perguntou, com rouquidão...
- O que é, Bicudo? Fala sério, cara... Me deixa dormir, porra!
- Olha pra árvore, cara... Olha pra árvore.
- Que árvore?
- Aquela árvore.
- O que tem aquela árvore? Estou olhando e não estou vendo nada.
- Olha direito. Não está vendo aquelas pequenas luzes vermelhas?
- Você tá louco, cara? Luzes vermelhas? Como pode isso? Eu estou olhando e só vejo... Caramba! Que merda é aquela, Bicudo?
- Agora você entendeu, seu idiota?
- Devem ser espécies de vaga-lumes.
- Não são... Vi quando pousou. É um animal com asas enormes, branco como a neve. Acho que só não atacou ainda porque percebeu que eu estava acordado.
- Que vamos fazer?
- Vamos acordar o Lúcio.
Começamos a nos arrastar até o outro lado do acampamento, onde Lúcio dormia abraçado à Márcia, com vários cobertores de lã e de couro por cima. Antes que eu o tocasse, ele acordou assustado.
- O que foi? O que está acontecendo?
- Lúcio, tem um pássaro enorme em cima daquela árvore nos olhando. O que nós vamos fazer? Acho que ele vai nos atacar a qualquer momento.
- Não estou vendo nada ali.
- Force a vista no topo da árvore, Lúcio. Vai perceber dois pontos luminosos.
- Tem razão. Estou vendo duas pequenas luzes vermelhas. Pegue meu arco e a mochila com as flechas, Bicudo.
- Onde estão?
- Do lado do Wesley.
- Você vai tentar acertar a coisa dessa distância? Nem sequer está conseguindo vê-la.
- Vou mirar entre os dois pontos luminosos. Andei treinando muito minha pontaria. Não pode ter sido em vão. Se algo der errado, corram em direção as lanças e gritem alto para que os outros acordem e se protejam.
Tão logo entreguei o arco a Lúcio, este retesou os músculos dos braços ao máximo possível, e após alguns segundos soltou a flecha. Aquela coisa gritou tão alto que me arrepiei de pavor. Suas asas se debateram jogando neve para todos os lados. Os outros colegas acordaram em pânico, sem saber pra onde correr e o que estava acontecendo. A criatura tentou levantar vôo, mas acabou caindo exatamente em cima da fogueira, espalhando brasa por todo o acampamento. Ela ainda se debateu um pouco mais, morrendo em seguida. Cheguei bem perto dela e vi a flecha de Lúcio cravada no olho esquerdo do animal, que só então pude perceber que se assemelhava mais a um morcego que a um pássaro, apesar se peludo. Com certeza a flecha deve ter perfurado o cérebro do morcego albino. O moral de Lúcio aumentou tremendamente com aquele acontecimento, e ele chegou a ficar mais convencido e seguro de si. Aproveitamos o que sobrara da fogueira para assar o gigante, mas nos arrependemos. Ninguém conseguiu comer aquilo. Sua carne tinha um sabor horrível. Continuamos nossa andança por dias e dias, até que o clima começou a melhorar. Lembro-me que Animal cantava uma música do Legião Urbana quando deparamos com uma montanha.
- Segundo nosso mapa é nesta montanha que fica a próxima civilização a ser visitada. Querem acampar aqui ou continuamos?
- Eu sou favorável a parar.
- É... Pelo visto os outros também, Israel, já que quem cala consente... Vamos armar nossas barracas então. Alguém tem comida? Estou morrendo de fome.
- Guardei um pedaço de morcego assado pra você, Lúcio.
- Muito engraçado, Sérgio. Faça bom proveito dele.
- Estou estranhando você não ter insistido pra gente continuar, como sempre.
- Cara, pra te dizer a verdade eu estava doido pra parar. Estou exausto.
- É a Márcia quem está exaurindo você.
Olhei para Márcia, que ouvira o trocadilho. Ela sorriu, envergonhada. De noite, caiu um temporal. O clima que ainda estava um pouco frio, aliado à chuva com ventania não nos deixou dormir, o que só foi possível quando a tempestade acabou pela manhã. Isso nos fez passar mais uma noite naquele acampamento, mas no dia seguinte bem cedo começamos a escalar a montanha, e após alguns dias, encontramos um dos nativos, que ao nos ver tentou correr, mas Alberto foi mais rápido e após persegui-lo algum tempo, com um salto, agarrou-lhe uma das pernas. O pequenino, que não chegava a ter um metro de altura, se sacudia, desesperado, achando que lhe faríamos algo de mal. Ele era marrom, com uma cabeça desproporcional ao corpo (ela era grande demais em relação ao restante de sua anatomia) com olhos esbugalhados. Gritava o tempo todo e parecia muito inofensivo. O colocamos em uma mochila com metade do corpo pra fora e continuamos nossa escalada. Com o tempo, nosso amiguinho se cansou de se debater e gritar e se acalmou. Momentos depois, adentramos uma colina, e nela estava a aldeia tão procurada. Chamamos aquele lugar de Colina dos Traquinhas, pois aquelas criaturinhas nos lembravam os biscoitos de mesmo nome. Quando aquele povo nos viu chegando, correram de um lado pro outro, assustados. Nos olhavam com aqueles tremendos olhos brancos enormes. Com o tempo foram se acostumando com nossa presença. Demoramos a conquistar sua amizade, mas quando nos aceitaram, criamos os laços mais fortes que havíamos tido até então naquele planeta. Os Traquinas nos acompanhavam em massa quando íamos caçar. Nos ensinaram muito e aprenderam muito conosco. Houve ocasião de sermos seguidos por uns duzentos deles. Aquele povo nos amava e nos admirava como nenhum outro. Nos imitavam falando e chegavam a aprender algumas palavras em português. Alguns deles nos chamavam pelos nossos nomes. Não fazíamos distinção entre eles, porque os baixinhos eram todos idênticos. Construímos barracos feitos com troncos iguais aos do povoado, sendo que bem maiores e passamos a viver neles. Em nossa estadia na Colina dos Traquinas, nasceu o bebê de Ana Cláudia e Wesley, e em uma noite que conversávamos todos na beira do riacho que passava dentro da aldeia, ficamos sabendo pela boca de Moreno que Josilene estava grávida. Olhei pra barriga dela e pude perceber que já estava crescendo. Olhei em seguida para Lúcio, que procurou parecer indiferente.
- Moreno, e se esse moleque nascer com cara de biscoito?
- Piada muito engraçada, Animal, mas sabe o que é mais engraçado? Estamos há dois anos fora de casa e você não pegou ninguém, muito menos engravidou.
- Vai tomar no...
- Chega...!
Era Lúcio interrompendo Animal. Os dois se encararam por vários minutos, trocaram farpas e faíscas e depois Animal se retirou pra sua cabana. Animal nunca aceitou a liderança de Lúcio, mas não tinha coragem suficiente para peitá-lo.
- Não liguem pra ele. Não passa de um grande idiota.
- Disso, nós estamos cansados de saber. Ele deve estar sentindo muita falta da pele macia de uma mulher.
- Acho que a parte que ele sente mais falta não é a pele.
- Há, há, há... Não é o nosso caso, não é mesmo, Lúcio?
- É verdade. Do que você sente falta de nossa terra, Moreno?
- Cara... De tudo. Tudo mesmo, mas o que me deixa mais deprimido é a falta da minha mãe. O que será que ela acha que aconteceu comigo? Ela deve pensar que morri. Com certeza está sofrendo muito. Eu sou filho único.
- Também sinto falta de tudo. Sinto falta até de pequenas coisas, como usar um sabonete no banho, escovar os dentes e etc. Sei que vou voltar a usufruir de tudo isso um dia. Vou pilotar um belo carro, comer com garfo e faca... Isso tudo está esperando por nós.
- Tomara que sim, cara... Tomara que você esteja certo.
Álvaro e Elaine, o único casal entre nós que já se relacionava antes do incidente na escola, entrou na conversa.
- Lúcio... Eu e Elaine queremos falar sobre algo sério com você. Decidimos não continuar a jornada com o restante do grupo. Quando vocês voltarem a partir, nós ficaremos.
- Ficarão? Ficarão onde? Na Colina dos Traquinas?
- Exatamente.
- Mas... Vão se negar a oportunidade de voltar pras suas casas? Pros seus amigos e parentes?
- Sim. Estamos felizes entre os Traquinas. Não queremos mais andar durante dias, expostos aos perigos escondidos neste lugar. Vamos permanecer aqui e formar nossa família. Ficaremos bem, pode ter certeza.
- Tudo o que posso fazer é respeitar sua decisão e desejar a vocês toda a felicidade do mundo. Quanto a Wesley e Ana Cláudia... Não quero influenciar vocês a tomar nenhuma decisão, mas não acham que seria apropriado vocês ficarem com Álvaro e Elaine aqui na colina?
- Eu já havia pensado nisso, Lúcio. Não temos como levar nosso bebê por aí. Estou somente esperando a decisão de Wesley de permanecer comigo e nosso filho Wesley Júnior ou ir com vocês.
- Wesley... Você pensou na possibilidade de vir conosco e abandoná-los?
- Não, Lúcio... Foi ela quem tocou nesse assunto comigo. É só charminho de mulher. É claro que eu nunca os deixaria pra trás. Ela só queria ouvir isso da minha boca e agora ela já acalmou o ego.
Ana Cláudia ruborizou, envergonhada. Bastou aquele assunto vir à tona que Lúcio resolveu partir no dia seguinte. Arrumamos nossas coisas e nos despedimos dos dois casais e do pequenino Wesley aos prantos. Lúcio, que já havia mostrado o desenho de Harakit para os Traquinas meses atrás, sem ter conseguido nada além de uma nova expressão de pavor por parte dos pequeninos, decidiu alcançar o quanto antes o próximo povo que nosso mapa indicava. No meio de nossa caminhada, Lúcio indagou sobre novos sonhos com o chifrudo Harakit. A resposta foi que nada havia de novo, a não ser a intensidade das ameaças que aumentavam a cada dia. Numa certa noite, o próprio Lúcio teve um pesadelo com o “demônio” pálido. Pela manhã ele nos relatou que Harakit o ameaçava com uma espada medieval. Foi neste dia que Márcia causou um tremendo constrangimento a Lúcio. Enquanto Lúcio contava seu sonho, mencionou que fora despertado por Josilene.
- O quê? Por que você tocou nele, loira maldita? Por que despertou meu homem?
- Márcia, por que você está assim? Eu não fiz nada de mais. Percebi que ele estava tendo um pesadelo e o sacudi para acordar, foi somente isso.
- Como percebeu? Por que estava observando meu homem de madrugada? Você o quer, não é? Nem sequer respeita o Moreno.
- Agora você passou dos limites... Quer ouvir uma verdade? Moreno nunca ficaria desconfiado de mim, porque ele está cansado de saber que Lúcio me queria e que eu preferi ele. E você quer saber mais? Você só está com Lúcio porque eu não correspondi à paixão dele. Portanto, você é resto, morena burra, você é sobra.
Márcia se calou enquanto Lúcio baixou a cabeça, tremendamente envergonhado. Josilene pegou Moreno pelo braço e se afastou dali. Ela era uma loira de olhos azuis, muito bonita, e mesmo grávida chamava atenção. Costumava ser calada e um pouco convencida. Moreno, como o apelido insinua, era moreno, forte, boa pinta e às vezes um pouco arrogante. Lembro-me que Lúcio, numa certa ocasião, na sala de aula, comentou que não simpatizava nem com ele nem com Hélio. Rimos demais da cara dele, porque sabíamos que eram justamente os dois alunos que mais investiam em Josilene. Hélio também era um cara que tinha boa pinta, branco, 18 anos, cabelos aloirados, mais ou menos 1.78 cm. Era convencido e exibicionista. Possuía uma moto modelo cross e só ia a escola com ela. Fiquei pensando qual destino ele teria tido. Será que ele não teria saído da sala de aula para ir ao banheiro e dessa maneira se safou da tragédia? Dias após a discussão entre Márcia e Josilene, o clima entre os dois casais começava a melhorar. Entramos quase que de repente em um deserto e por ele caminhamos por vários e penosos dias. Ao contrário dos desertos de nosso planeta, que de dia fazem intenso calor e à noite frio, ali o calor era eterno. O que mais nos preocupava é que nosso alimento e nossa água estavam acabando. Lúcio mandou racionar tudo. Nos sentíamos muito fracos e começamos a nos desesperar e até a discutirmos uns com os outros. Numa dessas discussões, Animal e Sérgio se atracaram e antes que pudéssemos separar, Animal degolou o colega com sua faca. Quando vimos Sérgio cair engasgando com seu próprio sangue, corremos ao seu encontro, enquanto Animal parecia não acreditar no que havia feito. É desnecessário dizer que ele não sobreviveu. Lúcio fitou Animal, tirou uma flecha da mochila e a colocou no arco, mas antes que pudesse disparar, Animal correu para longe, desaparecendo por trás de dunas de areia. Nunca mais voltamos a vê-lo. Com certeza não sobreviveu sozinho naquele deserto. O pior é que dois dias depois foi a vez de Sandra. Morreu durante a noite. A primeira pessoa a perceber foi sua amiga inseparável, Aline. Não sabemos se foi por causa do calor do deserto, ou se foi obra de Harakit, na mente dela. Foi a segunda vítima feminina desde o incidente na escola. Aline chorava muito e foi amparada por Alberto. Nem ao menos pudemos enterra-la, pois fomos surpreendidos por uma tempestade de areia. Não conseguíamos sequer nos comunicar. Estávamos certos de que seria nosso fim, quando algumas horas depois a tempestade cessou. Naquele mesmo dia nossa água acabou, e no dia seguinte a comida. As mulheres choravam copiosamente. Rogério e Israel carregavam Carlinhos nos ombros, pois há tempos este não conseguia mais andar. Tudo parecia perdido quando avistamos um oásis.
- Graças a Deus...! Graças a Deus...!
Era Lúcio, que mais tarde confessou que já estava para se entregar. Levamos dias para nos recuperar. No oásis havia árvores frutíferas das mais variadas e pequenos lagos de água cristalina. Os animais que lá viviam eram pequenos e ágeis. Poucos deles conseguimos pegar. A barriga de Josilene já estava grande, indicando uns seis ou sete meses. Não sei como não perdeu o bebê depois de passar por tanta privação. Ela parecia triste e preocupada. Passamos meses ali, sem coragem de retomar o caminho, pois ao sair do oásis entraríamos no deserto novamente. Sabíamos que a próxima civilização não estava distante, porque o mapa nos indicava isso, mas havíamos pego pavor daquele deserto. Vimos nascer o bebê de Josilene. Era uma linda menina que ela batizou de Jade. Certa vez, enquanto eu passeava pelo oásis, sem querer flagrei Alberto e Aline transando na beira de um lago. Saí dali antes que eles me vissem. Fiquei imaginando o que as meninas faziam para evitar engravidar. Nada, eu acho. Durante toda nossa estadia naquele oásis, tudo correu bem. A única coisa interessante a ser mencionada daquela ocasião foi o “mico” de Luciene e Israel. Os dois chegaram correndo a beira do lago onde ficávamos reunidos, gritando que criaturas horríveis os estavam seguindo. Subimos as pressas ao topo das árvores, mas não vimos nada. Eles continuavam gritando e falando coisas desconexas, e pareciam tontos, pois não conseguiam escalar as árvores. Descemos e passamos a olha-los. Suas pupilas estavam dilatadas e foi então que percebemos que eles pareciam estar bêbados. Chegamos a pensar que era obra de Harakit em suas mentes, mas ao serem perguntados se teriam comido algo, nos levaram até uma árvore que possuía frutas suculentas de um vermelho intenso. Alberto provou uma delas e não demorou a ver coisas. Ele ficou fascinado com o efeito. Ficamos todos com medo de experimentar, mas não resistimos. Só algumas meninas não tiveram coragem. Sei que o torpor causado por aquilo nem de perto lembrava a embriaguez por álcool, mas após ter passado tanto tempo sóbrios, nós adoramos a viajem. Todos os dias íamos ao local e nos embriagávamos de fruta rum. Foi assim que passamos a chamá-la. Alguns ficavam aterrorizados com as alucinações causadas por elas, mas o efeito passava em poucas horas. O chato era a dor de cabeça e sonolência que vinham depois. Um belo dia, Lúcio pediu-nos que juntássemos tantas frutas e tubérculos quanto fosse possível porque estava na hora de voltar a caminhar, dessa vez a procura de um povo que segundo nosso mapa vivia em pleno deserto.
- Lúcio... Tem certeza que pretende encarar esse deserto de novo? Já esqueceu que você próprio quase entregou os pontos antes de chegar aqui? Esse lugar é um paraíso. Temos água potável, vegetação farta, alimento... Temos até fruta rum.
- Eu sei, Rogério... Você tem razão. Esse lugar é mesmo um paraíso, mas não é nosso lar. Também vou sentir falta de me embriagar de fruta rum e ficar rindo por horas sem nem saber do quê, mas pretendo ver minha família de novo. Quero voltar a vestir roupas decentes, tomar ducha quente no banheiro, escovar os dentes e tudo o mais. Esse aqui não é meu lugar. Se o mapa estiver correto, e ele sempre esteve, vamos chegar ao próximo povoado dentro de alguns dias.
- Mas será que sobreviveremos ao calor desse maldito deserto?
- Claro que sim... Amanhã, esperaremos que a noite chegue para partirmos. Dessa maneira escaparemos do sol no começo da viajem.
E assim ocorreu. Quando o sol começou a se pôr, abraçamos Moreno, Josilene e sua pequena Jade e seguimos em frente. Horas antes o casal nos entregou bilhetes que estavam mais para testamentos na esperança de que chegassem a suas respectivas famílias. Quando começamos a nos distanciar, Moreno gritou.
- Vida longa.
Nos emocionamos muito e acho que nenhum de nós conseguiu segurar as lágrimas. Márcia parecia tremendamente aliviada. Claro... Sempre teve Josilene como uma rival. Mais um casal ficara pra trás. Quanto tempo levaria até que outra das mulheres engravidasse e abandonasse a caravana? Em falar nisso, durante a estadia no oásis, mais um casal se formou. Foi Rogério e Carla. Os dois baixinhos começaram a namorar contra a vontade do irmão dela, que vivia tentando em vão impedir o relacionamento. Não iria adiantar. A natureza é mais forte. Nosso grupo agora contava com apenas treze integrantes. Quinze pessoas já haviam morrido, três casais haviam ficado para trás e Hélio e Animal estavam desaparecidos. Mais quantas baixas ainda iríamos sofrer? Antes que nossa água terminasse, chegamos a uma rocha gigantesca cheia de cavidades que percebemos se tratar de cavernas. Ao nos aproximar dela, um enxame de lagartos bípedes, quase tão grandes quanto Tonga, armados com lanças com um acabamento muito melhor do que as nossas e vestindo sarongues num material que até aquele momento não havíamos visto naquele planeta (parecia tecido tingido) nos cercaram. Largamos nossas armas no chão arenoso do deserto. Não teríamos a menor chance contra eles. Além de saias coloridas, aqueles répteis possuíam ornamentos. Eram cordões, pulseiras e brincos. Estavam totalmente enfeitados. Olhamos para Lúcio, que tirava do bolso de seu saiote o mapa dobrado. Um dos lagartos encostou a ponta de sua lança na barriga dele, mas se conteve ao perceber que Lúcio não tinha a intenção de agredi-los. O tal lagarto apanhou o mapa da mão de nosso líder e o desdobrou. Ao ver o rosto de Harakit, o réptil, com sua língua bífida, se comunicou com um de seus semelhantes que estava ao seu lado direito. Tive a impressão de que era o chefe deles, por ser o que possuía os ornamentos mais belos e brilhantes. Eu estava certo. O líder deles encarou Lúcio e apontou para o desenho do “demônio”, numa atitude de quem perguntava o que queríamos com ele. Lúcio então passou o dedo pela própria garganta, numa atitude agressiva, que ficou bem claro que desejávamos matá-lo. O semblante daquelas criaturas se alterou incrivelmente. Eles pegaram nossas armas caídas e nos devolveram, nos convidando a adentrar as cavernas que eram na verdade seus lares. Todas as cavidades tinham corredores que terminavam em um grande salão, no centro da rocha. Lá, sentimos um aroma que há tempos havíamos esquecido. Era sopa. Em enormes caldeiras, ela borbulhava. Ficamos babando de fome. Eu ainda estava temeroso, achando que talvez fôssemos o ingrediente principal e me aproximei de Lúcio.
- Será que eles pretendem nos cozinhar?
- Duvido muito, Bicudo. Acho que somos seus hóspedes. Caso contrário nunca teriam devolvido nossas armas.
- Você não acha que fez algo muito arriscado, dando a entender que deseja matar Harakit? Eles podiam ser amigos dele, ou até mesmo seu exército, sei lá...
- Você tem razão, mas eu tenho uma teoria de que todos os nativos deste planeta são inimigos do chifrudo, e você conhece aquele ditado que diz que o inimigo de seu inimigo é seu amigo.
Nunca me arrependi de ter votado em Lúcio para nosso líder. Aqueles lagartos eram sem dúvida os seres mais inteligentes e organizados que havíamos conhecido até então. Pena que ficamos entre eles apenas uma semana. Neste curto período, engordamos com suas sopas de carne e legumes. Eles nos mostraram como encontrar caça e raízes no deserto. Nos despedimos deles e do Rochedo dos Lagartos, levando conosco dois guias com os cumprimentos do rei lagarto. No dia seguinte, chegamos a um riacho, levados pelos nossos amigos, onde aproveitamos para aparar a barba à faca. Ganhamos do rei lagarto roupas novas, feitas do mesmo tipo de tecidos que eles usavam. Eram mais leves e confortáveis que as nossas de couro. Eram sarongues e camisetas confeccionados por eles próprios. Nossos guias foram carinhosamente apelidados de Camaleão e Calango. Seguimos o riacho e ele nos levou até o final do deserto, onde começava um campo fértil e o próprio riacho se tornava um rio. Continuamos seguindo a linha dele levados por nossos guias sempre atentos, até que ouvimos gritos apavorantes. Eram gritos de angústia animal. Calango e Camaleão não demoraram a perceber de onde vinham os gritos e se dirigiram pra lá, sendo seguidos por nós. Chegamos a um trecho rochoso daquela região de vegetação baixa. Entre algumas rochas, estava uma espécie de gaiola de madeira de dois metros e dentro dela um símio marrom de juba branca, com dentes pontiagudos desagrupados e uma espécie de ferrão na ponta da calda. Ao nos ver, passou a se sacudir e saltar contra a gaiola, furioso. Calango se aproximou e com uma estocada certeira, perfurou o animal com a ponta de sua lança. O primata morreu quase que imediatamente. Fiquei imaginando quem o teria aprisionado ali e por quê. Seria o animal de estimação de algum ser que vivia ali perto? Nunca saberemos. Serviu-nos de alimento. Prosseguimos nossa jornada por mais alguns dias até que encontramos o lugar que nossos guias procuravam. Se até aquele momento achávamos que o Povo Lagarto era a raça mais desenvolvida daquele planeta, mudamos de idéia automaticamente. Estávamos diante de uma vila de casas grandes e bem acabadas, cercadas por jardins. Percebemos de longe a fumaça que saía das chaminés. Em torno de toda a extensão da vila, uma mureta de proteção, feita com rochas e argila. Na entrada da mureta, três felinos de pêlos amarelados, bípedes, com enormes chifres nos aguardavam como se já soubessem de nossa presença. Ao nos aproximar, pude ver que suas orelhas eram pontudas e percebemos uma semelhança entre aquelas criaturas e o desenho de Harakit. Um calafrio passou por minha espinha. Paramos todos diante deles, desconfiados. Não tínhamos coragem de adentrar aquele lugar depois de notar sua ligação com o chifrudo. Foi aí que uma voz soou dentro de nossas cabeças. De alguma maneira, mesmo sem mexer os lábios, aqueles seres falavam conosco, e o que é mais impressionante... Nós entendíamos tudo o que diziam. Como podia aquilo estar acontecendo? Eles tentavam nos tranqüilizar e a todo momento nos convidavam para entrar e se aconchegar. Faziam questão de frisar que eram um povo de paz e que queriam ser nossos amigos. Nos entreolhamos, convencidos de que diziam a verdade. Os primeiros a entrar foram nossos amigos répteis, depois nós. Aquilo era novo demais para nós. Fiquei fascinado. Sabíamos que aquelas criaturas não podiam conhecer o idioma português, mas de alguma maneira se faziam entender dentro de nossas mentes. Era fantástico. O mais incrível é que nós respondíamos também em pensamento, e elas captavam perfeitamente. Nos pediram para sentar diante de uma espécie de templo e nos disseram que não havia porque teme-los, uma vez que aquele que tínhamos como um propenso inimigo era também inimigo declarado deles. Quando perguntados como conseguiam se comunicar daquela maneira, explicaram que a telepatia e a telecinésia eram dons naturais de sua espécie. Mover e até atirar objetos com a força da mente era comum para eles. Ler pensamentos e se comunicar através deles era prática normal. Se auto-denominavam de Máleks, e se apresentaram como os três soberanos de seu povo, Manrat, Lírub e Catrash. Disseram ainda que apesar de seu aspecto um tanto selvagem, matavam somente para se alimentar ou se proteger, mas que seus hábitos alimentares eram mais herbívoros que carnívoros. Chamaram aquele planeta de Katáris e alegaram que estávamos muito mais distantes de casa do que imaginávamos, pois não só estávamos em outro planeta, mas também em outra dimensão. Ficamos chocados. Perguntamos a eles o por quê de sua semelhança com Harakit, e eles responderam que ele era nada mais e nada menos que um Málek que deu um salto evolutivo. Harakit nasceu sem os tradicionais pêlos castanhos claros de sua raça, com chifres menores, e, o que era pior... Sua telecinésia e telepatia tremendamente mais afloradas. Já na adolescência, começou a ter devaneios de superioridade e foi banido quando cometeu assassinato pela primeira vez. Fora da vila, construiu uma fortaleza e dominou mentalmente um exército de Formigas Guerreiras, insetos de dois metros e meio de altura com a anatomia de centauros. Passou então a atacar todos os povos de Katáris, na intenção de dominar aquele mundo, mas foi derrotado com a ajuda dos Máleks. Harakit fez outras investidas fracassadas, depois da primeira derrota. Todos sabiam que não demoraria até que tentasse novamente. Manrat achava que Harakit nos trouxera a Katáris por pura vaidade. O Efeito Espiral (nome dado ao vórtice que nos transportou até aquela dimensão) era sua mais nova prova de poder. Nenhum Málek antes de Harakit teve tamanha habilidade. Outra exclusividade do demônio pálido era levitar a si mesmo. Pedimos a Lírub que demonstrasse sua capacidade de mover as coisas, e ele levitou um tronco de árvore com impressionante facilidade, depois o atirou para longe com a força do pensamento. Pedimos então que levitasse um de nós, e ele estranhamente não conseguiu. Isso os deixou perplexo. Tentaram então com uma das mochilas, e novamente nada aconteceu. Manrat criou uma teoria de que seus poderes telecinéticos não afetavam diretamente o que não fosse natural de Katáris. Vivemos meses com aquele povo fantástico, aprendendo com eles muito mais do que podíamos imaginar. Ao serem perguntados se podiam nos levar até Harakit, eles se negaram prontamente. Tinham medo de desencadear outra guerra. Se diziam uma raça de longevidade, e por isso temiam muito a morte. Pelo que pude entender, os Máleks viviam em média mais de quatrocentos anos terrestres. Quando estávamos para completar três anos naquela dimensão, Lúcio tornou a nos reunir na intenção de seguirmos rumo a Harakit. Agora, já não precisaríamos do velho mapa, pois o caminho estava bem “vivo” dentro de nossas cabeças. Camaleão e Calango ainda estavam conosco depois de tanto tempo e insistiram em continuar. Nos despedimos deles com fortes abraços. Catrash nos deu um último conselho. Disse-nos para não tentar negociar nosso retorno pro lar com Harakit. Qualquer coisa que conseguíssemos dele deveria ser tirado à força. Procurem surpreendê-lo, ele disse. Abandonamos os Máleks com o coração apertado. Sei que pra eles também foi duro. O maior beneficiado com nossa estadia na vila foi certamente Carlinhos, que teve sua perna curada após várias terapias telecinéticas. Numa certa noite, acampados, ouvi a conversa de Márcia e Lúcio.
- Agora que já não parece tão impossível pra nós voltar pro nosso planeta, Lúcio, tenho que saber de uma coisa. Você pode me responder com toda a sinceridade?
- Claro que sim. O que é?
- Se realmente voltarmos, você vai ficar comigo, ou irá procurar sua namorada Cristina?
- Márcia... Acredita que após três anos Cristina ainda é minha namorada? Por mais que ela fosse apaixonada, ninguém espera tanto.
- Isso quer dizer que somente por isso você não vai voltar com ela?
- Claro que não... Não vou voltar com ela porque te amo demais. Está bem assim?
É desnecessário dizer que se abraçaram e se beijaram calorosamente, depois. Chegamos a uma região de lagos, cachoeiras e riachos que chamamos de Parque Aquático. Aquele lugar nos parecia estranhamente familiar, apesar de jamais termos pisado ali antes. Era o condicionamento que os Máleks nos impuseram. Este foi um precioso presente pra nós. Estávamos num verdadeiro paraíso. Passávamos dias com as mãos e os pés enrugados por causa das horas a fio que ficávamos dentro d’água. Quando cansamos dali, seguimos a margem do riacho que começou a se tornar um grande rio. Num belo dia, avistamos a tal fortaleza de Harakit do outro lado dele. Tínhamos um outro desafio pela frente. Como atravessar um rio daquela largura? Deveríamos ter feito isso quando pudemos, mas ninguém teve a idéia. Começamos a derrubar árvores e construímos três fortes jangadas. O rio não tinha correnteza. Parecia fácil atravessá-lo com elas. Estávamos enganados mais uma vez. As colocamos dentro d’água e a que saiu na frente levava Lúcio, Márcia, Luiz, Marina e eu próprio. A do meio carregava Camaleão, Carlinhos, Carla, César e Rogério. A terceira e última trazia Israel, Luciene, Aline, Alberto e Calango. Nos impulsionamos por intermédio de remos improvisados. Antes mesmo de chegarmos à metade do rio, Aline berrou em desespero.
- Meu Deus...! O que é aquilo?
Um vulto de pelo menos dez metros de comprimento passou por baixo de nossas jangadas, emergindo atrás da terceira. O animal pôs seu comprido pescoço para fora d’água e o movimentava sem parar. Aquela criatura correspondia exatamente à visão que eu tinha de um dinossauro extinto de nosso planeta. O elasmosauro. Ele batia uma das nadadeiras sobre a água, ameaçador. Começamos a atirar flechas nele, mas a criatura mal sentia. Quando Camaleão atirou sua lança que ficou presa a carne do gigante, este soltou um urro de dor e esticando seu enorme pescoço abocanhou nosso amigo lagarto, levando-o consigo para o fundo do rio. Remamos muito mais rápido, com medo de que aquilo retornasse para fazer mais vítimas, o que não aconteceu. Chegamos à outra margem do rio tristes e desolados. Somente ao chegar do outro lado pudemos ter noção da verdadeira extensão daquela incrível construção. A fortaleza de Harakit tivera sido esculpida em uma montanha. Toda a rocha foi maestralmente trabalhada. Certa vez os Máleks nos disseram que Harakit escolhera dominar as Formigas Guerreiras e fazer delas seu exército por serem os seres mais fortes em relação ao seu tamanho que existiam em Katáris. Aquele lugar provava isso. Em falar nos formigões, de onde estávamos já podíamos avistá-las. Eram milhares e estavam espalhadas em torno da fortaleza. Percebemos que jamais conseguiríamos adentrá-la. Nos sentimos totalmente impotentes diante daquela situação. Já seria difícil encarar duas delas, quem dirá centenas. Começamos a bolar maneiras de afastá-las do refúgio do “demônio”, mas nada do que imaginamos parecia ser bom. De repente, Luiz se aproximou de Lúcio.
- Ele não está aqui. A fortaleza foi abandonada por ele há tempos atrás. Ele mora atualmente em um castelo que fica a alguns quilômetros. Este lugar virou o lar destas formigas. É somente um formigueiro agora. Podemos passar em segurança por elas. Não nos farão mal. Ele quer que cheguemos até ele.
- Como sabe de tudo isso?
- Ele falou em minha mente.
- Não devemos confiar nele, Lúcio. Sabe que Luiz está incapacitado mentalmente há muito tempo.
- Harakit sempre se comunicou com ele mais do que com qualquer outro aqui. Foi isso que enlouqueceu ele. Luiz sabe o que está dizendo. Tem algum voluntário pra se aproximar da fortaleza comigo?
Somente Calango se habilitou, então os dois se distanciaram de nós, rumo a construção. De longe, Lúcio gritou.
- Se alguma coisa der errado, peguem as balsas e voltem pro outro lado do rio.
De onde estávamos não dava para entender o que estava acontecendo, mas percebemos que eles chegaram bem perto da fortaleza e das formigas, depois retornaram.
- Parece que Luiz tinha razão. As formigas parecem fingir que não nos vêem. Cheguei a tocar em uma delas. São bem grandes e lembram centauros. O portão que dá acesso à fortaleza é de metal e está entre aberto por causa do trânsito de insetos.
- Metal? Nunca vimos metal neste planeta.
- Tem razão, Alberto. Até agora. Os formigões possuem espécies de lanças com pontas cortantes feitas do mesmo tipo de metal. Parece que Harakit aprendeu a forjar. Vamos andando. Quero aproveitar a oportunidade pra entrar naquele lugar.
- Está louco? Sabe lá o que pode estar nos esperando?
- Podemos aprender algo sobre harakit lá dentro. Afinal de contas este lugar já foi a casa dele.
Nos entre olhamos e acabamos topando com Lúcio. Temerosos, passamos pelas Formigas Guerreiras que simplesmente nos desprezaram. Adentramos a fortaleza, examinando todas as anti-salas, sem encontrar nada que pudesse nos interessar. De repente, entramos em um salão e ficamos estupefatos com o que vimos. A formiga rainha estava lá, deitada sobre sua enorme barriga, que parecia uma geléia branca e nojenta. De seu lado direito estavam amontoadas toneladas de excremento, e a sua esquerda, havia pedaços de animais e plantas de todos os tipos. Ela os devorava lentamente. De sua boca, jorrava um líquido viscoso avermelhado. Era repugnante. Nos olhou com desinteresse.
- Vamos matá-la, Lúcio.
- Está louco, Rogério? Nunca sairemos daqui vivos. Vamos embora daqui. Temos que achar o tal castelo de Harakit. Não deve estar longe. Ele não ficaria distante de seu exército.
- Sim, mas onde começar a procurar? Nosso mapa termina aqui e também a memória implantada pelos Máleks.
- Lá fora há uma imensa trilha gerada pelos formigões. Acho que ela nos levará até ele.
Passamos a seguir o caminho criado pelos paços das Formigas Guerreiras e algumas horas depois paramos para ver passar uma criatura de uns seis metros de altura, muito magra, densa e preta, cheia de cascas e espinhos. Parecia mais um vegetal que um animal. Nos olhou por alguns segundos e seguiu seu caminho. Aquele planeta era certamente o berço dos seres mais estranhos do universo. No mesmo dia, fomos surpreendidos por pigmeus brancos. Eles pulavam com extrema facilidade por entre as árvores e apanharam Israel e Luciene com uma rede. Enquanto Rogério tentava cortar a rede com sua faca, os ágeis e medonhos pigmeus, que tinham cabelos espalhados pelo corpo todo menos na cabeça e dentes afiados nos dominaram com suas lanças. Calango não aceitou a derrota e foi perfurado pelas malditas criaturas. A aparência daqueles seres era a que mais se aproximava da humana naquele planeta. Apesar de medirem no máximo um metro de altura, sua pele, mãos, pés e até o rosto lembravam seres humanos. Fomos levados para o seu líder, que era um pigmeu ancião. Soubemos disso porque seus cabelos eram totalmente grisalhos e sua pele muito enrugada. Ele nos cheirou, resmungou algo e depois jogou terra no rosto de Alberto. Se virou para seus semelhantes e lhes falou algo. Um dos nativos acariciou os seios de Márcia e depois sorriu, puxando-a para dentro de uma tenda.
- Lúcio... Socorro!
- Desgraçados...!
Lúcio saltou para longe da lança que estava encostada em suas costas e num piscar de olhos desarmou um outro pigmeu, se apossando de uma lâmina que este carregava. Em segundos estava com ela em volta do pescoço do ancião. Lúcio o tinha agora como refém. O pigmeu que tinha Márcia segura pela mão varou seu abdômen pelas costas e a jogou de encontro ao chão. Nós não acreditamos no que estava acontecendo. Ela gemia, ainda viva, tentando quebrar a ponta da lança para tirar aquilo de si. Ninguém se movia. Nem nós nem os pigmeus. Lúcio ordenou que a pegássemos e o cercássemos para que pudéssemos sair dali em segurança levando o refém. Márcia mal conseguia ficar de pé. Rogério retirou a lança pela barriga dela. O mesmo pigmeu que a atingira jogou outra lança acertando em cheio o tórax dela. Reagimos imediatamente espetando o pequeno hominídeo até que a vida o abandonou. Os demais não se meteram, acho que por temerem pela vida de seu líder. Márcia não conseguiu dizer mais nada. Fechou os olhos após olhar para Lúcio uma última vez e morreu.
Nosso líder chorava e gritava enquanto nos afastamos dali, seguidos de longe pelos pigmeus. Quando chegamos numa clareira, Lúcio percebeu que já estávamos seguros e fora do alcance de nossos algozes, então soltou o velho pigmeu e pegou o corpo de Márcia no colo. O ancião cuspiu nele e voltou correndo para dentro da floresta. Nos apressamos a nos distanciar dali e percebemos ao longe o castelo de Harakit, também moldado em grande rocha. Lúcio não conseguia parar de chorar. Acampamos para descansar.
- Ainda bem que os pigmeus não nos tomaram nossas facas e arco-e-flechas, não é mesmo, Lúcio?
- Eles não tomaram porque não viram as facas. Quanto aos arcos... Eles não reconheceram como armas. É algo novo e desconhecido pra eles.
- Em compensação nos tomaram todas as nossa lanças. Conseguimos pegar somente três das deles.
- Lanças são fáceis de se fabricar. Amanhã faremos mais algumas antes de adentrar o castelo.
- Que vai fazer com Márcia?
- No final do dia vou enterrá-la. Quero ficar mais um pouco com ela.
- Sinto muito pelo que aconteceu, Lúcio.
- Eu sei, Bicudo. Está tudo bem.
A cada ano que se passava, nosso grupo era reduzido. Contávamos agora com doze pessoas. Éramos oito homens e quatro mulheres. Os pigmeus não voltaram a nos importunar. Aquelas criaturinhas de pés enormes, sobrancelhas grossas e unhas pretas haviam nos tirado duas vidas valiosas. Amaldiçoei-os por horas. Quando acordei no dia seguinte vi Lúcio sentado ao lado do túmulo de Márcia. Acho que ele não conseguiu dormir a noite, e isso não era nada bom. Precisávamos dele alerta para ir de encontro ao chifrudo. Tão logo confeccionamos mais lanças partimos em direção ao castelo. Ao nos aproximar, identificamos mais formigões. Ao contrário do que acontecia na fortaleza (ficou óbvio pra nós que elas a usavam como formigueiro), as Formigas Guerreiras circundavam o castelo, protegendo-lhe. Desta vez nos olharam com mais firmeza, mas abriram caminho pra nós até o grande portão de metal. Chegamos a um amplo salão, e Lúcio, que ia na frente, dobrou a direita, mas foi contido por Luiz.
- Por aí, não. Devemos pegar o corredor da esquerda e seguir até o final dele, onde começa uma escadaria. Por ela vamos chegar até a sacada do castelo. Ele está nos aguardando lá.
Tenho certeza que o coração de todos disparou tanto quanto o meu. Harakit sabia que estávamos ali, e com certeza sabia também porque. Percorremos o caminho indicado por Luiz vagarosamente e este transcorreu exatamente como ele havia mencionado, o que provava que nosso amigo interagia mesmo com o chifrudo. Ao chegar a sacada, que estava repleta de gárgulas, lá estava ele... Imóvel. Reduzimos ainda mais nossos passos. Ele nos seguia com os olhos felinos, movendo somente o pescoço. Sua fisionomia era altiva. Paramos a uns quatro metros do demônio de cera. A criatura tinha mais de dois metros de altura, parecia saído de uma academia, com músculos de aço. Vestia somente uma tanga, botas de couro parecidas com as nossas e um brinco em forma de meia-lua. Soltou uma gargalhada que já nos era conhecida.
- Crianças do planeta Terra... Qual é mesmo o nome de sua galáxia? Ah, sim... Via Láctea. Gostaram de sua turnê por Katáris? Meu planeta é tão interessante quanto imaginaram? Um pouco agressivo para o gosto de vocês, não? Não é muito diferente no lugar de onde vieram. Seus semelhantes apenas aprenderam a isolar melhor suas feras. Por um momento cheguei a pensar que vocês não conseguiriam chegar até mim. Eu os subestimei. Vocês são mesmo incríveis. Aí está você... O grande líder Lúcio, eleito por meio de votação. Em Katáris geralmente o mais forte ou mais sábio ganha este posto. Não aconteceu comigo. Os Máleks sabiam que eu era tanto um quanto outro e por isso me temiam tanto a ponto de me banir. Vocês já o conheceram, não? O que acharam deles? Sabe o que eu acho deles? Acho que podiam ter toda esta massa de terra em suas mãos. Eles tem potencial pra isso, mas preferiram viver quase no anonimato. Fracos... Patéticos. Eu sou a evolução. Este planeta será completamente meu e suas criaturas inferiores serão feitas meus vassalos dentro de algum tempo. O castigo para os Máleks será a extinção.
- Os Homens Leopardo são criaturas adoráveis e pacíficas. Isso não é fraqueza e sim qualidade. Entendo que esteja magoado com eles, mas até onde sei você foi expulso por ter cometido assassinato.
- Não existe assassinato em Katáris, só a lei do mais forte, e como eu sou o mais forte, vale o que eu decidir, o que eu pensar e o que eu quiser.
- Em minha terra, chamaríamos você de ditador.
- Sei o que é um ditador... Leio isso na mente de vocês. Seus pensamentos são um livro aberto pra mim.
- Por quê nos trouxe até Katáris? Foi mesmo por pura vaidade?
- Sinto muito decepcioná-lo, mas encare esse episódio como um teste. Eu estava aprendendo a expandir meus poderes mentais e precisava testar o Efeito Espiral. Já tinha tido sucesso com ele antes, trazendo de outras dimensões objetos inanimados a até alguns animais irracionais. Vocês foram os primeiros e únicos seres dotados de alguma inteligência que consegui abduzir até o momento. Gostaram? São ganhadores de uma loteria.
- Já percebi que sabe mais de nós e de nosso mundo do que imaginamos. Deve saber também porque viemos até você.
- Sim... Desejam voltar pra casa. Não será possível. Viverão neste castelo e dividirão tarefas. Enxerguem isso como uma oportunidade única. Não costumo fazer tanto por ninguém. Quero vocês aqui como troféus. São provas vivas do ápice de meus poderes. Aceitem este presente e vivam um pouco mais.
- Escravos? Nos fará seus escravos...?
- São palavras apropriadas. Não necessito fazer rodeios. Serei franco com vocês. Estou lhes dando uma oportunidade única de me servirem ou encerarem suas vidas medíocres. Não pensem em aceitar na intenção de me subjugar quando tiverem oportunidade, pois como já disse antes, seus pensamentos me pertencem.
Neste momento, Rogério disparou em direção ao demônio empunhando duas facas, mas foi contido pela mão direita da criatura. Harakit fechou a mão no crânio de nosso amigo, esmagando-o. Imediatamente atacamos o maldito com flechas e lanças, mas ele as explodia antes que elas se aproximassem dele. Não demos um segundo de descanso ao chifrudo. Marina de aproximou dele com uma lança que foi facilmente partida e com um tapa violento foi jogada pela sacada pra fora do castelo. Eu, que não tinha habilidade com as flechas, não parei de recarregar e atirar por um segundo sequer. Olhei desesperado para Lúcio que tentava a todo custo amarrar um lápis com cipó à ponta de uma flecha e gritei.
- Lúcio... Você enlouqueceu? O que está fazendo? Atire nele. Não vamos agüentar por muito tempo.
Vi quando Harakit arremessou telecineticamente uma tocha acesa de encontro ao peito de Alberto. Pelo som que ouvi achei que ele teve morte instantânea. Caiu ao chão e fechou os olhos. Virei novamente em direção a Lúcio que finalmente colocara a flecha no arco e puxando-o ao máximo, liberou-a. Harakit, mais uma vez, como já havia feito com todas as outras que disparamos, se concentrou nela, fazendo-a explodir telecineticamente. O que ele não havia percebido é que nela se encontrava amarrado um lápis que continuou sua trajetória até se chocar contra o peito do chifrudo, perfurando seu coração. Imediatamente um jato de sangue espirrou nas mãos de Harakit, que parecia não acreditar no que via. Com seus olhos felinos, nos fitou e pudemos ouvir em nossas mentes suas últimas palavras.
- O que vocês fizeram? Não posso morrer. Sou o soberano de Katáris. Tenho muito a ensinar para meu filho.........
Em seguida, ele caiu de joelhos, tentando permanecer acordado. Miramos nele as flechas que nos restaram e não paramos até ver seus espasmos musculares cessarem. Lúcio se aproximou e ao tocar sua jugular teve a certeza de que o maldito estava morto.
- Seu erro foi se achar superior demais, demônio.
- Lúcio... Como conseguiu matá-lo com um simples lápis?
- Está lembrado que os Máleks não conseguiam exercer seus poderes telecinéticos diretamente em nós ou em objetos vindos do nosso planeta? De onde acha que veio aquele lápis?
- Mas como Harakit não percebeu isso a tempo? Como não leu em sua mente?
- Por que não teve tempo. Estava ocupado demais rebatendo suas investidas contra ele. Não pode se concentrar em tantas coisas ao mesmo tempo.
- Mas como você soube que ele não poderia?
- Eu não soube, Bicudo. Eu imaginei e arrisquei. Não havia muito a ser feito. Se não fosse nosso trabalho em grupo, estaríamos mortos.
- Se não fosse seu improviso, estaríamos mortos. Se você tivesse entrado aqui com a idéia do lápis na cabeça, não estaríamos vivos agora.
- Lúcio... Alberto ainda está respirando.
- Graças a Deus, Israel... E Marina?
- Não pode ter sobrevivido, Lúcio. O solo lá embaixo é de rocha pura.
- É verdade.
- Como vamos voltar pra casa com Harakit morto?
- Não sei... Acho que não vamos mais voltar.
- Não diga isso, cara... Passamos por tudo aquilo e agora que chegamos até aqui...
- Calma, Israel... Não se desespere. Precisamos de você. Vamos cuidar do Alberto.
- Veja... Ele está acordando. Como está se sentindo, cara? Meu peito dói muito e não consigo respirar direito. Onde está o maldito desgraçado?
- Morto, cara... Acredite... Ele está morto. Veja com seus próprios olhos. O desgraçado tem umas cinqüenta flechas no corpo e um lápis cravado no coração. Venha... Eu te carrego.
Descemos correndo e na pressa erramos o caminho de volta. Acabamos por chegar numa enorme câmara rodeada de portas. Em frente a uma delas, se encontrava uma figura humana. Ficamos vidrados naquela imagem. Um homem empunhando uma espada. Não estávamos acreditando no que víamos. Ao nos aproximar, reconhecemos aquele rosto. Era Hélio. Hélio estava ali diante de nós empunhando uma espada bárbara, de tanga, com longos cabelos presos por fita de “pano”, suando em bicas. Nos olhava, passando a espada de uma mão para a outra, ameaçador.
- Hélio... Somos nós... Está nos reconhecendo? Sou eu, Lúcio. Este a meu lado é o Bicudo. Está tudo bem? O que está acontecendo? Onde esteve todo esse tempo?
- Com o mestre.
- Que mestre? O professor Mauro está morto.
- Me refiro ao mestre Harakit.
- Harakit... Harakit era seu mestre?
- Era, não... É.
- Era, Hélio... Ele está morto.
- Há, há, há... Harakit, morto...? Conte uma outra piada, idiota.
Fizemos silêncio por alguns segundos, então Hélio percebeu que eu não mentia. Seu semblante se alterou notoriamente.
- O que vocês fizeram? Ele não pode ter sido subjugado por vocês. Vocês não são ninguém perto dele. Ninguém... Eu disse a ele que eram uns babacas e somente isso.
- O único babaca aqui é você, Hélio. Sempre foi. Você nunca prestou, mesmo... Como foi se aliar a essa criatura? Um genocída como ele? Aliás, se aliar não... Você era somente seu lacaio.
- Não fui eu quem vim ao mestre e sim ele a mim. Dentre todos nós ele percebeu que meu potencial era maior e me resgatou no momento de minha queda, abandonando a todos vocês em seguida.
- Potencial? Sim... Ele percebeu que você tinha o maior potencial entre todos nós para ser seu cachorrinho de estimação.
- Afastem-se todos. Vou proteger o que restou dele com minha própria vida.
- O que tem neste quarto? Essa espada não me assusta. Onde a conseguiu?
- A espada e o castelo foram idéia minha. O mestre gostava das histórias da idade média que eu lhe contei. Ele ordenou seus escravos que construíssem o castelo e então nos mudamos para cá. Quando chegamos, ele me presenteou com a espada e me concedeu a honra de proteger seu primogênito.
- Então é isso que você guarda? O filho de Harakit. Saia da minha frente. Estou lhe dando uma chance de sair daqui com vida.
Apontamos nossas flechas e lanças na direção de Hélio, mas ele não se moveu.
- Seja homem, Lúcio. Não tem coragem de me enfrentar sozinho?
- Sei... Uma faca contra uma espada... Muito justo.
- Você pode pegar também uma lança. Está melhor pra você? Uma lança e uma faca contra uma espada.
Lúcio permaneceu em silêncio, duvidoso. Não conhecia a habilidade de Hélio com espada em punho.
- Eu sabia... Quando o mestre me disse que você era o líder do grupo, eu ri e disse pra ele que você não passava de um idiota. Sempre te desprezei, e não foi à toa.
Foi a gota d’água. Lúcio, que tinha uma faca na mão direita, tomou de minhas mãos uma lança, se preparando para lutar com Hélio. Seus olhos mostravam ódio e decisão. Me dirigi a ele, dizendo que ele não precisava fazer aquilo.
- Não aceite a provocação dele, Lúcio. Podemos dar cabo dele agora mesmo e encerrar este episódio.
Ele não me deu ouvidos. Já era de se esperar. Era uma questão de honra. Hélio girou a espada numa velocidade tão grande que Lúcio mal teve tempo de se abaixar. Por um segundo não teve a cabeça separada do corpo. Antes que pudesse revidar, teve que saltar pra trás, pois a espada de Hélio veio com tudo na linha de sua cintura, batendo pesadamente contra uma coluna. Nosso líder então atirou a lança que atravessou a coxa direita de Hélio, que nem sequer soltou um gemido de dor. Ele era vigor puro. Tive medo do resultado daquele embate. Lúcio parecia exausto e zonzo. Hélio partiu pra cima dele, que estava no chão, mas acabou tropeçando na lança atravessada em sua perna. Lúcio aproveitou então para dar-lhe uma gravata e segurou-lhe o braço da espada, contendo-o. Hélio conseguiu se libertar aplicando tremenda cotovelada nas costelas dele. Hélio se ergueu e ficando bem de frente pro nosso amigo, levantou a espada e desferiu um golpe potente contra a cabeça de Lúcio, mas este se esquivou no último momento, levantando-se e se aproveitando da surpresa de Hélio para lhe chutar os testículos com todas as forças que lhe restaram. Hélio largou a espada e caiu ao chão segurando a parte atingida. Nosso líder puxou a lança de sua coxa, arrancando-a e tirando um urro de dor dos lábios do inimigo. Quando Lúcio ia cravar-lhe a arma no peito, este reagiu repentinamente, impulsionando ele contra a coluna. Lúcio bateu a cabeça e desmaiou. Hélio voltou a pegar a espada e se aproximou dele. Foi ai que entrei na batalha.
- Largue isso.
- Qual é, Bicudo... Foi uma luta justa.
- Uma luta justa? Um homem muito bem treinado na arte da espada, descansado e bem alimentado contra outro com pouca noção, exausto e faminto... Isso é muito justo pra você? Não vou repetir. Jogue a espada no chão. Que honra há em tirar a vida de um homem desmaiado?
Hélio titubeou. Estiquei meu arco ao máximo. Sabia que àquela distancia não erraria. Ele ergueu a espada e se virou, veloz, mas recebeu um golpe do peito do pé de Lúcio no local do ferimento ao mesmo tempo que soltei a flecha, alvejando-o nas costas. Lúcio se ergueu com nossa ajuda, enquanto Hélio cuspia sangue. A flecha perfurou seu pulmão. A morte estava estampada em seus olhos. Ele zigue-zagueou um pouco, se escorou na parede e acabou por cair em frente à porta que protegia. Seus olhos estavam abertos quando parou de respirar. Tudo podia ter sido diferente. Ele podia estar conosco agora, mas preferiu ficar contra seus semelhantes. Empurramos a porta de metal maciço, prontos para qualquer surpresa e deparamos com três fêmeas Máleks e um filhote que era uma miniatura exata de Harakit. Ele nascera sem os pêlos típicos da raça e tinha o mesmo olhar penetrante do pai. Sentimos invadir nossa mente.
- Não me façam mal ou chamarei as Formigas Guerreiras.
- Até que elas cheguem aqui já teremos feito você em pedaços.
- Não desejo mal a vocês. Só quero sobreviver.
- Nós também.
- Posso mandá-los de volta. É isso que desejam, não?
- É só nisso que pensamos todo o tempo.
- Meu pai me ensinou a usar o Efeito Espiral. Estão prontos pra deixar Katáris?
- Jovem... Pode ter certeza disso. Você herdou o potencial de Harakit?
- Meus poderes ainda estão engatinhando, mas quando for adulto, certamente terei suas habilidades.
- E o que pretende fazer com tamanho poder?
- Nunca compartilhei com meu pai o desejo de controle absoluto. Se o faz sentir melhor, agora que ele se foi, pretendo ir de encontro aos meus familiares na aldeia. Sei que meus avós são vivos e sempre quis conhecê-los.
Terminando de dizer isso, o pequeno demônio branco fechou os olhos e com tremendo esforço abriu um portal no teto da câmara. A princípio, nada aconteceu, depois fomos todos sugados de uma só vez para dentro dele. Fomos soltos em pleno ar a uns três metros do chão e caímos em cima de carros que estavam parados em frente a um semáforo. É claro que amassamos a lataria deles. Alguns de nós se machucou sem gravidade. Já passamos momentos piores. Lúcio ficou parado ali alguns momentos, olhando tudo ao seu redor sem acreditar muito que tínhamos conseguido. Mas os olhares mais espantados eram dos motoristas e transeuntes que não entendiam o que estava acontecendo. Eles estavam vendo homens e mulheres semi-nús de arcos e a lanças nas mãos que acabaram de cair do céu. Eu não teria ficado menos surpreso. Israel se aproximou de Lúcio.
- E agora, o que é que nós fazemos, Lúcio?
- Vamos pra casa.
Percebi que estávamos na avenida Lobo Júnior. Como podia ser aquilo? Era perto de nossas casas. Teria o chifrudinho calculado aquilo? Não importava. Lúcio se aproximou de uma senhora que passava na calçada e a perguntou.
- Em que dia, mês e ano nós estamos, senhora?
- Hoje é terça-feira, dezessete de dezembro de 1991.
Lúcio começou a rir feito criança e saiu correndo, abandonando-nos. A mesma senhora virou pra mim e apontou para o corpo de Hélio, que jazia no meio da rua.
- Aquele ali parece não estar muito bem.
- Aquele? Ah... Ele não está conosco.
Cheguei em casa minutos depois e dei o maior susto do mundo em meus pais. Nunca fui tão feliz quanto naquele momento fantástico. Nos abraçamos e choramos juntos durante horas. No dia seguinte procurei Lúcio que me atendeu com uma criança de dois anos e pouco no colo.
- Veja, Bicudo... É meu filho.
- Seu filho?
- Sim. Quando fomos parar em Katáris, havia poucos dias que Cristina tinha feito o exame. O nome dele é Luciano.
- Por quê nunca me contou, Lúcio? Por quê?
- Eu... Eu sofria muito só de me lembrar disso. Não consegui comentar com ninguém. Nem Márcia sabia. Pra mim, eu nunca conheceria meu filho. Isso me causava uma dor que não consigo expressar. Me desculpe. Você é meu melhor amigo. Merecia saber.
- Não tem problema... Eu entendo. Ele é um garoto bonito. Lúcio... E Cristina?
- Ela me falou que quando o menino completou um ano começou a pensar que ele deveria ter um pai e se relacionou com uma pessoa, mas segundo ela mesma disse, durou pouco tempo e de lá pra cá não teve mais ninguém. Parece que vamos voltar. Ela ficou muito emocionada e chorou muito comigo. Estamos fazendo planos pro futuro. Acho que ela ainda gosta de mim. Amanhã vou registrar o garoto em meu nome.
- É isso aí, cara.
Era incrível... Bastou Lúcio pisar novamente em nosso planeta que seus ares voltaram ao normal. Eu estava vendo ali em minha frente meu grande amigo do jeito exato que era antes do incidente. Tirando a cicatriz e o emagrecimento, é claro. Ele não perdeu tempo. Estava barbeado e de cabelo cortado. Fiquei feliz quando ele me disse que se Cristina já não tivesse batizado o garoto, eu seria o padrinho.
- Ora, você vai ter outros filhos.
Nos dias que se seguiram, visitei com Lúcio nossos outros amigos e também a família dos que lá permaneceram e dos que tombaram naquele lugar. Luiz está apresentando melhoras, mas dizem que provavelmente não vai voltar a ser senil como antes. Carlinhos e Carla parecem bem apesar do que aconteceu com Rogério ser tão recente. Alberto se submeteu a uma bateria de exames por causa da forte pancada no peito e vai se recuperar. Aline está de vigília ao lado dele. Israel e Luciene estão fazendo planos para morar juntos. Quanto a César, não consegui encontrar, mas já fui informado que estará na entrevista que um canal de televisão preparou pra nós daqui a uma semana. Agora vou me despedindo, pois preciso prestar depoimento as autoridades sobre a maior aventura de nossas vidas.
Capítulo 2
De Volta à Dimensão Sinistra
Me lembro bem. Era 16 de abril de 1998. Uma quinta-feira. Eu estava desesperado. Nunca tinha pensado em viver sem Cristina. Para terem noção do que eu sentia por ela, fui um homem que não tive amantes. No trabalho, tive muitas oportunidades de manter um caso ou somente uma breve aventura com uma colega de trabalho chamada Cíntia. Ela mostrou interesse em mim desde o primeiro dia. Era muito bonita. Loira de cabelos cacheados e olhos azuis. Fugi sutilmente de todas as investidas dela, que ao invés de ficar sem graça, sorria com sarcasmo. É claro que me senti tentado a ceder, mas Cristina não merecia. Sei que iria me arrepender. Minha esposa era morena de cabelos pretos muito lisos. Eu a chamava de minha Cleópatra. Brigamos poucas vezes durante todo o nosso relacionamento. Na maioria das vezes por culpa minha. Ela não admitia que eu chegasse tarde em casa ou que saísse sem dar satisfação de onde iria. Era esposa e mãe zelosa. Trabalhava para ajudar nas despesas em casa. Éramos apaixonados e completamente cúmplices. O tempo não desgastou nosso relacionamento. Como eu ia dizendo, estava desesperado. Tínhamos acabado de entrar em um financiamento de um apartamento simples na Barra da Tijuca e nos mudamos pra lá. Foi quando aquilo aconteceu. Eu era gerente de processamento de dados e Cristina caixa bancária. Estava no trabalho quando recebi o telefonema de uma colega de trabalho perguntado por Cristina.
- Ela ainda não apareceu aqui hoje. Está doente? Estou ligando pra sua casa e ninguém atende.
- Você me deixou preocupado, Sabrina. Ela não é de faltar ao trabalho. Vou ligar pra minha sogra.
Liguei pra mãe de Cristina que disse não saber dela, então saí do serviço e fui pra casa ver se havia algum bilhete. Ao chegar lá, entrei em nosso quarto e para minha surpresa Cristina estava deitada na mesma posição em que se encontrava quando saí pela manhã. Como pode não ter ouvido a extensão do telefone, que ficava na mesa de cabeceira ao seu lado, tocar? Puxei o lençol que a cobria e encostei em seu braço. Estava fria. Gelei completamente. A sacudi por minutos, sem acreditar que o pior havia acontecido. Cristina estava morta. Mas como podia ter morrido dormindo se gozava de boa saúde? Chorei copiosamente sobre seu corpo inerte antes de pedir ajuda aos meus vizinhos do lado. Eles entraram no apartamento e me consolaram, depois chamaram o corpo de bombeiros, que recolheu Cristina para o Instituto Médico Legal. A polícia me fez algumas perguntas e depois me liberou. Nesta ocasião, minha mãe e meus sogros já estavam junto a mim, todos tão desesperados e surpresos quanto eu. Luciano, meu filho, ainda não sabia de nada. Tinha sido deixado na escola por mim de manhã cedo e ao sair foi pego por sua tia, a irmã de Cristina e levado para a casa dela no Recreio dos Bandeirantes. Cristina foi enterrada e não tive coragem de comparecer. Soube que alguns parentes dela me criticaram por isso. Nos dias que seguiram fiquei na casa de meus pais e não voltei ao trabalho. Certo dia, me embriaguei e comecei a recordar os dias que passei em outra dimensão. A maneira como Cristina morreu lembrava o que aconteceu com Sandra no deserto. Mas teria relação? Harakit estava morto, ou pelo menos achávamos que sim. Poderia ter sobrevivido a tudo aquilo? Lembro de seu enorme corpo inerte ao chão, banhado em seu próprio sangue e crivado de flechas. A angústia era tão grande que cheguei a pensar em me matar. Tomei coragem de voltar ao nosso apartamento, mas ao chegar no quarto que dividi com ela, tombei de joelhos ao chão e chorei por horas. Precisava ir ver meu filho, que perguntava por mim e me ligava todos os dias, mas eu não conseguiria me conter. Ainda estava muito fragilizado. Deitei na cama e abracei os travesseiros. Minutos depois ouvi alguém entrar no apartamento e lembrei que havia deixado a porta encostada. Era minha mãe, que adentrou o quarto.
- Meu filho... Sei como está se sentindo. Passei por algo parecido quando você desapareceu com seus amigos da turma 1.102. Os noticiários não paravam de falar sobre o mistério, agonizando ainda mais meu coração. Quando você retornou, minha vontade de viver voltou. Sei que você a amava, mas o tempo cicatriza tudo. O fruto que vocês geraram está precisando de você mais do que nunca. Estou vindo da casa da sua cunhada. Prometi que voltava lá com você. Arrume-se. Se barbeie e penteie o cabelo. Iremos juntos, está bem?
- Claro, mãe. Vou fazer isso.
Entrei em meu Apollo com minha mãe e em poucos minutos chegamos a casa de Cristiane. Meu filho, que completara nove anos de idade na semana anterior, viu o carro estacionar e correu até a porta. Assim que passou por ela, saltou ao meu encontro e me abraçou forte, chorando e soluçando.
- Me perdoe, Lú. Perdoe seu pai por não ter vindo antes.
- Eu te perdôo, papai. O que vamos fazer sem a mamãe? Ela tem que voltar, pai. Ela tem que voltar.
- Filho... Você vai ter que entender. Sei que é duro pra alguém na sua idade, mas terá que entender que sua mãe não vai mais voltar. Ela está com Deus agora.
- Pai... Por que isso aconteceu com ela?
- Ainda não sei, filho, mas pretendo descobrir. Mãe... O que disse a autópsia?
- Não acusou absolutamente nada, meu filho.
- Lú... Tenho que ir agora. Preciso ver alguém, está bem?
- Quem, pai? O senhor acabou de chegar...
- Papai precisa falar sobre algo muito importante com o tio Bicudo. Ele está morando em cabo Frio, por isso vou viajar. Assim que retornar em alguns dias, virei direto ver você. Não deixe de ir a escola. Eu te amo muito.
- Pai... Me deixe ir com o senhor... Por favor, pai.
- Não acho bom, Lú... Não é seguro, já que estou com minha cabeça tilintando tanto. Não quero arriscar a sua vida na estrada. Vai ser melhor continuar com sua tia por enquanto.
- Mas já que o senhor acha que não está em condições de dirigir então vá.
- Preciso ir, filho. Acredite. Manteremos contato. Se cuide.
Luciano me abraçou forte e tornou a chorar. Deixei minha mãe em casa, no subúrbio e parti pra Cabo Frio sem sequer avisar Bicudo que estava indo. Não pude deixar de entristecer ainda mais ao recordar que apenas uma semana antes meu menino era só felicidade na festa de aniversário que eu e sua mãe fizemos pra ele. Dirigi automaticamente, perdido em pensamentos absurdos de que Harakit poderia ser o causador da minha dor. Cheguei ao apartamento de Bicudo no bairro Braga uma hora e quarenta minutos depois. Toquei o interfone e sua esposa me atendeu da varanda.
- Lúcio... Que surpresa. Por que não avisou que vinha. Teríamos preparado algo melhor.
Ela voltou pra dentro e acionou o controle automático da porta, abrindo-a. Subi as escadas até o segundo andar e ganhei um forte abraço de Amanda. Bicudo a conheceu em Búzios, cidade natal dela, anos atrás e os dois se casaram.
- Como está Cristina e Luciano?
- Amanda... Cristina faleceu.
- Oh, meu Deus... O que foi que aconteceu, Lúcio?
Contei toda a história a ela, que ficou muito chocada. Ao final, ela pegou o telefone e ligou pra Bicudo, que ainda estava na pousada que comprara em sociedade com o cunhado. Ouvi quando ela informou a ele que eu o estava aguardando e que viesse o mais rápido possível, pois havia acontecido algo sério. Bicudo chegou momentos depois, muito curioso.
- Lúcio, meu grande amigo... O que o trás aqui num dia de semana?
- Desculpe te tirar da pousada. Sei que está cheio de trabalho por lá. Bicudo... Aconteceu algo muito estranho.
- O que foi?
- Cristina morreu dormindo.
- Meu Deus, Lúcio, não me diga uma coisa dessas.
- É verdade. Não sei por que, mas acho que Harakit tem alguma coisa a ver com isso.
- Lúcio... Você deve estar chocado e estressado. Harakit está morto e bem morto.
- Como podemos ter certeza? Sabemos tão pouco sobre aquela criatura.
- Você mesmo o tocou no pescoço, lembra-se? Não tinha pulsação.
- Sim, Bicudo, eu me lembro, mas você está recordado da maneira que Sandra morreu no deserto? É muito parecido. O médico legista que examinou Cristina não soube explicar a causa da morte. Tem alguma coisa muito errada aí, cara.
Bicudo parou, pensativo. Pegou na estante um dos livros que relatava o mistério sobre Katáris e o folheou, depois tornou a colocá-lo no lugar.
- Que pretende fazer?
- Não sei... Não vou ficar sofrendo calado.
- Mas e se ele teve alguma coisa com isso? Não pode voltar até lá. É impossível.
- Quero que o desgraçado me enfrente em meus sonhos.
- Lúcio... Se isso acontecer, você estará acabado. Ele estará em seu território, e você não. Lúcio, você seria presa fácil.
- Não com o ódio que tenho no coração. Se você visse a expressão nos olhos de meu filho...
- Lúcio, o que você precisa é de tempo, meu irmão. Fique aqui conosco alguns dias. Fique meses se desejar. Precisa se conformar e nós vamos te ajudar. Onde está seu carro?
- Lá fora. É o Apollo.
- Trocou de carro?
- Não. Comprei o Apollo e dei o Escort pra Cristina. Ela usou muito pouco tempo.
Dormi com eles naquela noite. Minha mente vagou e recordei a eterna luta pela sobrevivência em Katáris. Quando retornamos, Bicudo foi denunciado ao Ministério Público e processado criminalmente pela morte de Hélio, mas foi absolvido. Legítima defesa. O único problema envolvendo violência que tive ao retornar pra Terra foi quando dois policiais militares me abordaram em meu carro, querendo me revistar. Não gostei da maneira truculenta como o fizeram e após uma breve discussão, eu os agredi, sendo preso em seguida. Na delegacia, fui atendido pelo Alberto, agora advogado, que reverteu a situação, representando contra os policiais, que passaram a me ameaçar pelo telefone. É claro que nunca me intimidei. A sentença não foi grande coisa. Eles não perderam o emprego, apenas promoção. No dia seguinte de manhã, ajudei Bicudo na pousada em Búzios. Aquilo me fez bem. Na volta, paramos em uma lanchonete na reserva do Peró para lanchar e lá conheci uma garçonete que nos reconheceu da televisão. Ela ficou fascinada e ao final pediu nossos telefones. Bicudo passou o de sua casa, mas se apressou a informar que era casado.
- Por quê deu o telefone? Vai arrumar problema com a Amanda.
- Claro que não. Justamente por isso avisei que era casado. Dei o telefone pra ela ligar pra você, não pra mim.
- Não estou com cabeça pra isso, Bicudo.
- Você tem que viver, Lúcio. Sei que é recente, mas você precisa reagir.
- Não quero sair com ninguém. Me sentirei como se estivesse traindo Cristina.
- Lúcio... Cristina se foi. Acha que de onde ela está vai querer que você viva só pelo resto de sua vida? Você está com vinte e sete anos, cara.
- Tá bem... Se ela ligar, nós conversamos.
- E ela vai ligar, meu amigo. Percebeu o interesse dela quando nos reconheceu? Você viu aquelas coxas?
Dito e feito. No dia seguinte, ao chegarmos ao apartamento de Bicudo, havia um recado de Luiza pra mim. No recado, um número de telefone. Coloquei o papel no bolso, sem interesse. Liguei para meu serviço e pedi as contas. Não havia como retornar ao trabalho. Quando me recuperasse, distribuiria curriculuns. O dinheiro que eu e Cristina tínhamos aplicado deveria dar para sanar o financiamento do apartamento. Pensei também em colocar o carro dela a venda. Dias depois, na pousada, Luiza apareceu. Estava linda, de mini-saia e topper. Ela tinha dezenove anos, dona de um corpo maravilhoso e se insinuava o tempo topo. Sim, ela era muito sedutora. Não tinha um rosto muito bonito, mas compensava com pernas grossas e roliças e seios durinhos. Eu vestia calça baggy, top sider e uma blusa de bali. Ela se aproximou de mim, me cumprimentou e me convidou pra almoçar com ela.
- Como me descobriu aqui?
- Marcos Antônio passou no meu trabalho e me deu o endereço.
- Bicudo? Eu devia ter imaginado. Tá legal. Vamos almoçar, então. Tem preferência por lugar?
- Não, e você?
- Qualquer restaurante na orla. Eu adoro ficar olhando pro mar.
Chegamos a um aconchegante restaurante na beira da praia e pedimos arroz com polvo e peixe ao molho de camarão. Meu apetite começava a retornar. Meu interesse pelo sexo, não posso negar, também.
- Assim que voltei de Katáris, quando me deparei com o mar após tanto tempo, senti uma emoção muito forte. A maresia, o cheiro da água salgada... Foi mágico.
- Não havia mar em Katáris?
- Se haviam oceanos por lá, não os conhecemos. Em compensação, o lugar era farto de rios e lagos. Água salgada, pelos caminhos que passamos, não vimos.
- Deviam escrever um livro contando na íntegra a história de vocês naquele planeta.
- E será escrito. Já fomos procurados por pessoas interessadas em passar pro papel nossa aventura. Estão negociando isso há algum tempo. Mas já artigos sobre nossa permanência lá em livros e revistas de esoterismo e fenômenos para-normais.
- Comecei a juntar fotos e artigos sobre vocês.
- Pra que?
- Pra colecionar. Adoro essa magia em torno do que contam. Queria ter sido levada junto com vocês. Viver toda aquela fantástica aventura.
- Não iria querer ter estado lá. Acredite. Não sabe o que aquele lugar faria com você. Tenho poucas recordações boas e milhares de recordações ruins.
- É verdade que se relacionou com uma de suas amigas?
- Sim... Seu nome era Márcia.
- Ela era bonita?
- Tanto quanto você. Procurei sua família quando retornei, mas não quiseram me receber. Eles devem ter seus motivos.
- Chegaram a ter algum filho?
- Não. Tivemos cuidado para que ela não engravidasse. Só tenho um filho de nove anos de idade com minha esposa.
- É, eu sei. Seu amigo me falou. Ela morreu recentemente, não foi? Por que ainda não tirou a aliança?
- Não me sinto à vontade pra fazer isso. Não é desejo meu faze-lo.
- Claro...! Pode me contar sobre Katáris? É verdade que o planeta fica em outra dimensão?
- Segundo Harakit, sim.
- Vocês o mataram, não foi?
- Já não tenho mais tanta certeza sobre isso.
- Como ele era?
- Um monstro com gestos efeminados e físico de mister universo.
- Sério? Ele falava como boiola?
- Gesticulava. Nunca ouvimos sua voz, somente sua gargalhada. Ele se comunicava por meio de telepatia. Entendíamos com clareza o que nos passava, assim como ele entendia o que passamos pra ele por intermédio de nossos pensamentos.
- Fantástico. Vocês pouparam o filho dele porque era uma criança, não foi?
- Não exatamente. Se o tivéssemos matado, não conseguiríamos voltar pra Terra. Além disso, ele foi muito convincente ao alegar que não compartilhava da loucura do pai.
- É verdade que muitos amigos seus estão lá até hoje?
- Não sei se sobreviveram, mas deixamos lá três casais com seus filhos.
- Você era apaixonado por uma das meninas que ficou lá, não é verdade?
- Como sabe disso?
- Li num recorte de jornal. Um de seus amigos que sobreviveu deu essa declaração. Acho que o nome dele é Israel.
- Safado... Quando eu estiver com ele...
- Caramba! Não sabia que isso ia te irritar.
- Vai querer sobremesa?
- Uma banana split.
Após saborear o sorvete, me dirigi para Cabo Frio para deixá-la em casa. Ela me disse morar no bairro São Cristóvão. Quando parei em frente à casa dela, ela me olhou fixamente, depois me puxou pela nuca de encontro aos seus lábios. Gostei do beijo. Havia tempo que não me sentia vivo. Ela voltou a me encarar.
- Tem certeza que quer me deixar em casa?
Fomos parar num motel. Quando tirei minha blusa, ela reparou na 765 que ficava no coldre atravessado em meu peito.
- Não se preocupe... Isso é para minha segurança. A arma é registrada. Você já ouviu falar de neurose de guerra?
Vivi um momento muito gostoso com ela aquele dia. Minha consciência pesou ao lembrar de meu filho. Eu estava negligente com ele. Era hora de voltar pra casa e retomar o rumo da minha vida. Liguei para o trabalho para saber sobre minhas contas e o dono da empresa me perguntou se eu já estava pronto para voltar ao serviço. Topei na hora. Me despedi de Bicudo e Amanda e pedi a ele que passasse na lanchonete onde Luiza trabalhava para avisá-la que adorei os poucos momentos que passamos juntos, depois entrei no carro e fui para casa. Era uma sexta-feira. Passei na casa de minha cunhada e prometi ao meu filho que na segunda-feira o levaria para a escola e de lá iria trabalhar. Quando retornasse do serviço, o pegaria na casa de sua tia para voltarmos pro nosso apartamento. Ele sorriu, feliz. Tudo parecia muito bem, até que naquela mesma noite fui assombrado por Harakit. Pela manhã fiquei duvidoso, se seria apenas um pesadelo ou se realmente o maldito invadira minha mente. Fiquei tenso o dia inteiro, até que anoiteceu novamente e adormeci. Acordei em meio a outro pesadelo e pude ouvir em minha cabeça, já acordado, sua gargalhada apavorante. Não me restavam mais dúvidas. O demônio havia retornado a minha vida. Meu medo deu lugar ao mais puro ódio quando me certifiquei de que o desgraçado tirara a vida de minha mulher na flor de sua idade. Gritei só, dentro de meu apartamento. Na segunda-feira não fiz nada do que havia planejado. Me levantei e num impulso inexplicável me dirigi até o Colégio Inspiração em Brás de Pina. Chegando lá, passei sem problemas pela portaria e cheguei de frente a sala da antiga turma 1.102. Ela estava trancada. Voltei a recepção da escola onde perguntei a pessoa que estava no atendimento porque somente aquela sala não estava ocupada.
- O senhor deve ter ouvido falar sobre o incidente que houve com uma turma inteira e seu professor há dez anos atrás aqui neste colégio... Desde o ocorrido, aquela sala encontra-se fechada a mando da direção da escola.
- Ok, obrigado.
Tornei a subir até o andar, peguei certa distancia e corri em direção a porta, batendo com toda força contra ela com meu ombro direito. Ela se quebrou e fui parar no chão, em seu interior. A sala estava totalmente vazia. Ouvi vozes se aproximando perguntando o que estava acontecendo, mas minha atenção foi tomada pelo súbito estrondo do vórtice que se formou acima de mim, me sugando antes que eu pudesse fazer algo. Eu não estava acreditando. Fui liberado em pleno ar, tal qual ocorrera há quase dez anos atrás. Tentei desesperadamente me segurar em algum galho de árvore, mas acabei batendo pesadamente com as costelas contra o chão gramado. Os galhos amorteceram minha queda, mas não evitaram que eu tivesse uma luxação e ganhasse um hematoma enorme. Fiquei ali parado por vários minutos. Mal conseguia respirar. Olhei em minha volta e pude reconhecer ao meu lado uma mesa semi-enterrada, o que indicava que caí na Floresta Marcel, ou seja, no mesmo local da primeira queda, anos atrás. Fiquei atento a qualquer som ou movimento. As nuvens se movimentavam rapidamente, levadas pelo vento forte. Quando começou a anoitecer, escalei uma árvore e dormi em um galho. Como fez frio à noite, me cobri com folhas enormes. Acordei com muita fome e praguejei. Não podia acreditar que teria de passar por tudo aquilo de novo. Mal consegui sobreviver àquele lugar contando com a ajuda de todo um grupo de pessoas. Como me manteria vivo sozinho? Peguei minha pistola e coloquei o pente depois de contar as balas. Eu tinha onze ao todo. Não era muito, levando-se em consideração o local onde eu estava. Tentei abater pequenos roedores com um toco de madeira pra não gastar balas, mas foi em vão. Eram pequenos e ágeis. Me ludibriaram com facilidade. Passei a colher raízes e frutas como nos velhos tempos. Quando cansei de minha dieta vegetariana, confeccionei um arco e algumas flechas. Minha pontaria não havia se deteriorado muito e graças a isso abati caça. O problema foi acender fogueiras sem a ajuda dos isqueiros que tão bem nos serviram em outra ocasião. Tive que me virar à moda dos escoteiros, e por causa disto minhas mãos ficaram cheias de calos. Cortei as pernas de minha calça para ficar mais confortável. Tentava a todo custo encontrar o cercado onde achamos nosso antigo mapa. No caminho, ouvi um grunhido que me soou familiar. Me escondi atrás de uma árvore e ao olhar em direção ao som pude vê-lo mastigando roedores. Era um animal da raça que matara Marcel. Aquela floresta certamente era seu habitat natural. Pus uma flecha no arco e estiquei o mais que pude, saindo de meu esconderijo. Mirei suas costelas, no momento em que ela virou os olhos em minha direção. Disparei. A criatura era tão ágil que saltou pra cima de mim com sua boca escancarada. A flecha acabou por se alojar dentro de sua garganta. O animal grunhia alto, imitando o som dos suínos, tentando com as patas arrancar a flecha. Seus gritos atraíram a atenção de um predador maior. Era outro velho conhecido. O javali gigante da espécie que esmagou a perna de Cadú, causando sua morte. O animal veio correndo pelo mato, esmagando troncos e empurrando tudo o que se encontrava em seu caminho, até que abocanhou o esquelético animal que se encontrava ferido e desesperado, estraçalhando-o. O javali com certeza me viu ali parado, mas me ignorou, arrancando pedaços de sua presa e as engolindo. Saquei de minha pistola 765 e fiz o primeiro disparo, acertando a orelha esquerda do suíno.
- Nunca me dê as costas, desgraçado.
O porco peludo largou seu lanche e partiu pra cima de mim. Fiz mais um disparo preciso, desta vez entre os olhos do animal, que caiu morto na grama. Cortei alguns pedaços dele e me servi ali mesmo. Peguei minha blusa soada e suja e a usei como trouxa para carregar partes do animal. Tive de abandonar pra trás mais de noventa por cento da carne, pois não havia como carregar. Minha prioridade agora era encontrar água. Cheguei a beber um pouco de sangue para matar minha sede. Não era a primeira vez que fazia isso. Na primeira ocasião que estive em Katáris, todos fomos obrigados a beber sangue animal para sobreviver em dias em que a água era escassa. Retornei àquele planeta em quatorze de junho de 1998. Meu relógio AQ-600 indicava naquele momento dia vinte e dois de julho. Eu já estava naquela dimensão havia mais de um mês. Cheguei a um local infestado de pássaros sem asas. Eram maiores que galinhas e tinham penas azuladas. Se assustavam com qualquer movimento e se dispersavam, voltando a se agrupar minutos depois. Me escondi atrás de uma moita e passei a praticar arco-e-flecha neles. Matei centenas deles. Foi uma maldade, mas nas minhas condições, sequer estava ligando pra isso. Carreguei algumas daquelas aves abatidas comigo e no mesmo dia cheguei a uma lagoa onde matei minha sede. Fiquei bolando uma maneira de carregar água comigo, mas nenhuma idéia me beneficiou. Havia um outro grande problema. Eu não fazia mais a menor idéia de onde estava. Com certeza já devia ter chegado ao cercado, mas errei o caminho. Num belo dia, avistei uma montanha que me pareceu familiar.
- Será que é o Pico dos Zumbis? Deus... Que seja ele.
Caminhei apressado até ela e comecei a escalá-la sem ter certeza. Passei uma noite alagado em meu acampamento improvisado. Chovia muito e a única coisa que eu tinha para me proteger do frio era a capa que fiz com o couro do javali abatido. Estava ali encolhido quando ouvi um som vindo dali de perto. Forcei minha vista e vi surgir de dentro da terra uma enorme cobra ou verme branco que seguiu montanha abaixo. Nunca vira antes aquele animal. Quando a chuva cessou, voltei a escalar a montanha e antes mesmo de chegar ao povoado, avistei alguns Zumbis. Me aproximei deles, que já haviam me visto e tive a impressão de que apressaram o passo. Uma vez dentro da aldeia, percebi que várias casas suspensas estavam destruídas. Teria havido algum desentendimento entre eles? Duvido muito. Eram pacíficos demais. Passei em frente a nossa antiga cabana, que era uma das maiores e vi seus novos donos me olharem com curiosidade.
- Vocês deveriam me pagar aluguel, sabia?
É claro que não entenderam uma só palavra. Parei de frente a árvore de Tonga. Tonga Júnior, agora adulto, desceu e me abraçou. Sua mãe, ao contrário dele, apontou para a Floresta Cadú, insinuando que não me desejava lá. Fiz Tonga Júnior entender que desejava ver seu pai, mas o que ele me passou me entristeceu muito. Nosso amigo Tonga estava morto. Tentou me explicar de que maneira seu pai morreu, mas não consegui entender direito. Algo ou algum animal que veio do céu o havia matado e a muitos outros do povoado. Como sua mãe insistia para que ele subisse, me despedi mais uma vez e fui tomar banho na nascente que ficava próxima. Após matar a sede, adentrei a Floresta Cadú. Caminhei muito, até que cheguei num trecho de mata fechada. Havia muitas plantas com espinhos que não estavam ali anos atrás. Cortei-me todo e parei para descansar, quando percebi algo no chão que não era típico do local. Estava meio enterrado. Aproximei a mão e peguei o objeto. Ri muito quando reconheci o apagador que Animal havia pego na mochila de Márcia e jogado fora em seguida. Aquilo foi sem dúvida uma coincidência fantástica.
- Pelo menos sei que estou no caminho certo. Tenho que ficar ligado nas aranhas gigantes. Não desejo esbarrar com elas por nada desse mundo, nem do outro.
Algum tempo depois, cheguei a um trecho de beleza formidável. Não sei se era por causa da época do ano, mas havia várias árvores de folhas roxas. Era lindo aquele pedaço da floresta. Tempos depois, cheguei a Lagoa dos Canibais Aquáticos. Não ousei entrar nela. Limitei-me a matar a sede e segui viajem. Alguns dias se passaram e avistei a Tribo dos Nacacos. Estranhamente aquele povo pareceu não me reconhecer. Ao contrário de nosso último contato, pareciam frios e distantes. Procurei pela Vovó sem sucesso. Tudo ali estava muito diferente. Ela não devia estar mais viva. Já era bem idosa, dez anos atrás. Fiquei entre eles alguns dias para me recuperar dos cortes que sofri pelo corpo e quando me preparava pra seguir viajem, a aldeia toda entrou em alvoroço e correu para certo canto da mata. Um felino da raça de Puma e Juma rosnava ameaçadoramente, tendo embaixo de uma pata um Nacaco já ferido. Seus semelhantes gritavam e jogavam coisas nele na esperança de que soltasse o ser peludo. Puxei minha pistola e ia atirar no animal selvagem quando pensei que poderia ser o próprio Puma, então disparei para o alto. O que imaginei acabou acontecendo. O grande gato se assustou com o estampido e correu pra longe dali. Os Nacacos pegaram seu amigo ferido e levaram de volta, mas não antes de pular sobre mim em forma de agradecimento. Fiquei feliz de tê-lo salvo. Tomara que tenha sobrevivido. Adentrei a mata mais uma vez, desta vez tendo no pente somente oito balas. Sabia que iria precisar demais de munição caso tornasse a encontrar Harakit. Não que minha pistola fosse garantia de eliminá-lo, pois sempre haveria a possibilidade do desgraçado ler minha mente e saber minhas intenções, mas com certeza seria melhor ter balas na agulha quando eu deparasse com ele. Cheguei ao despenhadeiro sem a mesma motivação de anos atrás. Da última vez, saltei no rio lá embaixo sem pensar duas vezes e fui seguido pelo restante do grupo. Desta vez o precipício me parecia bem mais alto. Talvez minha coragem é que tenha diminuído com o passar dos anos. Dormi ali na beira, esperando ter mais disposição para pular pela manhã. Acordei ainda à noite com ruídos e olhei ao meu redor. Vi um vulto enorme se esfregando em uma árvore bem próxima de mim. O animal parecia estar se coçando. De repente, parou e ficou farejando, como se sentisse meu cheiro. Não deu para saber o que era aquilo, talvez um daqueles bichos-preguiça gigante. Só sei que quando se aproximou mais, saltei. Caí de mau jeito no rio lá embaixo, machucando meus testículos. Me arrependi de não tê-lo feito quando dava para enxergar melhor. Nadei até a margem e me acomodei no local exato onde acampei anos atrás com meus amigos. Fiquei olhando para a árvore onde alvejei o morcego albino gigante e não consegui mais dormir, achando que um daqueles monstros alados iria aparecer pra me devorar. Tempos depois cheguei a outro rio e pensei mais uma vez ter me perdido. Olhei toda a extensão do local. Ele era cristalino e não vi nada que parecesse me ameaçar, então resolvi mergulhar nele. O impacto do meu corpo contra a água chamou a atenção de algo na outra margem. Sorte a minha ter ouvido o som do animal mergulhar. Voltei imediatamente para terra firme. Segundos depois, o réptil me procurava afoito. Era uma espécie de crocodilo pré-histórico. Na verdade era bem mais largo e feio, cheio de protuberâncias. Tive vontade de descarregar minha arma nele, mas me contive. Desapareceu num impulso ligeiro. Me toquei que talvez tivesse de atravessar para o outro lado.
- Será que este rio se formou depois que passamos por este local, anos atrás? É possível.
Comecei a construir uma jangada. Só consegui terminá-la no dia seguinte. Olhei mais uma vez em torno da margem do rio, desta vez com mais atenção e só então coloquei-a na água, subindo nela em seguida. Remei vagarosamente, temendo agitar demais a água e despertar a atenção do crocodilo monstruoso ou de outras feras aquáticas. Percebi que o rio de repente se agitou e saquei de minha pistola. A alguns metros da minha jangada emergiram não só um sósia do elasmosauro, mas também um cardume de peixes vorazes, que o mordiam, arrancando dele pedaços enormes. Cada um dos peixes possuía um terço do tamanho do réptil e tinham mandíbulas grandes com fileiras de dentes finos e transparentes. O elasmosauro tentava a todo custo evitar as investidas deles sem sucesso. Num certo momento abocanhou um deles, quase partindo-lhe ao meio. Um dos peixes aproveitou a oportunidade do réptil ter baixado o comprido pescoço e o atacou na face, rasgando seu focinho. O animal passou a língua nas narinas, bebendo de seu próprio sangue e saltou sobre o atacante, esmagando-o. Nos minutos que se seguiram, os peixes assassinos que eram por volta de dez, destrincharam o gigante animal e se serviram dele. Tratei de chegar à outra margem o quanto antes. Certamente eu seria a sobremesa quando a refeição acabasse. Me toquei, naquele momento, descansando na grama que nascia na beirada do rio, que sobreviver seria uma luta diária. Ergui-me alguns minutos depois, tendo a certeza de ter sentido cheiro de carniça, o que acabei por confirmar ao passar pelo cadáver de um daqueles peixes enormes. Ele estava em decomposição, em cima da grama, porém não lhe faltava nenhum pedaço. Fiquei imaginando o que lhe teria acontecido. Com certeza algum animal maior, provavelmente um elasmosauro o havia jogado fora da água. Comecei a subir a colina. Minhas pernas não agüentariam muito tempo. Estava fraco e desnutrido. Sabia que precisava chegar o quanto antes à aldeia dos Traquinas ou morreria. Passei a engatinhar horas depois. Minhas forças se extinguiram e vi tudo girar ao meu redor. Cavei desesperadamente atrás de uma raiz ou tubérculo que pudesse me alimentar, mas desmaiei antes de ter sucesso. Não sei quanto tempo depois eu acordei, mas certamente tive naquele instante o único momento feliz desde que retornei aquela dimensão sinistra. Ao abrir os olhos, reconheci à minha frente o rosto de Elaine. Ela passava uma espécie de algodão molhado em meu rosto suavemente, sorrindo. Havia engordado, mas era ela. Elaine, outrora magérrima e nariguda, ganhara pelo menos um quilo por ano. Estava melhor assim. Ao lado dela havia um casal de crianças com menos de cinco anos e centenas de Traquinas fortemente armados. Havia também uma ou outra espécie de criatura, todos me observando. Percebi então que eu me encontrava dentro de sua aldeia, que agora parecia maior e mais organizada.
- Como cheguei aqui?
- Descanse mais um pouco, Lúcio.
- Me lembro de estar cavando e depois de ter sonhado com Harakit.
- Você foi encontrado por alguns Traquinas que desceram a colina pra pescar no rio e alguns deles imediatamente o reconheceram. É claro que te trouxeram o mais rápido possível ao meu encontro.
- Onde estão os outros? Por favor, não me dê más notícias.
- Entendo... Quer saber se estão todos vivos? Relaxe, Lúcio. Até o presente momento estamos ganhando a batalha.
- Que batalha? Estão lutando contra Harakit? Ele está mesmo vivo, não está?
- Calma... Batalha é força de expressão. Não há guerra alguma, principalmente contra Harakit, que pelo que sei foi morto por você próprio.
- Como soube...? Digo... Se todos que estavam lá comigo naquele dia voltaram pra casa, como você pode saber que matei Harakit?
- Lúcio... Todos sabemos disso, porque o filho dele, Kolosh, fez questão de dizer a todas as suas vítimas que iriam morrer para saciar sua sede de vingança pelo que você fez ao pai dele.
- Filho dele...? Aquela pequena criatura?
- Aquela pequena criatura agora é adulta. Uma fotocópia do pai.
- Mas ele foi tão convincente ao alegar que não compactuava com as intenções de Harakit. Pareceu até mesmo desaprovar os atos do pai.
- Eles possuem essa habilidade, Lúcio. Ele plantou essa convicção na cabeça de vocês. Ele queria sobreviver e usou este ardil em benefício próprio.
- Então foi ele, e não Harakit...
- O que foi que ele fez?
- Cristina... Ele matou Cristina, Elaine.
- Cristina...? Não estou recordada... Quem era Cristina?
- Minha esposa.
- Estou confusa, Lúcio... Você não se casou com Márcia?
- Não... Márcia não sobreviveu a Katáris.
- Mas... Ainda não entendo. Você está querendo me dizer que ele matou sua esposa em nosso planeta natal?
- Isso mesmo.
- Oh, meu Deus...! Como foi que isso aconteceu?
- Ela estava dormindo. Ele a matou da mesma maneira que fez com Sandra.
- Sandra também morreu?
- Sim. Aqui em Katáris, no deserto.
- Entendo. Lúcio, se o que me diz é verdade, então nem em nosso planeta as pessoas estão a salvo dele.
- Infelizmente, acho que tenho de concordar com você quanto a isso, Elaine. Você mencionou as vítimas deste tal Kolosh. Quem são?
- Todas as espécies nativas neste planeta. Há um ano ele tem atacado todos os povoados, massacrando e escravizando.
- Isso explica as casas destruídas no Pico dos Zumbis. Tonga deve ter sido uma de suas vítimas. O que ele faz com os escravos?
- Não temos idéia. Quem são estas duas lindas crianças?
- Meus filhos.
- Onde estão Álvaro, Wesley e Ana Cláudia?
- Visitando Moreno e família.
- Moreno? Vocês tem contato com Moreno e Josilene?
- E com Jade e Lorena, as filhas deles.
- Como chegaram até eles?
- Isso foi há muito tempo, quando saímos em caravana atrás de vocês. Encontramos eles no oásis.
- Como sobreviveram ao deserto?
- Levando muita água, muita comida e muitos Traquinas.
- E eles moram lá até hoje?
- Não. Vivem em um lugar lindo batizado por nós de Savana Paradiso. Nossa intenção era trazê-los pra cá, mas em nossas andanças acabamos conhecendo a savana e eles se apaixonaram.
- Mas não é perigoso pra eles? Aqui vocês tem os Traquinas, que não pude deixar de perceber, foram muito bem recrutados e treinados.
- Os Traquinas são fieis até a morte. São criaturas adoráveis. Álvaro e Wesley os ensinaram a usar armas, criar armadilhas, pescar, lutar e se proteger de qualquer ameaça. Somos todos amigos, mas eles nos obedecem como se fôssemos seus mestres. Quanto a ser perigoso para Moreno e sua família, você está enganado. Os Bóraxes, criaturas de mais de dois metros de altura, nativos de Savana Paradiso, os protegem de maneira tão fiel quanto os pequeninos Traquinas fazem conosco, com uma vantagem, é claro... São seres quase tão fortes quanto as Formigas Guerreiras de Kolosh.
- Mas eles são páreo para elas?
- As formigas gigantes de Kolosh perdem para os Bóraxes. Elas são sim um pouco mas fortes, mas tremendamente mais burras. Infelizmente, aqueles insetos malditos são muito mais numerosos que os feiosos amigos de Moreno.
- Feiosos?
- Sim... O que aqueles grandalhões tem de gentis e submissos a nós humanos, tem de horrorosos. São esverdeados, olhos enormes, presas para fora da boca e fedem pra valer. Acredite se quiser, devemos nossa aliança com eles aos nossos filhos. Eles amam o contato com crianças, e vice-versa. Lúcio... Deixe-me fazer uma pergunta a qual morro de medo da resposta. Você tem notícias de minha família?
- Elaine, assim que retornamos pra Terra, estive com todas as famílias do pessoal da turma 1.102, inclusive em programas de rádio e televisão e me lembro de ter conhecido seu pai e sua mãe, que estavam inconformados com sua decisão em permanecer neste povoado com o Álvaro, mas me desculpe por não ter notícias recentes deles.
- Tudo bem... Eu já imaginava. Mamãe deve estar morta por dentro. Queria tanto revê-la.
- Se isso algum dia acontecer, não leve Álvaro consigo. Eles o culpam por você não ter retornado. Acham que ele a influenciou.
- Coitado do Álvaro... É um pai e marido exemplar. Eles chegaram a conhece-lo. Pena que não conheceram os netos. Bom... Meu irmão com certeza deu netos a eles. Venha... Vou preparar um banho pra você.
- Se não se importa, gostaria de comer algo primeiro.
- Claro... Me desculpe. Mal posso esperar até que Álvaro chegue com Wesley e companhia. Eles não vão acreditar quando virem você.
- Quando eles retornam?
- Já era pra terem chegado. Estou preocupada. Mas eles são mesmo muito imprevisíveis. As vezes se antecipam, as vezes se atrasam semanas, mas sempre voltam. Sabe como é, não sabe? Aqui em Katáris não há amantes.
- Há, há, há... Obrigado por me fazer rir. Eu estava mesmo precisando. Não fique preocupada com eles, pelo que percebi, com a tropa de choque que eles possuem, a única coisa que pode ameaçá-los por aqui é Kolosh e seu exército insetívoro.
- Isso é o que você pensa, meu amigo. Nestes dez anos em que vivo neste planeta sinistro, conheci formas de vida muito macabras pro meu gosto. Ainda hoje, de vez em quando nos surpreendemos mata adentro.
Após uma maravilhosa refeição ao melhor estilo de Katáris, tomei um não menos maravilhoso banho numa banheira improvisada dentro da casa de Elaine. Era uma cabana grande e bem acabada. Chegava a ser bonita, com móveis e tudo mais. Tudo parecia muito arrumadinho. Sorri ao ver os vários tapetes de couro animal, espalhados pelo chão. Os filhos de Álvaro e Elaine não pararam de me olhar um só segundo. Pudera... Não estavam acostumados a ver semelhantes. Sorri para eles e eles retribuíram. Quando saí da cabana, Elaine me jogou um cesto repleto de frutas nos braços. Não perdi tempo. Havia dias que não me alimentava direito. Quando fui por a terceira na boca, a reconheci de imediato. Elaine riu.
- Pensei que não fosse se lembrar.
- Do que está falando? O único lugar onde vi fruta rum neste planeta foi o oásis.
- Eu sei... Nós também. Foi Josilene quem nos apresentou a ela e nos contou as histórias de alucinações e embriagues de vocês. Trouxemos sementes e desde então estamos cultivando. Não passamos um dia sequer sem comer delas. Pena que o efeito já não é mais tão intenso.
- Elaine, quando eu estava subindo o Pico dos Zumbis e chovia muito, vi uma espécie de verme branco enorme sair de dentro do solo. Vocês conhecem aquele animal?
- Sim... É um Drak. Eles vivem dentro da terra como minhocas, mas saem em dias de chuva forte pra não morrer afogados. Já pegamos uns três deles. São deliciosos. As vezes os rapazes saem pra caçá-los quando pressentem tempestade. Um só deles dá pra alimentar dezenas. Pena que são ágeis. Quando alvejados, se debatem, pulam e se sacodem, terminando por fugir. Pra pegar um deles é necessário que todos atirem rápido e de uma só vez. Por este motivo conseguimos pegar pouquíssimos até hoje.
- Interessante. Em falar em animal, vocês tiveram notícias do “nosso” Animal depois do incidente no deserto?
- Não... Nunca mais o vimos. Deve estar morto, com certeza. Moreno nos contou o que ele fez. Pra dizer a verdade, sempre imaginei que ele ainda mataria alguém. Nunca gostei daquele cara. Lúcio, vamos todos pescar no rio Mandrákora amanhã ao levantar. Prepare-se pra aventura.
- Rio Mandrákora?
- Sim... Você deve ter passado por ele.
- Aquele é o rio Mandrákora? Sim, tive o desprazer de conhece-lo.
Assim foi. Acordamos antes mesmo do sol nascer, como quase sempre ocorria naquele lugar e descemos a colina, escoltados por um batalhão de Traquinas. Fiquei admirado com a maneira que pescavam. Uma espécie de cipó fortíssimo foi enroscado em uma árvore e em sua ponta eles amarraram um tipo de gancho (tratava-se, segundo Elaine, do ferrão de uma espécie nativa) que atuaria como anzol. Um grande pedaço de carne foi colocado no anzol e obviamente jogado na água. Um peixe hediondo da espécie que vi atacar o elasmosauro fisgou a isca e se debateu com tamanha força, que ficamos ensopados com a água do rio. Aquele animal saltou tanto para se livrar que acabou por cair próximo de nós, em terra. Os Traquinas, que pareciam já esperar por isso, trataram de elimina-lo com estocadas de suas lanças. Mal a isca foi jogada novamente dentro d’água, outro daqueles enormes peixes a fisgou e novamente acabou por parar no solo, onde foi abatido pelas pequenas criaturas com cara de biscoito. Foi incrível. Nunca participei de uma pescaria tão bem sucedida. Permanecemos ali somente por uma hora e voltamos para a aldeia com cinco peixões.
- Elaine... Apesar desses peixes serem crescidinhos, com certeza somente cinco deles não dão para alimentar a população da aldeia. Não achava melhor ficar mais algumas horas pescando?
- Entendo o que você quer dizer, mas se pegarmos mais deles, estragarão. A maior parte dos Traquinas não suporta comer peixe. Este foi um hábito que conseguimos passar para poucos deles.
- Certo... É, um freezer cairia bem aqui, não?
- Com certeza. Por que não trouxe um consigo?
- Pois é... Nem me passou. Vocês só precisariam caçar alguns dias por mês e estocar o alimento, como fazem as formigas.
Antes mesmo de adentrar a aldeia, avistamos árvores apinhadas de Traquinas. Eles estavam nos esperando e por isso observavam nossa aproximação. Quando já estávamos bem próximos deles, alguém familiar desceu de uma das árvores, me segurou, e após me olhar por alguns segundos, me abraçou forte. Senti muita sinceridade em sua atitude. Era Moreno, visivelmente emocionado com a minha presença.
- Lúcio... Eu não acredito. Não acreditei quando os pequeninos me contaram. Como vai você, grande amigo?
- Gostaria de ir melhor. Pelo que tudo indica, o filho de Harakit matou minha esposa.
- Márcia está morta?
- Sim, Márcia está morta a muitos anos, mas eu não me referia a ela. Minha mulher se chamava Cristina. Já contei esta história a Elaine, e se não se importar, gostaria que ela passasse os detalhes pra você. Já há alguns meses, mas pra mim ainda parece recente.
- Como quiser. Elaine... Como vai você?
- Olá, Moreno. Onde está meu marido?
- Em casa te aguardando. Josi e as crianças vieram com você?
- Infelizmente não. Vim só.
- Vamos, então. Temos peixe fresco pra assar.
Estranhamente senti uma pontada no coração quando Elaine perguntou a Moreno se Josilene havia vindo com ele. Digo estranhamente porque não esperava me sentir assim, principalmente após tantos anos. Me perdi em pensamentos, tentando encontrar uma explicação para aquele estranho sentimento. Meu coração havia disparado com a possibilidade de rever Josilene? Talvez fosse somente curiosidade. Minha meditação foi interrompida pelo abraço de Álvaro, que também engordara. Ele era branco, de cabelos lisos bem ralinhos e usava agora um grande cavanhaque.
- Então é mesmo você... Por Deus, como fez pra conseguir voltar a este lugar?
- Na verdade eu procurava encontrar uma pista ou algo que me convencesse de que Harakit havia matado minha esposa, e acho que acabei caindo em uma armadilha do filho dele.
- Mas como foi isso, Lúcio?
- Eu retornei ao Colégio Inspiração, e assim que adentrei nossa antiga sala de aula, aconteceu tudo de novo, nos exatos mínimos detalhes, tirando a gargalhada.
- Puxa vida, cara... Você não deve ter tido bons dias... Por que não nos ligou? Teríamos ido te buscar no aeroporto.
- Há, há, há... Por que será que eu estou achando que vocês desenvolveram um interessante senso de humor nesse lugar? Em falar em senso de humor, ainda não vi o Wesley.
- E nem vai ver hoje. Moreno não te contou? Ele, Ana Cláudia e Wesley Júnior ficaram fazendo companhia a Josilene em Savana Paradiso. Só vão vir daqui a alguns dias.
Álvaro sorriu e então se virou para Elaine e a beijou na boca, abraçando-a em seguida.
- Tomou conta de minha esposa pra mim?
- Acha que ela é que tomou conta de mim.
Todos riram e então entramos na cabana. Passamos todo o restante do dia conversando sobre tudo o que ocorrera nos anos que se passaram, depois Elaine forrou o chão da sala de estar para que eu e Moreno dormíssemos. Passei a maior parte da noite acordado, enquanto Moreno dormia pesadamente. Não que eu não estivesse com sono. Estava exausto, mas, os gemidos de Álvaro e Elaine me mantinham desperto. O quarto deles não possuía porta, apenas uma cortina separava os dois cômodos, e eles estavam matando a saudade. No dia seguinte, fui acordado por Moreno e tive a impressão de que acabara de pegar no sono. Não reclamei. Levantei de um pulo só e fui com ele até a cozinha tomar o desjejum. Ele me colocou uma caneca feita de osso de algum animal nas mãos. Olhei pra dentro dela.
- Isso é leite?
- Claro que é.
- De quê?
- De vaca é que não é.
- Deixa pra lá. Prefiro não saber. Corro o risco de não querer beber quando você disser.
Eu continuava vestindo a bermuda que fizera de minha calça, enquanto os outros usavam saiotes e Elaine além do saiote, um colãn. Tudo confeccionado com pele ou couro animal. Havia também os sapatos de couro amarrados com cipó, tudo bem primitivo mesmo. Todos estávamos muito bronzeados, mas somente eu tinha barba e cabelos compridos. Álvaro me trouxe uma faca amolada, com a qual tratei de aparar a barba, deixando os cabelos como estavam.
- Estou muito orgulhoso de todos vocês. Gostaria que o Bicudo pudesse vê-los agora. Se adaptaram tão bem a este lugar. Parece que nasceram e se criaram aqui. É fantástico. Nem parecem sentir falta de nosso planeta natal.
- Nós nos acostumamos a viver em Katáris, Lúcio. Aprendemos a ser felizes aqui.
- Como pode isso? Eu estou me sentindo um peixe fora d’água.
- Por que seu retorno é recente. Não conheço ninguém que foi mais adaptado a este lugar que você. Diz que sente orgulho de nós? Nós nos orgulhamos de você. Quando recordamos a maneira como nos conduziu com braço de ferro pelas florestas de Katáris... Meu irmão, você é lenda neste lugar. Sua memória talvez esteja deteriorada, mas a nossa não. Você conseguiu o impossível, Lúcio. Quando estivemos com os Máleks e soubemos por eles que você conseguiu conduzir o restante do grupo pra casa, uma pontada de arrependimento espetou meu coração por alguns segundos, mas só por alguns segundos. Você é adorado pelos três reis felinos até hoje.
- Até hoje... Vocês tem estado com eles?
- Sempre que possível. Eles acham que deveríamos nos unir pra acabar com Kolosh e têm sempre um “bom” plano arquitetado para nos convencer. Dizem que temos potencial para tanto, mas deixam sempre a parte mais arriscada pra nós. Acho que eles são meio manipuladores.
- Engraçado... Não tive essa impressão a respeito deles. Talvez tenham deixado a parte mais difícil pra vocês por não serem criaturas voltadas pra ação. São pacatos demais. Moreno... Você e Álvaro me conseguiriam uma escolta de Traquinas e Bóraxes até o povoado dos Homens Leopardo?
- Se é o que deseja... Sabe, não sei porque, mas de repente estou enxergando novamente aquele brilho nos seus olhos e não acho que seja impressão minha. Parece que vamos ter um pouco adrenalina ao seu estilo depois de tanto tempo.
- Com certeza vai haver adrenalina. Com certeza vai haver vingança ao estilo Lúcio, mas duvido que vocês estejam lá pra conferir. Jamais tiraria vocês de suas famílias e do conforto de suas casinhas pra partir pra uma aventura suicida. Vocês estão felizes aqui e tudo o que desejo é manter isso.
- É muito nobre de sua parte, mas tenho me sentido entediado. Sabe quem controla os Bóraxes? Eu! Sabe quem controla os Traquinas? Álvaro! Então, meu nobre amigo, se pretende ter a ajuda deles, conte com a nossa presença. Eu não deixaria você sozinho nessa por nada desse mundo. E não me venha com essa de aventura suicida não porque nós temos boa memória. Lembramos muito bem de sua convicção e certeza quando dizia que conseguiria encontrar Harakit e o obrigaria a nos mandar pra casa.
- Ah, sim... Pena que você não sabe que em meu íntimo, eu tinha quase certeza de os estava arrastando pra morte certa.
- Tudo bem... Então você é um cara bem sortudo e é de amigos assim que nós precisamos.
Eles haviam se tornado os melhores amigos que alguém poderia ter. Se tornaram seres humanos fantásticos. A centelha da aventura se reacendera em meu espírito, e eu estava pronto pra tudo uma vez mais. Meus olhos faiscaram ao recordar o que Kolosh havia me causado. Aquele demônio desgraçado ia sentir o gosto do próprio sangue nem que fosse a última coisa que eu faria. Nos dias que se seguiram, Moreno passou instruções aos Bóraxes que com ele estavam e Álvaro fez a mesma coisa com seus Traquinas. Eles os explicavam que sairíamos em uma jornada até a desenvolvida aldeia dos Homens Leopardo e que lá trocaríamos idéias com eles a respeito de conter seu híbrido Kolosh e o exército de Formigas Guerreiras. Passaram para eles, que, caso obtivéssemos êxito, todos seríamos heróis e que os séculos não apagariam isso da memória daquele planeta. Quando já estávamos prontos para partir, Moreno se aproximou de mim uma vez mais.
- Agora é só aguardar a chegada de Wesley. Tenho certeza de que não ficará de fora. Preciso saber uma coisa de você, Lúcio. Quais são suas intenções, exatamente? Você pretende matar Kolosh ou forçá-lo a manda-lo de volta a Terra?
- Minha prioridade é matar o desgraçado. Se vou ficar preso aqui pro resto de minha vida depois que eu fizer isso, não importa, desde que meu objetivo seja alcançado. Soube que ele aprisiona alguns nativos. Me interessa também libertar essas pobres criaturas. Há muitos seres civilizados neste planeta que não merecem estar sob o crivo dele. Quando eu me lembro de criaturas adoráveis como os Nacacos e o povo Zumbi... Não posso suportar a idéia de que alguns ou vários deles estejam aprisionados ou servindo a vontade daquele ser desprezível.
- Eu entendo, e concordo com você plenamente. Porém, gostaria de te pedir algo. Se houver uma vaga possibilidade de você conseguir convencê-lo a te mandar pra casa, gostaria que levasse nossos filhos com você. Você faria isso por mim, Lúcio?
- Mas é claro que sim. Mas por que somente seus filhos? Por que não está se incluindo?
- Eu não poderia ir... Aqui é meu lar. Não gostaria de viver sem minhas terras e minha casa em Savana Paradiso. Não conseguiria viver longe dos adoráveis e fieis Bóraxes. Não, eu não conseguiria, com certeza. Mas as crianças... Elas merecem conhecer o planeta Terra e todo o conforto... Toda aquela tecnologia... Eu não havia pensado nisso até você retornar. Eu nem sabia que era possível algum de vocês voltar aqui... O que quero dizer é que sua presença aqui me trouxe uma enorme esperança de que meus filhos podem vir a ter uma vida mais significativa em meu planeta natal. Conhecer seus avós, seus primos, uma infinidade de pessoas diferentes. Estudar e trabalhar... Eu devo estar sendo chato, não? Será que estou tendo devaneios?
- O que é isso? Você não está sendo chato. Desde quando é ser chato desejar o melhor pros seus filhos? Conte comigo, Moreno. Se houver alguma chance de eu conseguir o que me pediu, vou lutar pra faze-lo acontecer.
No dia seguinte, Wesley chegou com Ana Cláudia e Júnior, escoltados por Bóraxes medonhos e mais Traquinas. Eles se aproximavam da cabana, e ao me ver de pé, próximo da entrada dela, pararam, me fitando. Pareciam não acreditar no que seus olhos os mostravam. Estavam sérios e perplexos, então Álvaro quebrou o gelo, enquanto Moreno ria.
- É ele mesmo, Wesley. Lúcio voltou pra matar a saudade.
- Você é louco? O que veio fazer aqui?
- Não vai me dar um abraço?
Wesley se aproximou e me abraçou com toda sua força, sendo imitado por Ana Cláudia, que chorava, e até por Júnior, que não tinha a menor noção de quem eu era. Ana, que chegava a soluçar de emoção, se apressou em perguntar pela família e por todo o restante do grupo. Contei a ela tudo o que sabia e depois me voltei para Wesley, esclarecendo a ele o que pretendíamos. Tal qual Moreno dissera, nosso recém chegado amigo topou nos acompanhar em nossa investida contra Kolosh. Demos a ele dois dias para descansar antes de seguirmos viajem e assim foi feito. Saímos da colina em direção a Savana Paradiso para pegar Josilene e suas filhas acompanhados de aproximadamente cento e cinqüenta Traquinas. Os pequeninhos estavam fortemente armados e as crianças ficavam bem ao centro da caravana, protegidas. Vez ou outra, topamos com animais selvagens, que rapidamente eram abatidos principalmente pelos fieis Bóraxes, apesar de serem minoria. Numa certa noite, tive um terrível pesadelo com Kolosh. Ele me dizia que eu não significava ameaça alguma pra ele, e que eu estaria morto quando e onde ele quisesse. Soando muito, acordei do pesadelo, e ao abrir os olhos, não acreditei no que via ali, de pé, na minha frente. Era ele. Kolosh!!! Esfreguei os olhos e ele não desapareceu. Não consegui dizer nada. Estava desnorteado e sem reação. Ele me pegara de surpresa. Por meio de telepatia, confirmou o que me disse em meus sonhos.
- Você não significa nada, Lúcio. Vou brincar com você, e quando tiver me cansado, darei pedacinhos teus de alimento aos insetos. Não se vanglorie por ter matado meu pai. Aquilo foi somente sorte. Muita Sorte!!! Isso não se repetirá.
- Não é bem assim, Kolosh. Seu pai morreu, assim como acontecerá contigo, por não me considerar uma ameaça, assim como você não considera. O homem que o matou se tornou uma lenda viva no mundo que você tanto faz questão de cifrar como sendo SEU. Sabe o que eu acho? Que você não tem tanto controle da situação como diz ter. Se tivesse, já teria dominado o planeta inteiro, principalmente aqueles que se tornaram seus piores oponentes, ou seja, sua própria gente.
- Nunca mais se refira aos Máleks como minha gente. Não sou de sua raça. Sou geneticamente mais avançado. Antes de te matar vou te fazer entender isso.
- Não... Nunca mais vai fazer lavagem cerebral ou coisa parecida em mim de novo, aberração... Ouviu o que eu disse? Aberração... É somente isso o que você é, e não alguém em evolução.
As feições dele se alteraram nitidamente com meu insulto. Kolosh era tão orgulhoso e seguro de si quanto o pai. Seu ego era gigantesco e minhas palavras o feriram. Me arrependi demais de ter deixado minha pistola longe do meu alcance quando fui dormir. Não senti necessidade de tê-la por perto uma vez que tínhamos a presença de tal contingente. Achei que ele me mataria naquele momento, mas se limitou a deixar bem claro que da próxima vez que estivéssemos diante um do outro, eu deixaria de respirar. Quando percebi que ele começava a levitar o próprio corpo na intenção de desaparecer no véu da noite, corri o mais que pude na direção de uma lança e a atirei ao encontro dele, que com um simples gesto a explodiu em milhões de fragmentos. É claro que o som provocado acordou todo o acampamento. Moreno, arfante, gritou por mim.
- Lúcio... O que aconteceu? Fale, cara... O que foi isso? O que foi que explodiu?
- Você perdeu o melhor da festa, amigo... Kolosh esteve aqui.
- Não é possível. Como pode? Quem mais o viu?
- Eu.
Era Wesley quem tomava a palavra, surpreendendo até mesmo a mim.
- Ouvi a voz de Lúcio e abri os olhos achando que sonhava com Kolosh. Não era sonho. Ele estava bem ao lado dele. Desculpe, Lúcio... Não tive coragem de tomar uma iniciativa.
- Iniciativa? Sabe o que você poderia ter feito? Você podia tê-lo pego de surpresa. Podia tê-lo matado e acabado com tudo agora mesmo.
Neste momento, Moreno me trouxe de volta a realidade.
- Calma, Lúcio... Você deve ter esquecido que ele facilmente teria lido a mente de Wesley e uma desgraça com certeza teria ocorrido.
- Tem razão... Desculpe, Wesley. Estou alterado. Estou com ódio de mim mesmo por ter estado tão perto do desgraçado e não ter arrancado o coração dele. Por que ele teria vindo aqui? Seria típico dele e do pai, eu acho. Me deixar essa sensação de impotência. Como ele encara isso? Como um jogo? Não adianta, desgraçado... Eu não vou desistir. Sei que vou achar um meio de acabar com você. Vou te mandar de encontro ao seu pai. Leu isso em minha mente? Vou te mandar direto pro papai, monstro desgraçado.
Duas semanas depois chegamos ao lar de Moreno e fomos encontrar Josilene cuidando de sua plantação. Ela estava de top less. Não esperava semelhantes naquele momento. Wesley jogou-lhe um manto, com o qual ela se cobriu. Quando finalmente percebeu que eu estava ali em meio a tantos outros, arregalou os olhos.
- Este é quem eu penso que seja?
- Sim, meu amor... É o Lúcio. Ele está conosco novamente, você acredita?
Ela parecia totalmente desconcertada. Não me abraçou como todos os outros fizeram, mas eu entendi sua situação. Ela precisava manter a postura, principalmente sabendo o que eu havia sentido por ela anos atrás. Aquela pontada no coração não ocorreu. Não sei se foi porque eu estava exausto, mas não ocorreu. Ela parecia ter ficado meio zonza ao me ver e também transparecia cansaço. Continuava bonita, apesar de alguns traços impostos pelos anos que se passaram.
- Os Máleks nos disseram que você havia voltado pra Terra.
- E voltei. Passei por aqui só pra ver vocês e já estou retornando. Quer encomendar algo? Uma geladeira, talvez? Eu trouxe um fogão pro Wesley e uma televisão pro Álvaro.
- Televisão...?
Todos começaram a gargalhar e Josilene fechou a cara. Parece não ter gostado muito. Moreno nos convidou para entrar em sua casa e foi servindo uma espécie de bebida alcoólica de ele chamava de xaca. Fiquei de porre, rindo e brincando com os Bóraxes. Josilene nos preparou uma vasta refeição com ajuda das fêmeas da aldeia. Havia dias que eu não comia tanto. Ouvi Josilene discutir com Moreno por causa do que nós planejávamos fazer. Ela achava desnecessário e perigoso. Estava certa quanto ao perigo, mas errada quanto a ser desnecessário. Quanto tempo mais Kolosh os deixaria em paz? Quanto tempo faltava pra ele ter o controle absoluto sobre tudo e todos. A hora era agora e eu não tinha dúvidas quanto a isso. Álvaro interrompeu a discussão (para quebrar o clima) com delicadeza, nos chamando a todos para uma disputa de arco-e-flecha. Peguei meu arco com orgulho, recordando de minha habilidade de anos atrás e levando em consideração que havia treinado desde que retornara a Katáris. Que lástima. Fiquei envergonhado. Moreno ficou em primeiro lugar, Josilene em segundo, Álvaro em terceiro, Wesley em quarto, Elaine em quinto, Ana Cláudia em sexto e eu em último lugar.
- Não fique decepcionado, Lúcio... Isso acontece. Você parou de praticar anos a fio, enquanto nós, não. E de mais a mais, pelo que sei, você tem algo aí na cintura que vale bem mais do que qualquer flecha.
- É verdade, e da próxima que vez que eu estiver com aquele chifrudo, ela vai estar à mão.
Começamos a nos distanciar da aldeia, contra a vontade de Josilene, desta vez tendo além dos cento e cinqüenta Traquinas, usufruindo da presença e segurança de aproximadamente oitenta Bóraxes. Eu estava muito preocupado em levar as mulheres e crianças na caravana, mas Álvaro achou mais seguro, temendo um ataque direto à savana. Passamos por um povoado vizinho e Moreno se apressou em me comunicar que apesar daquelas criaturas parecerem selvagens, eram pacíficas e de boa vizinhança. Ao avista-los, entendi porque ele me alertou. Eles viviam em casas improvisadas feitas de um material que lembrava argila. Eram espécies de répteis quadrúpedes que abriam membranas em volta do pescoço ao nos avistarem. Acho que aquilo eram tipos de radares. Alguns deles ficavam abrindo e fechando aquelas membranas sem parar. Quilômetros além da Nação Basilísco (Moreno os chamava assim), começou a chover e presenciamos uma luta colossal. Um javali gigante contra um Drak. Moreno apostou comigo que o javali levava a melhor e eu acabei perdendo.
- Não valeu. Você conhece melhor esses animais.
Não deixamos o suíno acabar a refeição. Abatemos ele e nos servimos dos dois. Horas depois conheci um animal que até então nunca havia visto em Katáris. Eles o chamavam de mafira. Era uma espécie de antílope bem grande, com manchas brancas no couro castanho. Moreno me alertou.
- Não se iluda com a aparência de veado indefeso. Esses bichos mordem pra valer. Costumo vir aqui caçá-los com os Bóraxes. Minhas filhas adoram o sabor da carne deles.
Mal Moreno terminou a frase, um grito estrondoso horrível ecoou pelas copas das árvores. As mafiras entraram em pânico, como acontece com os antílopes ao avistar os leões.
- Pra cima das árvores, rápido.
Era Álvaro quem gritava. Eu estava perdido. Obedeci imediatamente. Não tinha idéia do que era aquilo, mas causou pavor não só às gazelas. Até os Bóraxes trataram de escalar rapidamente. Percebi que todos procuraram se manter o mais alto possível e fiz isso também.
- Moreno... O que é isso? O que está acontecendo?
- É o grito do grande lagarto. Tomara que não esteja vindo pra cá, mas eu acho que está. Deve ter sentido o cheiro das mafiras. São seu principal alimento.
- O que é esta criatura?
- Uma espécie de dinossauro. Ele é o tiranossauro rex de Katáris, apesar de não se parecer muito com um. O tiranossauro tem aquelas mãozinhas ridículas, o que não é o caso deste, e de uma maneira geral ele não se assemelha muito com ele, mas é um réptil enorme e voraz. Os Bóraxes o odeiam. Também, pudera... Muitos dos de sua raça já foram devorados por eles. Chamamos este lugar de Serra Pré-Histórica por ser seu habitat natural.
Sentimos uma certa vibração nos galhos das árvores e voltei a olhar pra moreno, que parecia preocupado. Todos estavam em silêncio absoluto, então Álvaro fez sinal com o dedo para que eu fizesse o mesmo. Vi quando a imensa criatura, ainda maior que um elasmossauro, passou por baixo da árvore em que eu estava, parando vez ou outra, elevando seu enorme focinho que fazia um som esquisito ao farejar. Moreno tinha razão quando afirmou que aquela criatura não tinha os braços ridículos de um T-rex. E o pior é que ele sabia usa-los muito bem. Assim que se certificou da presença de alguns Bóraxes em cima de uma árvore, passou a balança-la com violência. Nossos pobres amigos gritavam de desespero, mas agüentaram bem, agarrados aos galhos. Como após minutos de investida a árvore não partiu, o animal se cansou e foi embora. Continuamos ali parados por pelo menos vinte minutos, para nos certificarmos de que aquilo realmente havia partido, e então Moreno quebrou o gelo.
- Puxa vida, é sempre um sufoco topar com um desses por aí. Ainda bem que ele geralmente avisa quando está chegando. Tenho que ensinar a eles técnicas de caça.
- Como consegue brincar depois de uma situação dessas? As crianças mal conseguem respirar.
- Eles tem que aprender a viver na selva. Isso é experiência adquirida. É bom pra eles.
Começamos a descer a Serra e o território em que entramos começou a parecer familiar. Olhei pra Moreno e ele parecia esperar que eu dissesse algo, então o fiz.
- Esta não é a Floresta Marcel, é?
- Fiquei imaginando se a reconheceria.
- Fantástico. Voltei ao ponto de partida. Mas pra onde estamos indo, afinal de contas?
- Desculpe, Lúcio... prometi as crianças traze-las um dia a este local para que elas conhecessem onde tudo começou. Não vamos demorar.
Quando chegamos ao ponto exato de nossa queda, acampamos. Havia um esqueleto humano semi-enterrado próximo a uma rocha. Ficamos nos perguntado de quem seria.
- Acho que é o Marcelo. Parecem os dentes dele.
- Não, Lúcio... Veja os pedaços de pano vermelho. Quem estava de blusa vermelha naquele dia era o Luis Cláudio.
- Que memória, Ana Cláudia. É... As mulheres sempre reparam muito nas roupas. Deve ser ele mesmo. Coitado. Por que não enterramos as vítimas da queda naquela ocasião?
- Por que ainda não tínhamos um líder para nos mandar faze-lo e porque estávamos com pressa.
- Bom, vamos fazer isso agora, então.
Assim foi feito, pelo menos com os restos mortais de Luis Cláudio, que foi o único que encontramos. Após o funeral, assamos em uma fogueira alguns animais. Eu me servi de uma enorme coxa enquanto todos os outros também almoçavam, depois pegamos a estrada. Dias e mais dias de caminhada e chegamos a um local que eles chamavam de Ponta do despenhadeiro. Tratava-se de um precipício enorme. Cheguei da ponta e comecei a ter vertigens por causa da altura. Wesley me segurou pelo braço, me tirando de lá e retomamos o caminho. Chegamos a uma floresta que precedia um enorme descampado e antes mesmo de termos acesso a ele, sentimos um forte e insuportável odor de fezes. Subi no topo de árvores altas, acompanhado de Moreno, Álvaro e vários Traquinas para saber o que havia naquele descampado. Ficamos surpresos. Várias espécies nativas daquele planeta se amontoavam por cima uns dos outros dentro de uma cúpula de vidro de quilômetros de extensão. Eram milhares e se debatiam, pisando sobre seus próprios excrementos. Uma forte angústia se abateu sobre mim. Entre eles haviam Zumbis, Nacacos e até Traquinas. A redoma era protegida por formigões. Descemos e nos entre olhamos. Não era necessário dizer nada. Cercamos todo o local e extinguimos nossas flechas. As poucas Formigas Guerreiras que conseguiram passar por nosso cerco foram abatidas imediatamente pelos Bóraxes. Inacreditavelmente, sofremos apenas duas baixas. Eram desafortunados Traquinas. Exterminamos por volta de cem insetos, que ficaram caídos ao longo do terreno. Nos aproximamos da cúpula. As criaturas aprisionadas estavam em êxtase. O cheiro era insuportável àquela distância. Precisamos derrubar uma árvore e usa-la como aríete para quebrar aquela imensa cúpula de vidro, mas conseguimos libertar a todos. A maioria correu floresta adentro, mas alguns se uniram a nós. Havia todo tipo e espécie de criatura estranha. Uns tentavam se comunicar a todo custo. Um deles, um ancião escamoso que parecia um tipo de peixe fora d’água me convenceu a leva-lo até sua tribo. Pelo que parecia, não era muito distante dali, e começamos a seguir pra lá. Um dos Bóraxes o carregou nos braços, uma vez que aquela criatura parecia ter a saúde abalada, além de possuir idade avançada. Tivemos mais uma surpresa ao adentrar a Tribo dos Homens-Peixe. Descobrimos que o ser que ajudáramos era na realidade o seu soberano. O local era repleto de geisers e aquelas criaturas anfíbias mantinham seus corpos escamosos dentro deles, deixando apenas a face para fora. Não se assemelhavam em nada aos Canibais Aquáticos, outra raça anfíbia que conhecemos anos atrás em Katáris. Os Homens-Peixe trataram de cuidar de seu líder. Não resistimos aquelas poças de água quente e nos banhamos nelas, pois estávamos sujos e cansados. Foi uma bela terapia. Após isso, partimos. Nossa expedição crescera em número. Devíamos ser por volta de quinhentos, agora. Isso era bom. Precisaríamos de muitos para encarar o formigueiro de Kolosh. Quando meu retorno a Katáris completou aproximadamente um ano, chegamos ao grande deserto sem ter esbarrado com problemas que merecessem ser mencionados. A caravana não encarava um desafio atravessa-lo. Pena que eu não compartilhasse de tal segurança. Ainda estava traumatizado com aquele lugar. Sem dúvida, tirando Harakit, sobreviver ao deserto foi meu maior desafio. Dias após, avistamos o oásis que outrora serviu de lar pra Josilene e Moreno. Tivemos duas tempestades de areia de grandes proporções antes de chegar até lá, mas os Bóraxes sabiam lidar muito bem com ela. Apesar de não ter sofrido tanto quanto da última vez, ainda assim foi um alívio avistar aquele lugar. Passei dias a fio dentro daquela água cristalina, e com pesar, aticei todo o contingente para prosseguirmos viagem. Chegamos ao Rochedo dos Lagartos para tirar uma triste conclusão. Em torno do local, havia centenas de corpos em decomposição. Alguns de formigões, mas a grande maioria, dos nossos répteis amigos. Sentei-me em uma pedra e chorei. Meus amigos vieram me confortar. Estavam todos chocados e tristes, mas não tanto quanto eu. Afinal de contas, nenhum deles conheceu o Povo Lagarto como eu. Adentrei a construção rústica somente para confirmar o que estava na cara. Não havia mais ninguém. O que teria sido do rei lagarto, meu grande amigo? Com certeza morreu com seu povo. Fiquei por horas recordando dos momentos que passei com Calango e Camaleão, e tornei a derramar lágrimas. Tantas mortes para atender ao capricho de somente um animal miserável... O tempo dele haveria de chegar. Lembrei-me que faltava pouco para chegarmos ao vilarejo dos Homens Leopardo e senti um calafrio ao imaginar que o mesmo poderia ter-lhes acontecido. A pressa se abateu sobre mim, tamanha que era a minha expectativa. Estava tenso e furioso. A caminhada foi tranqüila e dias após, mesmo antes de avistarmos algum dos felinos, vozes se fizeram ouvir em minha cabeça. Depois de tantos anos, voltei a me surpreender com aquela incrível habilidade.
- Como vai, amigo, Lúcio...? Muita coragem de sua parte retornar a este planeta, levando-se em consideração o que fez ao pai de Kolosh, o maldito.
- O ódio inibe o medo, amigo Manrat...
- Manrat não está mais entre nós, companheiro. Quem fale contigo é Catrash.
- Perdão, nobre amigo... Não reconheci seus padrões. O que aconteceu a Manrat?
- Manrat e Lírub pereceram na última invasão do híbrido. Restou a mim carregar o fardo de liderar meu povo na incessante tarefa de sobreviver.
Neste exato momento atravessei o portão principal daquela cidadela e somente aí tive visão da devastação que se pairava sobre ela. Casas totalmente destruídas, outras sendo reconstruídas. Catrash se aproximou de mim com seu semblante pesado.
- O que aquela aberração fez a vocês?
- Quando seu pai morreu, Kolosh veio até nós, com sua mãe e outras concubinas de seu pai, alegando querer viver conosco, mas não queria abrir mão da companhia de alguns de seus insetos guerreiros. Desconfiamos que suas intenções não eram tão puras, e ao tentar invadir sua mente, ele não permitiu, bloqueando seus pensamentos. É claro que o mandamos partir, assim como fizéramos com seu pai, tempos atrás. Ele retornou alguns anos depois, já adulto, com suas formigas assassinas, destruindo e matando. Em sua primeira investida, conseguimos expulsa-los, com ajuda de nossos poderes, mas há alguns meses ele retornou, desta vez contanto com um exército ainda maior. Entre eles, várias criaturas escravizadas e forçadas a lutar pelo seu controle mental. Não tivemos escolha, a não ser fugir. Muitos morreram, incluindo Lírub e Manrat. Sei que ele planeja voltar aqui para terminar o que começou, e não resta outra coisa a não ser se conformar com a extinção imposta por ele.
- Não, Catrash... Ele não vai ter essa oportunidade. Estamos aqui para pegar aconselhamento seu. Nos ajudaram muito da última vez, e de alguma maneira o farão de novo. Não vou permitir que o maldito os machuque novamente.
- Você é um nobre amigo, Lúcio, mas não conhece Kolosh. Se acha que seu pai era uma ameaça, espere até conhecer melhor o filho dele. Ele é mais cruel, mais decidido e mais organizado que Harakit. Sinto dizer isso, mas não acho que vá conseguir surpreendê-lo e subjugá-lo tão fácil quanto o fez com seu progenitor. Ainda assim, se pudermos ajudar em algo, ficaremos tremendamente felizes. Gostaríamos de oferecer-lhes algo para comer, mas estou certo de que não há viveres o suficiente para alimentar tão numeroso exército.
- Não se incomode conosco, Catrash... Trazemos nossa própria comida. Me diga uma coisa... Faz idéia do número de seguidores que Kolosh possui hoje?
- Não hoje, mas em sua última investida contra meu povo, pude sentir umas oitocentas mentes. Tome muito cuidado, Lúcio. Kolosh quer humilhar você e seus seguidores, depois irá extermina-los. Ele é vil e traiçoeiro e nunca esteve tão perto de alcançar seu objetivo.
Permanecemos na aldeia dos homens felinos tanto tempo quanto nossas provisões suportaram. A despedida do líder deles me reservava a maior surpresa que eu teria naquele mundo. Já estávamos todos enfileirados, prontos para seguir viajem quando Catrash se aproximou de mim e me fez entender por telepatia que tinha um presente pra mim. Tocou em minha testa e neste momento senti como se uma agulha perfurasse meu cérebro. Senti enjôo e vertigem, e por causa da tonteira não consegui segurar Catrash quando ele tombou ao chão. Fiquei perplexo. Não estava conseguindo entender o que estava acontecendo. Examinei-o e minha desconfiança se confirmou. Ele estava morto. O último líder dos Homens Leopardos se encontrava inerte aos meus pés. Desnorteado, olhei seu povo que nos circundava, mas não obtive reação alguma de suas faces. Não pareciam surpresos. Com certeza sabiam o que estava acontecendo, mas apesar de meus apelos, nada me disseram. Parti dali zonzo com o que acontecera. Que presente havia me dado Catrash...? Que surpresa me aguardava? Teria que esperar pelo desdobramento da minha aventura naquele lugar maldito para descobrir. Fiquei triste e até magoado com meu amigo pelo mistério que fizera. Não teria sido melhor me fazer entender qual era o objetivo daquele feito? Era cedo demais para saber.
Duas noites após, enquanto dormíamos, Kolosh, ousadamente voltou a me visitar. Fingi estar dormindo para alcançar minha arma que estava ao meu lado embaixo do cobertor de couro animal. Com cuidado desengatilhei a pistola e num milésimo de segundo já estava descarregando-a inteira na direção do demônio albino, mas com extrema facilidade, para minha surpresa, o maldito desviou-se de todos os projéteis. Só então percebi qual fora sua intenção... Me deixar sem balas. Minha arma se tornou inútil. Me senti envergonhado. Estava a sua mercê. Todo o acampamento acordou assustado com os disparos, mas ninguém ousou dar um pio. Estavam todos mudos diante da presença do filho de Harakit. Sorrindo, ele tocou os pés no solo, cessando sua levitação e se aproximou de mim com as duas mãos em direção a minha cabeça. Sua intenção era esmagar meu crânio, mas foi interrompido pela atitude suicida de Wesley, que correu em sua direção com uma lança de madeira e foi sumariamente executado com tremendo golpe na cara. Imediatamente todos os nossos soldados investiram contra ele, que sem aparentar dificuldade conteve todas as investidas por alguns segundos e em seguida levantou vôo, desaparecendo no breu da noite. Não deixei que Ana Cláudia se aproximasse dele. O rosto havia sido esmagado e entrara para dentro do crânio. Me senti culpado automaticamente. O mundo acabou de desabar sobre mim. Cai de joelhos e chorei por mais de uma hora. Ana Cláudia não parava de gritar em desespero. Pensei até mesmo em suicídio, mas fui consolado por Alvaro. Perdi a direção. Não sabia o que dizer ou fazer. Levei dias para me recompor e meu ódio pelo maldito híbrido aumentou tanto que eu chegava a trincar os dentes quando pensava nele. Ana Cláudia só se dirigiu a mim uma única vez, não tornando a falar comigo por dias.
- Eu só queria que você soubesse que meu marido só tomou aquela louca atitude de atacar Kolosh porque foi repreendido por você da última vez. Se você não tivesse chamado sua atenção naquela ocasião, ele estaria vivo agora.
Não tive coragem de dizer nada. Ela estava certa. Perdeu o pai de seu filho por minha causa. Minha consciência pesava uma tonelada. Voltei a me preocupar com o bem-estar das crianças na caravana. Álvaro deixou a Colina dos Traquinas aos cuidados de dez Bóraxes de sua máxima confiança, mas não confiou deixar seu casal de filhos e sua esposa longe de seus cuidados por uma jornada de tempo tão grande. Naquela semana, o pavor estava estampado nas feições de Vitor e Milena e também de Josilene e suas filhas Jade e Lorena. Quanto ao menino Wesley, estava em estado de choque. A tensão só melhorou ao chegarmos ao Parque Aquático. Estávamos exaustos por causa da longa caminhada e resolvemos parar ali alguns dias, uma vez que todos se sentiram mais à vontade dentro d’água. Enquanto matávamos a sede e o calor naquele lugar paradisíaco, construímos jangadas grandes e fortes aos milhares, por sabíamos que iríamos precisar. Fiquei recordando do elasmossauro que tirou a vida de um de nossos guias reptilianos no rio que iríamos atravessar nos próximos dias e senti um calafrio. Será que estaríamos a altura do desafio? Olhei o casal Moreno e Josilene e eles não pareciam estar preocupados. Brincavam com suas duas meninas dentro de uma poça rasa. Moreno espirrava água nelas, que riam sem parar. Josi fingia nadar, batendo os braços dentro daquela pocinha. Sorri... O primeiro sorriso depois de semanas. Mais adiante Bóraxes brincalhões atiravam Traquinas dentro do riacho como se fossem gravetos. Era muito estranha sua gargalhada. Tornei a sorrir, mas meu momento de descontração foi interrompido bruscamente pelos gritos histéricos de Traquinas que estavam em pontos estratégicos no alto de árvores. Eles anunciavam uma tropa de aproximadamente mil Formigas Guerreiras que se aproximavam furtivamente empunhando lanças. Entre elas havia um número bem menor de vários outros seres nativos de Katáris também armados e prontos para a guerra. Gritei com Moreno que desse ordem a vinte Bóraxes para que recuassem imediatamente com todas as mulheres e crianças de nosso grupo para dentro da floresta.
- E quanto a nós, Lúcio?
- Nós... ??? Vamos encarar.
- Encarar? Está louco? Eles são muito mais numerosos. O que você vai fazer? Vai jogar sua pistola na cabeça deles?
- Nosso exército possui treinamento e são muito mais inteligentes do que esses formigões estúpidos. Vamos colocar eles pra correr.
Moreno fez cara de reprovação, mas antes que pudesse voltar a me repreender percebeu que já estávamos completamente cercados. Parece que ao contrário de seu pai, Kolosh não deseja que chegássemos ao castelo. Será que seu orgulho diminuía e ele começava a nos considerar uma proporcional ameaça? Por sorte, as três mulheres já estavam distantes com seus filhos e os vinte guarda-costas quando o tremendo embate começou. Era mesmo uma batalha de grandes proporções. Fiquei admirado com o potencial dos Bóraxes. Não esperava tanto vigor deles, e acho que nem Moreno e Álvaro esperavam. Não foi difícil quebrar o cerco. Me concentrei na minoria de soldados que não eram formigões e deixei as formigas centauros por conta de nossos soldados. Até a hora que parei de contar já havia abatido nada mais nem nada menos que dezesseis oponentes, dentre eles nenhum formigão. Só sai de combate quando fui impulsionado por uma das Formigas Guerreiras e acabei por cair em cima da ponta de uma lança com minha coxa direita, onde se abriu um buraco por onde jorrava tanto sangue que cheguei a pensar ter atingido minha artéria femoral. Me arrastei até Álvaro, estava sentado, aparentemente desnorteado, todo sujo de sangue.
- Está ferido, amigo?
- Não. O sangue não é meu. Estou só recobrando o fôlego. Fique atrás de mim. Você está fora de combate. Eu te protejo.
Não foi necessário. A batalha já estava para terminar, e o resultado já parecia óbvio. Estávamos ganhando. Podíamos ver os Bóraxes esmagar vários crânios com seus tacapes. Do topo de árvores altas, os Traquinas bem treinados faziam mira e abatiam dezenas de formigões.
- Por que elas não recuam?
- Não é do feitio delas, Lúcio. Lutam até a morte. Por que acha que Harakit as escolheu? São seres muito instintivos. Melhor assim. Não sobrará nenhuma delas.
- Pelo menos não aqui. Olhe com que selvageria esses Bóraxes lutam. Impressionante. São fantásticos.
- Eles odeiam Kolosh e sua horda. Até serem atacados por ele, eram seres totalmente inofensivos.
- É... Kolosh não parece ser tão inteligente quanto se faz parecer. Está vendo Moreno?
- Ali... Está comemorando a vitória nos ombros daquele Bóraxe.
Tivemos que permanecer naquele ponto por mais alguns dias, pois a maioria de nossas embarcações havia sido destruída. Para nossa surpresa, nossas baixas eram mínimas. Ficou combinado que por nada as crianças e mulheres atravessariam. O risco era alto demais. Falei sobre o perigo que o largo rio escondia e também sobre os pigmeus assassinos que moravam próximo aos domínios de Kolosh. Improvisamos um acampamento na região mais densa da floresta e as deixamos com os mesmos guarda-costas e com viveres o suficiente para agüentarem mais um mês. Além deles, havia cinqüenta Traquinas bem posicionados em árvores ao longo do acampamento. Quando me certifiquei que estavam bem escondidos, partimos.
Diante do grande rio, jogamos nossas balsas n’água e atravessamos sem incidentes. Não sei como não chamamos a atenção das criaturas aquáticas durante a travessia. Somente ao chegar do outro lado, na margem, percebi que éramos observados por quatro Canibais Aquáticos. Nossos antigos conhecidos se limitaram a nos olhar com a curiosidade que já nos era familiar. Eles estavam com metade do corpo para dentro da água e metade para fora. Estranhamente, não havia atividade do lado de fora da antiga fortaleza de Harakit. Entramos com cuidado e qual não foi nossa surpresa ao constatar que o único ser vivo lá dentro era a rainha do formigueiro, enorme e gosmenta como da última vez.
- Que diabo é isso?
- A mãe dos formigões, Moreno.
- Vamos mata-la?
- Não... Não adiantaria. Elas criariam outra.
- Mas o que é que há? Vamos nos vingar. Vamos espetar esse troço. Por que a abandonaram?
- Não a abandonaram. Foram trucidados. Por nós, esqueceu?
- Mas será que só havia aquelas?
- Duvido. As outras devem estar de guarda nos arredores do castelo de Kolosh.
De repente, de fora da construção, Álvaro nos gritou num tom que não gostei nada. Havia pavor em sua voz.
- Lúcio... Rápido. Desça daí. Venha ver isso.
Me aproximei de uma das aberturas da fortaleza e fiquei perplexo. Um batalhão inteiro de pigmeus peludos se aproximava de lança em punho. Eram algo por volta de seiscentos e não pareciam querer conversar.
- São da tal tribo que matou Márcia?
- Sim... São eles.
- Representam ameaça aos Bóraxes?
- Sim... São ágeis e perversos.
- Lúcio... Olhe pra direita.
Engasguei em seco. A pouco mais de quatrocentos metros, uma nova horda de Formigas Guerreiras se aproximava a passos longos.
- O que está acontecendo, Lúcio?
- Não sei. Tenho esperança de que seja um problema entre os formigões e os pigmeus.
Minha esperança não durou muito. Mais adiante pude perceber um grande número de figuras negras saltando para fora do grande rio. Eram os Canibais Aquáticos, mas desta vez não somente quatro. Havia no mínimo cem deles. Se arrastavam rapidamente em nossa direção. Estariam vindo em nossa defesa? Claro que não. Pararam diante da fortaleza assim como os pigmeus e os formigões, cercando todo o nosso contingente.
- Ainda bem que não matamos a formiga rainha. Vamos ver se ela vale alguma coisa para seus súditos.
- Por que ainda não nos atacaram?
- Acham que vamos nos render.
- Não nos rendemos na última batalha, não será agora.
- Moreno... Da última vez achei que tivéssemos alguma chance e por acaso eu estava certo. Desta vez, se nos atacarem, será um massacre. Não temos a menor chance. Há um número ainda maior de formigões, fora o reforço dos pigmeus e Canibais Aquáticos. Dê ordem a dois Bóraxes para que eles arrastem esta rainha até aqui na abertura.
Tão logo eles acataram a ordem, Lúcio colocou a ponta de sua lança na cabeça do gigantesco animal, que começou a chorar. Estranhamente, percebeu que o gesto era desnecessário, porque seus pensamentos eram ouvidos por todos ali a sua volta.
- Lúcio, o que está acontecendo? Estou ouvindo seus pensamentos assim como acontece com os Homens Leopardo.
As Formigas Guerreiras entraram em alvoroço. Fiquei surpreso, mas aproveitei para negociar com os formigões sua rendição pela vida de sua rainha. Disse também que se os pigmeus ou os canibais invadissem a fortaleza, eu a mataria. A resposta das formigas gigantes foi um ataque direto as criaturas que estavam ali para ajuda-las a sobrepujar o meu exército. Então sorri e agradeci em silêncio ao presente de meu amigo Catrash. Os pigmeus pareciam não acreditar na investida, mas revidaram quase que imediatamente. Nossa legião, guiada por Álvaro, adentrou a fortaleza. Me comuniquei mentalmente com ele novamente.
- Muito bem, Álvaro... Vamos deixar que se matem, depois vemos como é que fica.
Mas o que eu imaginava acabou por acontecer. As Formigas Guerreiras, apesar de muito fortes em proporção ao seu peso e tamanho, eram pouco ágeis e idiotas ao extremo. Foram dizimadas em pouco tempo, mas levaram consigo boa parte dos nanicos selvagens e dos canibais de ébano. Quando os inimigos, já vitoriosos, começaram a se dirigir à entrada da fortaleza, eu disse para meus amigos que poderíamos ganhar deles, mas fui interrompido por Álvaro.
- Não, Lúcio... Nossa situação voltou a se complicar. Veja... Reforços para os pigmeus.
Não acreditei no golpe do destino. Trezentos nanicos fortemente armados se aproximavam rapidamente, mas para nossa surpresa, os pigmeus que há pouco se preparavam para invadir a fortaleza correram em direção ao rio e foram seguidos pelos Canibais Aquáticos. Tornei a olhar em direção ao regimento que se aproximava e pude reconhecer uma pessoa que vinha a frente deles. Esfreguei os olhos soados para enxergar melhor, tamanha era minha surpresa. Quem estava no comando deles era Marina. Parou diante de nós e olhou pra cima.
- Não vão me convidar pra entrar? Salvo suas vidas e é assim que me tratam?
- É você mesma?
- Em carne e banha.
Estava no mínimo trinta quilos mais gorda. Adentrou a construção rochosa deixando na entrada seus compatriotas. Abracei-a muito e muito e perguntei o que havia ocorrido.
- Pensamos que havia morrido quando caiu deste lugar.
- E quase morri. Me arrastei até a floresta, onde fui encontrada por um grupo de Taabs, que para minha surpresa me salvou a vida e me levou para sua aldeia.
- Taabs?
- Sim... Os anõezinhos. São os Taabs.
- Não guardo boas recordações desse povo.
- Sim, eu me lembro. Eles nos sequestraram e mataram Márcia, mas o que você precisa saber é que os Taabs se dividem em três tribos, como índios, sendo que duas tribos são maléficas e somente uma pacífica. A que me encontrou, por sorte era a pacifica. Das tribos hostis, uma é independente e a outra serve Kolosh. Casei-me com o chefe de nossa tribo e estou ansiosa para que conheçam ele e meus filhos.
- Filhos...? Você teve filhos com um pigmeu?
- Que indelicadeza, Lúcio... Tive sim, são dois garotos e uma menina e são todos lindos. Vamos embora. É perigoso ficar aqui. Vamos pra minha tribo.
- Vai ser bom, estamos morrendo de fome. Deixamos quase todo o alimento que tínhamos com as mulheres num acampamento nas proximidades do Parque Aquático.
- A quem você se refere?
- Ana Cláudia, Josilene e Elaine, com seus filhos. Sua aldeia fica muito distante daqui?
- Não... São só duas horas de caminhada.
Chegamos ao local ainda mais famintos. Eu havia enchido a barriga de água para disfarçar a fome. Os filhos de Marina eram verdadeiras misturas entre pigmeu e humano. Não eram absolutamente lindos como ela comentara, muito pelo contrário. Tinham grossas sombrancelhas e eram sararás. Tinham a cara fechada como se sentissem raiva o tempo todo e seu pai, o líder da tribo, era um anão de meia idade. Nos recebeu com abraços, sorrindo o tempo todo e nos levou até uma parte da aldeia onde estavam arrumadas sobre folhas várias tigelas de barro com muita comida. Salivei. Nossos Bóraxes e Traquinas, que até então pareciam tensos, se soltaram. Fiquei imaginando onde haveriam conseguido tanta comida.
- Como ficou sabendo de nossa presença na fortaleza, Marina?
- Dias atrás vimos intensa movimentação entre os formigões. Sabia que Kolosh planeja algo. Ordenei a meus espiões que vigiassem próximo ao grande rio e eles avistaram suas balsas. Quando perceberam que havia gente da minha espécie, vieram correndo me contar. Fiquei em êxtase e parti ao seu encontro.
- Por que nunca foi visitar os outros. Eles nem sabiam que você estava viva e bem aqui em Katáris.
- Não queria sair da segurança de minha tribo para viajar tão longe. Aqui sou tratada como uma verdadeira rainha. Tenho tudo de que preciso.
- Como conseguiu engordar tanto.
- Você está mais uma vez sendo indiscreto. É por causa dos Taabs. Se eles tem algo grande, é o apetite. Comem o dia inteiro, mas ao contrário de mim, não tem tendência a engordar.
- Não ensinou seus filhos a falar o português?
- Eu bem que tentei, mas só consegui que falassem algumas palavras básicas.
- Soube que consegui matar Harakit e retornar a Terra?
- Sim... Kolosh fez questão de frisar tudo na minha mente.
- Ele se comunica com você?
- Não mais... Parou há alguns anos atrás. Quer que eu te arrume uma namorada pigméia?
- Há, há, há.......... Por favor, Marina, me poupe.
- Mas por que não? Veja... Elas são lindas. Olhe que seios durinhos.
- Há, há, há... Só você mesmo.
Olhei para Álvaro e Moreno para ver se riam do trocadilho, mas estavam ocupados demais comendo. Pensei em Josilene e cia. Eles estariam bem? Lembrei-me dela de top less e fiquei excitado por causa do longo tempo de abstinência sexual, mas tratei de afastar os maus pensamentos. Ela era mulher de um de meus melhores amigos. Fizemos companhia a Marina por dois dias, depois partimos com ela e seus trezentos guarda-costas. Eram um reforço importante. O líder da tribo e marido dela também veio conosco. Pelo caminho, topamos com uma tribo de Taabs hostis independentes, mas eles não ousaram nos encarar. Nos deixaram passar sem problemas. Dias após, chegamos ao castelo. De longe, pudemos perceber que o maior desafio até então seria disputado naquele lugar. Em torno dele, todo tipo de raça nativa o protegia, fortemente armados. Eram milhares. Ao nos aproximarmos, tentei convence-los telepaticamente a se aderir a nós, mas foi em vão. O poder de Kolosh era indubitavelmente superior. O que seguiu foi um combate que se fez ouvir quilômetros dali. Por ser minoria, nosso grupo foi imediatamente impulsionado para trás. As hordas inimigas nos fizeram recuar gradativamente. Muitos morreram pisoteados. Tentei a todo custo explicar aquele exército que estávamos ali para liberta-los. Tudo em vão. Estávamos sendo massacrados. Recuamos até a floresta, mas eles nos seguiram. Meu corpo estava trêmulo, soado e respingado de sangue. Tentei ver Moreno, Álvaro e Marina, mas não consegui. Voltei a sentir o ferimento da coxa, que ainda não estava completamente curado. O esforço que tive de desprender para continuar vivo era maior do que pensei que poderia. Fiquei imaginando se meus amigos ainda estariam vivos. Tentei mover algo com a mente na vã esperança de me defender, mas não consegui. Um de meus guarda-costas Bóraxe percebeu que eu já estava pra tombar e se posicionou a minha frente, interceptando os ataques me eram direcionados. Fiquei grato. Recuamos durante horas. A noite começou a cair e nossos algozes cessaram para nossa sorte. Nos re-agrupamos e só então percebemos que eles tiveram o cuidado de nos circundar. Era para que não houvesse fuga. Queriam descansar durante a noite e nos exterminar pela manhã. Cai ao solo coberto de folhagem de barriga para cima, arfante. Nesse momento, Álvaro e Moreno se aproximaram de mim, sem aparentar exaustão tão grande quanto a minha.
- Onde está Marina, Álvaro?
- Vi quando eles pegaram ela, Lúcio...
- Como assim, pegaram?
- Vi ela receber uma estocada de lança. Ela caiu e eles passaram por cima dela. Duvido que tenha sobrevivido.
- Ah... Meu Deus...!!!
Coloquei minhas mãos nos olhos mas não consegui chorar.
- Que vamos fazer agora, Moreno?
- Vamos descansar e esperar o inevitável, Lúcio. Ou nos entregar.
- Como assim nos entregar?
- Nos render. Não temos a menor chance. Só sobrou uns duzentos de nós. Ainda há milhares deles.
- Por que esses imbecis não entendem que queremos o bem deles?
- Não adianta, Lúcio. Eles estão com Kolosh e só...
- Não me conformo. Tem de haver um meio. Vou pensar em algo.
No meio da madrugada, quando tudo estava calmo, mandei o que sobrara de meu exército furar o bloqueio e partir em direção ao grande rio, na certeza de que nossas balsas estariam onde as guardamos. Isso deveria ser feito de uma só vez. Fugiríamos o mais rápido que fosse possível, e assim foi feito. A surpresa da fuga os fez perder minutos triviais para que pudéssemos nos distanciar dali. Corremos e corremos até que amanheceu e avistamos a margem do rio. Ao jogar nossas embarcações na água, vimos nossos algozes se aproximar, gritando de ódio. Já era tarde pra eles. Sem ter como nos seguir dentro d’água, se limitaram a espraguejar. Sorrimos, até perceber um turbilhão escuro abaixo de nós. Eu já havia visto aquilo em outra ocasião. Eram os anfíbios Canibais Aquáticos. Em conjunto, destruíram algumas balsas com suas potentes unhas, afogando seus tripulantes. Mandei meus lacaios remar mais rápido, e quando já estávamos a uns trezentos metros da outra margem, como num pesadelo, vislumbrei Kolosh levitar por cima das árvores de braços cruzados, até ficar a quatro metros acima de nós. Sabia que se demorasse a raciocinar mais alguns segundos seria meu inevitável fim, então num relâmpago de consciência localizei telepaticamente um enorme Elasmossauro que se encontrava um pouco abaixo de nós e projetei a imagem e localização de Kolosh em sua mente. O gigantesco animal precipitou seu esguio pescoço fora d’água tão rápido que chegou a jogar uma onda sobre nós. Quando enxuguei meus olhos, vi Kolosh se debater dentro das mandíbulas do monstro, que submergiu quase que imediatamente. Olhei a superfície da água e pude perceber, sorrindo, ela ficar avermelhada em toda aquela extensão. Moreno e Álvaro, ao meu lado, pareciam não acreditar no que ocorrera. Tão logo desembarcamos em terra firme, seguimos na direção do Parque Aquático.
- Lúcio... Quando avistei Kolosh ele vinha da direção do acampamento.
- Eu sei... Minha preocupação é a mesma que a sua.
- Não pode tentar saber se elas estão bem, telepaticamente?
- Sabe que não sei usar esse dom muito bem ainda, mas estou tentando. Acho que não dá pra fazer isso a esta distancia. Vamos ter que conviver com a dúvida até chegar lá.
Tensos e temerosos, chegamos ao Parque Aquático e alguns de nós vomitou ao deparar com os cadáveres putrefatos que lá havíamos abandonado dias atrás. O cheiro de carniça era sentido de longe. O calor que fazia naqueles dias ajudou a estagnar. Adentramos a floresta e chegamos ao acampamento. Nos desesperamos ao encontrar dois Bóraxes e três Traquinas mortos. Fora seus corpos inertes, mais nada havia naquele lugar. Moreno começou a chorar, mas logo se acalmou, ao ver Ana Cláudia e Josilene saírem de dentro de densa moita.
- O que aconteceu aqui, Josi.
- Kolosh nos localizou. Conseguimos fugir pra dentro da floresta enquanto alguns de nossos guarda-costas ganhavam tempo. Como podem ver, foram trucidados.
- Onde estão as crianças?
- Estão todas bem aqui perto. Venham, vamos até elas. Pelas caras de vocês, a missão foi um fracasso.
- Se você acha que a extinção de Kolosh, o maldito, é um fracasso, então foi.
- Ele está morto?
- E dentro do estômago de um Elasmossauro.
Sorrimos. Fomos abraçados por todos ao chegar ao novo esconderijo. A missão não havia acabado. Deixaríamos a poeira assentar e então retornaríamos ao castelo na esperança de que os súditos de Kolosh já houvessem se dissipado. Eu precisava encontrar meios de retornar ao meu planeta natal. Precisava procurar pistas dentro do castelo de Kolosh. Será que ele teria um filho para me mandar de volta como ocorrera com Harakit? Eu precisava descobrir. Quase uma semana depois, partimos novamente em direção ao grande rio, desta vez levando todos conosco. Não confiávamos mais em deixa-los para trás. Preferimos correr o risco juntos. Nossa caravana era formada por pouco mais de cem indivíduos. Muitas vidas já haviam se perdido, mas estou certo de que muitas mais haveriam se perdido caso Kolosh não tivesse morrido. Colocamos nossas balsas e jangadas mais uma vez dentro da água e temendo uma investida tanto de um elasmossauro quanto dos Canibais Aquáticos, acabamos sendo perturbados logo pelos horrorosos peixes répteis de placas ósseas. Um cardume deles virou uma das embarcações e se fartou com dez de nossos comandados. Era a sina de Katáris. Viver naquele lugar era arriscar a vida a cada segundo. Chegamos ao outro lado felizes por não ter sido nós ao invés deles. Olhei em direção a incrível construção de Harakit que há tempos servia como formigueiro. Algumas Formigas Guerreiras circulavam por lá. Não nos incomodaram. Será que teria sido assim se tivéssemos matado sua rainha? Passamos apressados e adentramos a floresta. Demos uma tremenda volta que nos custou um dia a mais para que evitássemos a tribo dos Taabs hostis que mataram Márcia. Por causa da trilha diferente que seguimos acabamos por chegar em uma aldeia que era novidade pelo ao menos para mim. Moreno já conhecia aquela raça e os chamava de Yetis. Eram seres de quase dois metros de altura, símios, com toda certeza. Tinham grandes pelos ruivos espalhados por todo o corpo, menos na face, que era rosada. Apesar de possuírem grandes lanças que carregavam consigo o tempo todo, Moreno me disse que não precisávamos nos preocupar com eles. Aquele povo já havia negociado algumas mercadorias com ele por intermédio de escambo. Eram velhos conhecidos. Informamos a eles que kolosh já não era mais uma ameaça e eles ficaram felizes e gratos. Moreno os convidou para acompanhar-nos, mas negaram gentilmente. Nos ofereceram comida e bebida e tão logo almoçamos, partimos. Chegamos a região onde o castelo se encontrava por trás dele. Para nossa surpresa, ali havia também uma entrada. Nada nem ninguém ali se encontrava. Será que a entrada principal também estava deserta? Preferimos entrar por ali mesmo. Sorrateiros, esperando alguma emboscada, adentramos a construção, vasculhando cada centímetro dela. Só no último andar da construção rochosa fomos encontrar, sentadas, abraçadas umas as outras, tremendo de medo, quatro esposas de Kolosh. Onde estaria a mãe dele, me perguntei. Provavelmente morta. Assassina por ele próprio. As fiz entender que não havia motivo para tanto medo. Estavam livres da influencia dele. Perguntei se havia como eu ser mandado de volta a meu mundo. Elas responderam que uma vez que Kolosh estivesse morto, somente um sábio Malék poderia responder a esta pergunta. Saímos do castelo, elas nos acompanhando. Nos dias que se seguiram, retornamos todo o trajeto, parando vez ou outra para acampar e caçar, mas só quando chegávamos próximo a aldeia dos Homens Felinos voltamos a encarar uma ameaça. O grande lagarto pré-histórico atacou nosso grupo, matando e devorando vários de nossos seguranças e ferindo a filha mais nova de Moreno e Josilene, a Lorena. A menina foi jogada pelo gigante animal de encontro a uma árvore e desmaiou ao bater com a cabeça. Alguns minutos depois ela acordou, queixando-se de dor na cabeça e no braço esquerdo. Desconfiei de fratura do rádio, mas ao chegarmos na aldeia, um curandeiro Málek curou-a com sua terapia telepática. Lorena ganhara esse nome por ter puxado a cor do pai. Era alegre, simpática e bonita. Tinha naquela ocasião uns sete anos de idade. Pedi aconselhamento aos meus amigos homens felinos sobre o que fazer para retornar. Me desesperei ao ouvir a resposta. Não havia nada que pudessem fazer. Eu estava preso aquele lugar, a menos que Kolosh voltasse do mundo dos mortos. Sentei-me e chorei. Cristina estava vingada e eu estava fadado a terminar meus dias longe de meu filho. Sem mais o que fazer, aceitei o convite de Álvaro de ir morar na Colina dos Traquinas e no dia seguinte partimos, mas não sem antes pegar treinar meus novos poderes com alguns sábios do povoado. Cheguei a conseguir fazer flutuar algumas pedras de pequeno porte. Aquilo era uma experiência nova e fantástica pela qual eu estava passando. No Rochedo dos Lagartos, para nossa surpresa, encontramos três famílias deles tentando se recompor e fizemos companhia por alguns dias. Ao chegar ao oásis, eu, Josilene e Moreno choramos ao nos recordar do que ali vivemos. Permanecemos ali quase duas semanas, nos embriagando de fruta rum. Num dia de ressaca, eu estava descansando encostado em uma árvore quando Ana Cláudia se aproximou de mim e me pediu desculpa pela acusação que me fizera meses antes, quando da ocasião da morte de Wesley.
- Você não me deve desculpas e sim eu a você. Eu me sinto culpado pela morte dele, Ana. Você tem toda razão de me odiar.
- Eu não odeio você. Juro. Wesley e os outros te seguiram por que sempre confiram nas tuas atitudes. Esses feitos incríveis que você consegue... Você é uma pessoa agraciada. Nunca achei que conseguiria acabar realmente com harakit e conseguiu. Sempre duvidei que matasse Kolosh e você o fez. Conseguiu coisas incríveis neste planeta, Lúcio. Por que tentar voltar pra casa? Lá, você seria somente mais um na multidão. Passaria despercebido. Aqui, você é mais do que um líder.
Me emocionei com sua palavras. Ao mesmo tempo que uma lágrima rolou por meu rosto, ela me surpreendeu com um beijo nos lábios. Não correspondi. Estava com medo da reprovação das outras pessoas do grupo. Ela ficou decepcionada com minha atitude.
- Você não me quer, não é?
- Não é isso. Você continua sendo uma mulher muito sexy, mas o que os outros vão pensar de nós?
- Lúcio, eu amava muito meu marido, mas ele já morreu há mais de um ano. Somos o único casal desacompanhado que existe neste lugar. Eu tenho sentido atração por você. Por que me rejeitar?
- Não estou te rejeitando. Só de ver suas pernas sinto um calor por dentro, só que prefiro saber a opinião dos outros antes de dar mais um passo.
- Eu respeito isso.
Ana Cláudia iria me surpreender ainda mais naquele dia. A noite, ela fez uma reunião entre todos e contou todos os detalhes de nossa conversa. Ruborizei. Todos, unanimemente, aprovaram nossa relação.
- A vida continua. Todos sabemos do respeito que você tinha pelo Wesley, Lúcio.
- Criarei o Júnior como se fosse meu próprio filho.
Ana Cláudia sorriu, levantou-se de onde estava, sentou-se no meu colo e me beijou de leve nos lábios. Aproximou a boca de meu ouvido e sussurrou.
- Vou cuidar bem de você hoje.
- Estou há muito tempo sem mulher.
- Estou há muito tempo sem homem.
Tivemos uma tremenda noite de amor. Semanas depois, chegamos a Savana Paradiso. Com muita choradeira, nos despedimos de Moreno, Josilene, Jade, Lorena e dos poucos Bóraxes que sobreviveram. Partimos com nossos companheiros Traquinas, loucos pra chegar em casa. O inverno parecia estar pra chegar. Vi um dos grandes morcegos da neve passar voando por cima de nossas cabeças e por precaução peguei um arco e algumas flechas. Ana Cláudia parecia uma adolescente que acabara de ficar com seu primeiro namorado. Brincava comigo a todo momento. Pulava no meu colo, se esbarrava de propósito, roubava beijos. Wesley Júnior observava com cara de poucos amigos. Numa noite, enquanto acampávamos, saiu as pressas de perto de mim e adentrou o mato. Segui-a em silencio. Vi quando se debruçou e começou a vomitar. Me aproximei dela.
- Por que me escondeu? Há quanto tempo está se sentindo enjoada?
- Há alguns dias.
- Está grávida?
- Acho que sim. Desculpe, não queria que ficasse com raiva de mim, por isso escondi de você.
- Por que ficaria com raiva de você?
- Por ter acontecido tão rápido.
- Sim, é muito cedo, mas é motivo pra comemorar e não pra ter raiva.
Ela se aproximou sorrindo e me abraçou.
- Só não me beije antes de se lavar...
Rimos. Quando informamos a Álvaro e Elaine, eles sorriram e disseram que deveria ser uma menina, pra formar um casal. Pensei em meu filho. O que ele estaria fazendo naquele momento? Será que ainda estaria morando com a tia? Será que me odiava. Como eu gostaria de poder lhe dizer que vinguei a morte de sua mãe. Dois dias antes de chegarmos em casa, começou a chover e vimos dois tigres da raça de Puma e Juma abater um Drak. Eles não ousaram ou não quiseram nos atacar. Será que um deles não era o próprio Puma? Acho que não. Pareciam ser felinos jovens.
Assumi a casa fazendo pequenas mudanças. Deitei com Ana em uma cama fabricada por eu mesmo. Não quis usar a de Wesley. Me sentiria mal. Namoramos muito. Descansamos por quase dois dias seguidos. Álvaro e Elaine nos convenceram a sair de nosso confinamento.
- Não sei quanto a vocês, mas nós dois estamos morrendo de saudade de comer peixe assado na brasa. Vamos agora mesmo pro rio Mandrákora.
Descemos a colina e abatemos vários peixes pra peixada. Quando avistei ao longe o inconfundível pescoço esguio de um Elasmossauro, lembrei de Kolosh. O que será que passou por sua mente no momento em que as poderosas presas daquele gigantesco animal fecharam sobre seu corpo? Sorri. Espero que esteja ardendo nas profundezas do inferno com seu maldito pai. Há dois meses minha filha Viviane nasceu. Tenho treinado meus poderes constantemente e já consigo levantar um tronco de uma tonelada uns três metros. Nunca vi um Malék fazer tal coisa. Meus amigos Álvaro e Elaine não sabem, mas conheço cada segredo escabroso deles. Nenhum pensamento me passa despercebido. O mais interessante é que acho que Vivi, minha filha, de alguma maneira herdou o dom. Ela levitou alguns brinquedos, deixando sua mãe em estado de choque. Fico por aqui, vivendo minha em Katáris, junto aos amigos Traquinas, esperando por novidades que nunca chegam. No ao que vem, irei visitar nossos colegas de Savana Paradiso e, quem sabe, até convence-los a se mudar pra cá. Vou esperar apenas que minha filha complete um ano terrestre para não sofrer tanto com a viajem, afinal de contas, nossos amigos merecem conhecer o mais novo ser humano nascido no louco planeta Katáris.
Capítulo 3
Dimensão Sinistra - Ela Existe!
Luciano acordou cedo por força do hábito. Olhou pro relógio que marcava 05:33 hs. Não havia necessidade de estar acordado àquela hora num domingo. O relógio digital que ficava em cima de sua mesa de cabeceira lhe mostrava também o dia. Era quatro de janeiro de 2009. Era uma manhã um tanto chuvosa. Ficou feliz de não ter que ir para o CPOR (Centro de Preparação de Oficias da Reserva) onde servia como cabo do exército. Pulou da cama bocejando e andou em direção a geladeira. Cortou três pedaços de queijo branco ali mesmo e os colocou dentro de um pão francês dormido. Esquentou um pouco no forno micro-ondas e então levou à boca. Abriu uma embalagem de suco pronto de manga e antes de dar o primeiro gole se assustou com a súbita presença de sua tia, ainda de camisola.
- O que foi? Por que se assustou, meu filho?
- Não esquenta. Tenho andado assim mesmo. São esses sonhos que tenho tido.
- Sonhos? Você quer dizer pesadelos...
- Isso mesmo.
- Só não me diga que tem sonhado com o tal demônio albino da outra dimensão.
- Não... São com meu pai.
- Com Lúcio? Então são realmente sonhos, e não pesadelos.
- São pesadelos. Qualquer coisa que me lembre meu pai é um pesadelo pra mim.
- Não diga isso, Luciano.
- Digo sim. Eu o odeio.
- Ninguém sabe o que aconteceu a ele, Luciano. Você não pode afirmar que ele o abandonou. Quem sabe se realmente não retornou a tal dimensão paralela?
- Ele não retornou nada. Ele fugiu. Preferiu não encarar seus problemas de frente, só isso. Ele nunca gostou de mim. Amava só minha mãe. Quando ela morreu, ele ficou maluco.
- Seu pai não era maluco. Nunca foi. Ele não inventou essas coisas, elas realmente aconteceram, isso já está mais que provado.
- O que você acha que aconteceu a ele então? Eu já estou pra completar vinte anos de idade. Nem sinal dele. Nem uma noticia. Por que ele não me mandou uma carta ou me deu um telefonema pelo menos nos meus aniversários?
- Vou ser muito franca com você, Luciano. Não acho que seu pai esteja vivo. Prefiro pensar que ele tenha voltado ao tal planeta sinistro, mas no fundo eu creio que ele esteja morto.
- Então o que foi? Cometeu suicídio? Minha mãe morre e ele se suicida?
- Não... Acho que se meteu em alguma confusão. Talvez até de propósito. Seu pai procurou a morte por não agüentar o sofrimento e a revolta.
- Sofrimento tudo bem, mas revolta...??? Que revolta? Por que revolta?
- Sua avó me contou que ele achava que o tal chifrudo era responsável pela morte de minha irmã. Estava revoltado com essa possibilidade. Dizia que ele possuía este poder de invadir os sonhos e matar as pessoas. Meu Deus... Invadir os sonhos. Você me disse que anda tendo pesadelos...
- Mas não são com o tal Harakit. Meus sonhos são com meu pai, já falei.
- E o que acontece neles?
- Ele me pede ajuda. Diz que está aprisionado pelo demônio de chifres. Sofre muita e precisa de mim pra se libertar. Nos sonhos, vejo animais estranhos e hostis, e muita morte violenta. É horrível.
A conversa foi interrompida pelo tio de Luciano que acordara. Ele então, sem graça por ter interrompido o descanso de Luis Antônio, saiu pela varanda da casa de dois andares no Recreio dos Bandeirantes. Caminhou alguns passos, até chegar a uma mangueira esticada no chão gramado. A chuva já cessara. Ligou a torneira, pôs a ponta da mangueira dentro de um balde, espirrou detergente e começou a lavar os três carros estacionados no jardim. Primeiro a Pajero de seu tio, depois a Eco Sport de sua tia e enfim o seu Palio. Quando terminou, pegou o aspirador de pó dentro da mala da Eco Sport e passou a sugar toda a poeira do interior dos veículos. Todos os dias que não tinha de ir ao quartel executava este serviço. Era ordem de seu tio Luis Antônio. Sua tia Cristiane, irmã mais velha de sua mãe Cristina, discordava das tarefas que seu marido impunha-o, mas pouco podia fazer, uma vez que era Luis Antônio quem arcava com todas as despesas da casa. Tinham duas filhas gêmeas, Karina e Sabrina, de cinco anos de idade. Luciano por diversas vezes em sua vida ficara de babá delas enquanto seus tios saiam para se divertir. A verdade é que seu tio jamais ficou a vontade em sustentar Luciano dentro de sua casa. No começo, quando o casal ainda não tinha filhos, a presença dele tirava sua privacidade, agora tinha de ouvir as lamúrias do sobrinho de Cristiane. Aos quarenta e nove anos de idade, Luis Antônio acabara de assumir a gerência geral no Brasil de uma empresa multinacional com sede na Alemanha. Dinheiro nunca seria problema pra ele, mesmo assim, se irritava quando Cristiane lhe dizia que Luciano precisava de algo. Até seu Palio zero fora comprado pela tia, que pagava financiamento em seu próprio nome com a mesada gorda que seu marido lhe dava, motivo de grande discussão entre o casal na ocasião da compra. Acabando de aspirar os três carros, Luciano se apressou a retornar para seu quarto, onde deveria arrumar a cama, antes que seu tio a visse bagunçada. Antes de terminar de dobrar a coberta, Dona Clarisse, a empregada, adentrou o quarto.
- Pode deixar comigo, Luciano, já cheguei.
- Já estou terminando, Dona Clarisse, não se incomode. E aí, já falou com a Bia sobre o meu amigo?
- Não falei nem vou falar. Não tem essa de botar minha filha na fita de amigos seus, não. Nem pensar. Eu sei no que isso dá.
- Que nada... O cara é tranquilão. Vai por mim, Dona Clarisse. Vamos combinar o seguinte, na quarta-feira é o dia da sua folga. Passamos lá em Rio das Pedras pra pegar você e ela pra sair com a gente, tá combinado?
- Eu vou junto?
- Claro, assim a senhora também se distrai.
- Já que é assim... Onde nós vamos?
- Não sei. Vou pensar e depois te falo.
- A sua namorada vai também?
- Claro que a Juliana vai com a gente.
- Tá bem. Só vou porque gosto muito de você e da Juliana, agora esse tal de Rodrigo seu amigo aí, não fui com a cara dele, não, e já falei com a Beatriz. Se depender de mim, eles não ficam...
- O cara é bom partido. Sargentão... Se amarrou na sua filha. Caiu de quatro por ela.
- Claro... Minha filha é linda, loira e bela. Com aqueles olhos azuis, ela conquista até general, meu filho. Só que vocês se esquecem que ela tem só quatorze aninhos.
- Então está combinado. Quarta-feira as 19:00 hs.
Luciano desceu as escadas e foi em direção a seu carro. Ligou o motor e acionou o controle remoto que abre a porta da garagem. Estava indo pra casa da namorada Juliana na Barra da Tijuca. Seriam só quinze minutos até chegar lá, mas seu celular tocou e percebeu que era ela lhe ligando.
- Bom dia, amor. Já acordada?
- Dormi cedo ontem. Está em casa? Estou indo pra aí.
- Caramba... Estava indo te acordar. Vamos fazer o seguinte. Estou passando quase em frente a locadora de DVDs. Vou parar pra escolher alguns pra nós, já que voltou a chover. Você me encontra aqui.
De dentro da loja, Luciano viu pelo vidro o Fiesta vermelho de sua namorada estacionar. Ele já tinha nas mãos um filme e a aguardava para que ela escolhesse o outro. Juliana tinha dezoito anos, muito alva, cabelos castanhos claros e olhos verdes, com 1,70 de altura contra 1,78 de Luciano, que era moreno claro, cabelos castanhos bem aparados e pesava uns oitenta quilos.
- Oi, amor... Qual você escolheu?
- Apocalypto.
- Que filme é esse?
- Alguma coisa sobre a civilização pré-colombiana.
- Será que é bom?
- Deve ser. Foi dirigido pelo Mel Gibson.
- Então deve ser mesmo bom. Lembra de Coração Valente? Foi ótimo. Vou levar esse aqui.
- Hitman... Como é?
- Uma amiga minha assistiu e disse que é maneiro.
Dez minutos depois estavam no quarto de Luciano, deitados em baixo de cobertas, assistindo Apocalypto. Luciano passou a mão pelo corpo de Juliana por debaixo da roupa, que ficou arrepiada dos pés a cabeça.
- Aqui não, amor. Pode aparecer alguém.
Ele então tratou de se acalmar e passou a prestar atenção ao filme. Sentiu sono e só não dormiu porque cenas mais tensas e de violência extrema lhe deixaram atônito. Quando o filme acabou, comentaram durante vários minutos sobre o seu desfeixo e então colocaram o outro DVD no aparelho, mas pegaram no sono antes da conclusão do mesmo. Foram acordados por Cristiane por volta do meio dia para almoçar. Na mesa havia várias tigelas com saladas diversas, almôndegas, batatas fritas, arroz, feijão com carne seca, farofa, couve à mineira e bifes de carré suíno bem passados. As gêmeas reclamaram da comida. Diziam não gostar de nada daquilo que estava servido à mesa. Preferiam hambúrguer. Após o almoço assistiram um pouco de televisão na sala fazendo companhia aos tios, depois resolveram ir ao Shopping Down Town tomar sorvete. Encontraram vários amigos e conhecidos, inclusive o amigo Rodrigo, que tinha como nome de guerra sargento Freitas.
- Fala, Freitas... Veio às compras?
- Só comprando umas roupas. Tudo bem, Juliana?
- Oi, Rodrigo.
- Parceiro, temos programa pra quarta-feira. Vamos sair com a Bia e a mãe dela.
- Fala sério, cara... A mãe dela vai junto?
- Foi a única maneira que encontrei pra convencer a dona Clarisse.
- Fazer o que...? Vamos ver no que vai dar.
Pararam em uma chopperia, conversaram um pouco mais e quando se fez noite, Luciano acompanhou Juliana até o prédio onde morava, na av. Sernambetiba. Sentaram-se no sofá da recepção do edifício, onde se beijaram um pouco, ficando excitados.
- Está pensando o mesmo o que eu?
- O que, Lú...? Minha mãe está em casa.
- Vamos pro nosso cantinho.
Luciano se referia ao Motel Mirante, em Jacarepaguá, onde desfrutaram seus melhores momentos juntos nestes quase três anos de namoro. Aquele lugar pra eles era quase místico. Possuíam lembranças de sobra. Boas lembranças. Ainda era cedo e poderiam desfrutar bastante. Partiram. Depois de fazer amor, Juliana recostou a cabeça no braço direito do namorado e puxou assunto.
- Amor, quando estávamos dormindo no seu quarto hoje, percebi que você estava tendo um sono muito agitado. Estava tendo pesadelos?
- Sim... Era sobre meu pai.
- O que foi que você sonhou?
- Meus pesadelos são meio confusos, mas sempre posso sentir desespero, revolta, ódio, fome e morte emanando daquele lugar.
- Acho tão incrível que aquilo possa ter mesmo acontecido. É como acreditar em disco voador e extraterrestres.
- Eu acredito em extraterrestres.
- Fala sério.
- É sério.
- Você ficaria chateado se te dissesse que considero essa história toda de outra dimensão uma tremenda farsa?
- Não, não ficaria.
- Parece uma tremenda obra de ficção.
- Eu também pensava assim, mas e as testemunhas? As pessoas que estiveram lá com meu pai e que conseguiram voltar?
- Você já esteve com algum deles?
- Só com o melhor amigo do meu pai, o Bicudo.
- O que ele diz a respeito?
- Tudo o que meu pai já havia dito. Ele acredita veementemente que meu pai tenha retornado a Katáris.
- E o que você acha sobre o desaparecimento dele?
- Começo a acreditar que ele esteja lá. As vezes tenho a impressão de que ele realmente se comunica comigo por telepatia.
- Lú... Por favor...
- É sério. Li vários livros sobre fenômenos para-normais e enigmas. Em todos os casos há testemunhas, e em alguns casos há dezenas de testemunhas oculares. Seriam todos os casos farsas? Como será possível?
- Eu só sei que só acredito vendo, Lú. Sou cética. Escuta... Por que não procuramos um dos sobreviventes? Gostaria muito de conversar com um deles.
- Vou falar com o Bicudo. Ele ainda deve manter contato. Vou ligar pra ele amanhã.
- Quem sabe se isso na acalma seus pesadelos?
No dia seguinte à noite, como prometera, Luciano ligou para a casa de Bicudo, com quem manteve longa conversa. Ao final dela, Marcos Antônio (verdadeiro nome de Bicudo) lhe passou o telefone do casal Alberto e Aline e também de Carlinhos.
- Perdi o contato com os outros. Tenho falado só com Aline e Alberto, mas consegui um telefone na lista de assinantes no nome de Carlos Beltrão Azevedo, que se não for um homônimo é o Carlinhos.
Antes de desligar, Bicudo me deixou um sonoro CUIDADO COM O QUE VOCÊ VAI FAZER. Liguei imediatamente para o suposto telefone de Carlinhos e atendeu uma voz feminina.
- Alô...
- Boa noite. Desculpe incomodar, mas é da casa do Carlinhos?
- É sim.
- É a esposa dele quem está falando?
- Não, sou irmã dele.
- Puxa vida... Não acredito. É a Carla?
- Sim... Mas quem é que está falando aí? Eu te conheço?
- Você conhece meu pai. Quem está falando é Luciano, filho do Lúcio.
Carla emudeceu. Havia anos que só tinha contato com o casal Israel e Luciene. Nunca mais tinha tido noticias de outro dos sobreviventes, por isso, ta logo se recobrou, se apressou por perguntar por Lúcio.
- Ele está desaparecido, Carla.
- Como, desaparecido?
- Você não sabia? Há anos que ele sumiu. Pensei que soubesse.
- Não. Uns estrangeiros mantiveram contato comigo e com meu irmão há algum tempo atrás para colher material pra mais uma matéria sobre o caso e nos perguntaram como faziam para acha-lo. Dissemos a eles que seu pai ainda morava na Barra da Tijuca. Depois o assédio cessou e não fiquei sabendo de mais nada.
- Bicudo desconfia que ele esteja em Katáris.
Carla emudeceu de novo.
- Seu irmão está em casa?
- Não. Ele está embarcado. Trabalha em uma plataforma da Petrobrás em Campos de Goytacazes.
- Você pode me passar o celular dele?
- O que você deseja com ele, Luciano? Se pretende ir procurar seu pai naquele lugar e conta com a ajuda do Carlinhos, esqueça. Meu irmão foi um dos que mais sofreu em Katáris por causa da perna que fraturou durante a queda.
- Não... Não pensei em procurar meu pai. Conheço a história do que vocês viveram lá. Pode ter certeza de que nunca tentaria chegar naquele local. Eu estou tentando somente entender melhor. Procurar pistas que me levem a ter certeza de que ele realmente foi abduzido novamente.
- Se eu fosse você, esqueceria tudo isso, mas se realmente quer correr o risco, a primeira coisa a ser feita é ir onde tudo começou. Vá a nossa antiga sala de aula no colégio Inspiração.
Carla desligou repentinamente sem sequer se despedir. O colégio ficava em Brás de Pina. Luciano pesquisou na internet e confirmou que continuava em atividade. Verificou ainda que a escola também funcionava à noite. Anotou o endereço e pôs dentro de sua carteira.
Na quarta-feira, conforme combinara com Rodrigo, passou em sua casa em Vargem Grande no final da tarde para lhe pegar. Juliana já estava dentro do Fiat Palio. Partiram em direção à comunidade de Rio das Pedras onde residia Clarisse, a empregada de Cristiane. Luciano adentrou a localidade com cautela, uma vez que a mídia deixava claro que a favela era dominada por milícia. Havia uma guerra declarada entre esses grupos armados na zona Oeste do Rio de Janeiro, deixando seus moradores tensos e amedrontados, tal era a violência desencadeada entre eles. Ao chegar em frente a casa de Clarisse, percebeu que ela e sua filha Bia já estavam arrumadas lhe aguardando do lado de fora. Beatriz sorriu para Rodrigo ao entrar no veiculo, mas sua mãe fez questão de se sentar entre eles no banco de trás. Luciano sorriu com escárnio e partiu.
- Onde vamos, afinal?
- Pedi a minha avó pra preparar um pequeno banquete pra nós. Vocês vão morrer de tanto comer. Ninguém cozinha melhor do que ela. Ela é mineira de Carangola.
- Sua avó por parte de mãe ou pai?
- Por parte de pai. Minha avó materna morreu antes de eu nascer. Antes de chegar lá, vamos dar uma paradinha em uma escola que fica no nosso trajeto.
- Escola... Que escola?
- Colégio Inspiração... Quero que conheçam onde começou o pesadelo de meu pai e de toda turma 1102.
Todos se entreolharam assustados. Luciano pegou a linha amarela e desembocou na av. Brasil. Minutos depois chegava a av. Lobo Júnior.
- Alguém sabe que avenida é essa? Não? Aqui meu pai e seus amigos foram soltos em pleno ar quando retornaram da Dimensão Sinistra.
Todos os passageiros tornaram a arregalar seus olhos. Aquilo tudo parecia um tanto macabro. Juliana parecia bem temerosa para quem se dizia cética. Luciano conferiu o papel que trazia o endereço anotado e logo em seguida estava estacionando seu carro na calçada em frente a escola. Tratava-se de um prédio de três andares, bonito, porém não muito espaçoso. Chegou até a portaria onde pediu para falar com o diretor.
- Ele não se encontra. De que se trata?
- Sou filho de um antigo aluno. Como faço pra falar com ele?
- Ele só atende com hora marcada.
- Mas que burocracia. Afinal de contas ele está ou não?
- Está, mas não pode atender.
- Você pode ao menos perguntar a ele se podemos conversar um minuto? Diga-lhe que sou filho de Lúcio Alves de Almeida.
- Aguarde um minuto.
O rapaz se levantou e se dirigiu a uma porta bem próxima da entrada principal da escola e retornou segundos depois acompanhado de um senhor bem vestido, aparentando uns sessenta anos de idade, alto e barrigudo. Olhou para todos ali, com certa curiosidade.
- Quem é o filho de Lúcio Alves de Almeida?
- Sou eu.
- Queiram entrar aqui, por favor.
Nos conduziu até sua sala, gesticulando para que nos sentássemos.
- Onde está seu pai?
- Era essa a pergunta que eu ia lhe fazer neste exato momento.
- E por que?
- Meu pai desapareceu sem deixar vestígios há dez anos atrás. O carro dele apareceu em um depósito público logo após o sumiço. Tenho motivos pra desconfiar que ele retornou pra Dimensão Sinistra, e acho que a porta de acesso fica bem aí em cima.
- Meu jovem, qual era o carro de seu pai?
- Um Apollo.
O velho pôs as mãos no rosto. Seu semblante mostrava preocupação. Apesar do aparelho de ar condicionado da sala estar ligado, ele começou a suar.
- Há mais ou menos uns dez anos atrás um homem esteve na escola fazendo perguntas a um funcionário que não trabalha mais aqui sobre a sala interditada da turma 1.102. Em seguida esta pessoa arrombou a sala e um estrondo foi ouvido. Os funcionários não o encontraram na escola após isso. Dias depois, vi um guincho da prefeitura rebocar um Apollo estacionado em frente ao colégio.
- Por que não avisou ninguém?
- Porque só agora as coisas se encaixam. Chegou a passar pela minha cabeça que alguém poderia ter sido sugado novamente naquele dia, mas eu nunca imaginei que fosse seu pai. Sinto muito. Se quiser, estou a disposição para ajudar em qualquer coisa.
- Pois vai. Me leve até a sala.
- Luciano, não...
O grito partiu de Juliana.
- Não vou deixar você ir lá. É muito perigoso.
- Também acho, Luciano. Aquela porta não deve ser aberta.
- Disse que ajudaria. Então faça.
- Lú... Por favor, não faça isso.
- Fique calma, Juliana. Não acho que algo vá acontecer. Muitas pessoas já estiveram lá e nada aconteceu.
- É verdade. Quando da ocasião do primeiro incidente, policiais varreram tudo à procura de pistas e esotéricos fizeram exames minuciosos no local sem constatar nada de sobre-humano. Até gente do exterior esteve lá documentado e filmando a sala vazia. Ainda assim, sinto algo de sobrenatural quando passo em frente a porta.
- Eu não vou lá de jeito nenhum.
- Calma, Clarisse. Só eu vou entrar. Vocês podem ficar do lado de fora, ok?
Assim foi. O diretor da escola destrancou a porta e a empurrou. Havia cheiro de mofo. A sala estava completamente vazia. Luciano aguardou alguns segundos olhando pra seu interior antes de adentra-la. Um calafrio lhe correu pela espinha quando deu o primeiro passo. Chegou até o centro da sala, olhou para o teto e depois girou o pescoço na direção dos outros, para dizer que não havia perigo. Estavam todos parados em frente à porta, olhando para Luciano com desconfiança quando se fez ouvir o tremendo estrondo tal qual uma explosão. Luciano, tremendo de pavor tornou a olhar para cima e constatou que o teto havia desaparecido. Um vórtice tempestivo tratou de suga-lo e arremessa-lo sem que nada pudesse fazer. A força do repuxo foi tão poderosa que terminou por arrancar as pessoas que observavam atônitas do corredor, enviando-as para o mesmo local que Luciano. Foram todos jogados ao ar livre, metros de distancia do chão. Luciano foi o primeiro a atingir o solo, desmaiando. Rodrigo, que tinha porte físico de lutador de Vale Tudo, conseguiu se segurar entre galhos de uma árvore e não se machucou. Juliana foi amortecida por uma planta de grande porte e somente torceu o braço esquerdo. Clarisse caiu de barriga pra cima sobre o chão gramado após ter sua queda suavizada por alguns galhos e quando se preparava para se levantar, recebeu o corpo de sua filha Beatriz, que bateu com a cabeça fortemente em suas costelas. Bia desmaiou automaticamente com o impacto. O golpe além de arrancar um urro de dor da empregada doméstica, deixou-a com luxações. Ainda assim, ao ver um corpo bater pesadamente contra o solo, ela conseguiu se arrastar alguns metros para socorrer o diretor do colégio que havia desabado a seu lado, vomitando e cuspindo sangue. Ela deu alguns tapas em seu rosto, para que reagisse, mas ele parecia estar em choque. Após alguns segundos de convulsões, ele parou de respirar. Clarisse então retornou para junto de sua filha e tentou reanima-la, mas a menina continuou desacordada. Sua respiração parecia normal, o que deixou sua mãe menos preocupada. Teve ódio de Luciano tão logo conseguiu raciocinar. Teve vontade de procura-lo por ali, mas preferiu continuar próxima de sua cria. De onde estava conseguiu ver Rodrigo descer do topo da árvore onde estava. Tentou gritar pra ele, mas não teve forças. A coluna cervical e as costelas doíam muito. Começou a chorar e soluçar, sendo ouvida por um homem de cor parda, totalmente encardido, de longa barba preta, vestindo trapos. Parecia um verdadeiro mendigo. Trazia consigo um cantil feito de osso e couro. Fez um gesto com o dedo na boca, que ela imediatamente entendeu como um pedido de silêncio.
- Se os carniceiros te escutam, é seu fim.
Em vista disso, ela engoliu o choro. O estranho negro então quebrou galhos de moitas diversas e tratou de esconder não somente mãe e filha, mas também a si próprio por entre as folhagens. Poucos minutos após, um ronco foi ouvido vindo de dentro da mata. Um animal esguio e medonho estava farejando algo, grunhindo como um porco. Ao avistar o cadáver do diretor do colégio Inspiração, passou a devora-lo com gana. Suas presas rasgavam a carne do homem, espalhando sangue entre as folhas.
- Não faça nenhum barulho ou estaremos mortos.
Ela estava petrificada de pavor. Outras duas criaturas da mesma raça apareceram para acabar de dilacerar o corpo inerte, até que praticamente só os ossos sobraram. O homem mantinha uma lança apontada para os animais que ele chamou de carniceiros, mas permaneceu completamente imóvel durante todo o tempo. Em sua cintura havia uma faca primitiva feita de lasca de pedra. Após se saciarem, os medonhos animais foram embora. Segundos depois, Rodrigo e Juliana apareceram, procurando os outros e se depararam com os restos mortais do diretor. Juliana berrou de espanto, sendo imediatamente censurada por Clarisse, que saia de trás da folhagem.
- Não gritem nem façam barulho por nada desse mundo. Há monstros terríveis nessa floresta. Foram eles que fizeram isso com este pobre homem.
- Quem é este negro com você?
- Não sei, mas ele me salvou a vida.
- Meu nome é Marcel. E vocês, quem são? Com certeza vieram parar aqui da mesma maneira que eu.
- Você... Você é o Marcel da turma 1.102?
- Sim... Como sabe disso?
- Conheço sua história. Li tudo o que foi documentado sobre o incidente em Katáris.
- Como sabe o nome deste lugar? O que foi documentado?
- Onde está o Lúcio?
- Lúcio? O Lúcio da minha turma da escola?
- Você parece meio perdido. É claro que falo dele.
- Não o vejo desde que caí neste lugar. Pra dizer a verdade, não vejo ninguém além do Animal desde que cheguei aqui.
- De que animal está falando?
- Do Eduardo Animal. Somos os únicos seres humanos de que temos noticia neste lugar.
- E onde ele está?
- Em nossa cabana aqui perto.
- Animal não é o cara que cometeu homicídio?
- Homicídio? Que história é essa?
- Pode nos levar até ele?
- Claro que sim.
- Primeiro vamos procurar o Luciano.
- Será que não é aquele ali?
Juliana correu para abraçar o namorado que parecia zonzo e desnorteado. Ele ouviu as vozes dos companheiros ao acordar e veio ao seu encontro.
- Lúcio, este é o Marcel...
- Marcel... Da Floresta Marcel?
- Sim. Você acredita nisso, cara?
- Mas como isso é possível? Ele foi um dos primeiros alunos a morrer, atacado por um animal no pescoço.
- Atacado por um animal no pescoço sim, morto não.
Era o próprio quem passou a explicar o que lhe ocorrera. Disse que foi arrastado pela floresta adentro, mas que Cadú, que os seguia, tirou a atenção do animal em Marcel ao gritar loucamente metros de distancia. O carniceiro vacilou por segundos, que foram o suficiente para tirar uma reação de Marcel. Ele percebeu uma saliência dentro de um tronco e se atirou pra dentro. Pela cavidade oca, conseguiu escalar até ficar fora do alcance da criatura. O animal ficou por ali aguardando até a manhã do dia seguinte. O ferimento no pescoço era superficial e como não havia bactérias em Katáris, cicatrizou rapidamente.
Puseram-se a seguir Marcel pela floresta até que chegaram a uma trilha. Luciano ouviu todo tipo de desaforos por parte de seus companheiros. Era culpa sua o fato de todos estarem ali. Andaram por mais quarenta minutos e então avistaram a grande cabana construída ao alto da maior e mais larga árvore dos arredores. A cabana era feita de ripas de madeira, galhos, troncos cortados ao meio, cipó, argila, folhagem e palha, entre outras coisas. Era muito bem construída e possuía degraus que lhe davam acesso pelo tronco. Em seu interior, alguns móveis podiam ser vistos, como mesas, cadeiras e camas. Animal dormia em uma delas quando chegamos. Levou um susto ao ouvir-nos falar. Sentando-se, passou a nos olhar fixamente, parecendo não acreditar no que via. Possuía uma vasta barba no rosto, apesar dos cabelos parecerem aparados grosseiramente. Pela janela que ficava ao seu lado, podiam ver uma bela cachoeira. Continuou ali parado sem dizer nada, olhando o grupo, até que Marcel quebrou o gelo.
- Animal, que história é essa de homicídio?
- Homicídio...? Quem são essas pessoas?
- Eles acabaram de chegar.
- Não sou estúpido... Calça jeans e camiseta ainda não são fabricadas por aqui.
- Não enrola e fala logo quem foi que você matou.
- Deixe de ser idiota. Nunca matei ninguém.
Luciano se meteu na conversa.
- Matou sim... Você degolou um colega de turma no deserto. Se não me falha a memória seu nome era Sérgio.
- Como pode saber disso?
- O que você parece não saber é que meu pai conseguiu retornar pra Terra.
- E quem é seu pai?
- Lúcio é meu pai.
- Desgraçado... O desgraçado conseguiu.
- Sim... E se você tivesse sido fiel, teria retornado com ele.
- E o que é que vocês fazem em Katáris?
- Procuramos por ele.
- Por Lúcio? Você não acabou de dizer que ele voltou pro planeta natal?
- Sim, mas há anos atrás, não sei por que motivo, retornou pra esta dimensão. Pelo visto você não poderá nos ajudar. Não faz idéia de onde esteja.
- Ele, não, mas se os outros ainda estiverem onde os deixamos, posso leva-los até os casais Álvaro e Elaine, Wesley e Ana Cláudia.
- Por que motivo iríamos confiar em você?
- Quero me redimir do que fiz, e se possível, saber de Lúcio como faço pra sair desse mundo maldito. Alguém tem noticias de minha família?
Todos se entreolharam, mas logo ficou claro que ninguém ali sabia algo sobre os parentes que Animal há muito deixara em seu planeta. Marcel o olhou com reprovação. Queria saber por que Eduardo nunca o tinha falado sobre o que aconteceu entre ele e Sérgio no deserto, mas preferiu não perguntar. Chamou os outros para se lavar no rio que se formava abaixo da queda d’água e se apressou em explica-los que seria necessário caçar imediatamente, caso quisessem jantar. Após o banho, confeccionou lanças para todos e adentraram a mata, mas somente Animal e Marcel conseguiram abater alguns animais com seus arcos de flecha. Quando acharam que seria o suficiente, retornaram para perto da cabana, onde apresentaram aos outros seu pomar particular. Tratava-se de um cercado de plantas e árvores frutíferas plantadas pela dupla anos atrás. Colheram várias delas, inclusive fruta rum.
- Sempre quis experimentar isso.
- Não coma dela agora ou não vai conseguir jantar. A ressaca é quase imediata.
Era Marcel advertindo Luciano. A janta foi uma mistura de carne assada no fogão a lenha com papa de frutas variadas. Alguns gostaram, outros tiveram náuseas. Animal os aconselhou a empurrar a comida, pois no dia seguinte iriam colocar o pé na estrada e precisariam do máximo de energia. A caminhada seria longa. Apesar de Eduardo parecer solicito, todo o grupo desconfiava dele. Estaria mesmo com boas intenções? Não havia outro jeito. Precisavam dele para chegar até os outros e saber como voltar pra casa. Só Animal sabia o caminho. Deveriam correr o risco de estar em sua companhia. Aparentava mais de quarenta anos de idade, estava magro e abatido, embora tivesse boa habilidade pra caçar. Marcel também aparentava mais idade do que realmente tinha, tão magro quanto Animal embora bem mais alto, andava encardido o tempo todo e exalava um odor nada agradável. Possuía mais agilidade que o companheiro e era também mais forte. Clarisse reclamava muito das costelas e da coluna. Juliana pediu-lhe pra levantar a camisa e todos puderam ver que havia uma grande marca esverdeada no local onde sua filha batera a cabeça. Bia parecia ser a mais assustada entre todos ali. Não imaginava passar por aquela circunstância e demorava a assimilar que aquilo de fato estava ocorrendo. Lembrava-se do momento que acordou no meio da floresta, carregada por Luciano, que seguia um homem de tanga segurando uma lança e aparentava ser um índio africano. Era muita loucura pra sua jovem cabeça. Jamais se ouvia sua voz, por isso todos ficaram espantados quando ela pediu ao grupo que permanecessem mais alguns dias ali até sua mãe se recuperar melhor. Luciano foi forçado a concordar. Apesar de Rodrigo ser sargento e Luciano cabo, desde o começo o filho de Lúcio parecia ter assumido a liderança entre os demais. Todos acatavam suas idéias e opiniões, apesar de ainda estarem possessos com ele. Quase uma semana depois, começaram a seguir uma outra trilha que começava atrás da cabana e por ela percorreram até que terminasse, frente a margem de um riacho, onde tomaram banho e exigiram a Marcel que este se lavasse. Foi a primeira vez que o viram entrar na água. Dois dias depois estavam diante de um cercado que era familiar somente a Eduardo. Naquele local, muitos anos atrás, haviam encontrado o mapa que mais tarde teria levado Lúcio a encontrar Harakit. Estranhamente, toda a vila encontrava-se habitada. Seu diâmetro também aumentara consideravelmente. Criaturas pequeninas e rosadas se movimentavam por entre o cercado e até fora dele. Eram organizadas e pareciam negociar produtos entre si. Couros de carniceiros e de outros animais eram vistos secando em varais, o que indicava que aquela raça não era inofensiva. Eram os Kwai. Pequenas criaturinhas desprovidas de pelos, com focinho de cachorro e orelhas de abano. Marcel e Animal já os conhecia da floresta e chegaram a praticar escambo com eles em algumas ocasiões, mas Eduardo não imaginava que ali fosse seu vilarejo. Talvez tivessem assumido o local depois que seus verdadeiros moradores desapareceram. Talvez fossem eles mesmos os donos do lugar, que retornaram quando acharam que era seguro. Ninguém sabia ao certo. Alguns anos atrás Animal ali estivera colhendo sementes para seu pomar, e o lugar ainda se encontrava desabitado. Os Kwai levaram esse nome porque é o som que imitem pela boca o tempo todo.
- Kwai, kwai, kwai....
Disse um deles a Rodrigo, parecendo interessado em sua blusa furada e um tanto rasgada. Animal se apressou em explicar.
- Ele quer trocar por algo. Troque por comida. Vamos precisar. Troque por tanta comida quanto puder. Faça o mesmo, Luciano. Estamos em pleno verão. Não vamos precisar de roupas tão cedo.
Assim foi feito. Estocaram o máximo de frutas, cereais e carne que puderam carregar e partiram rumo ao Pico dos Zumbis. Acamparam antes de começar a subir. A noite estava pra cair e preferiram fazer o percurso na manhã seguinte. Era mais seguro. Além disso, as mulheres reclamavam de exaustão o tempo todo, o que não parecia afetar muito os homens do grupo. Clarisse estranhou a ausência de insetos naquele planeta. Eles eram realmente raros e muitíssimo regionais. Isso era bom. Se além de tudo tivessem que conviver com pernilongos á noite, seria o fim. Naquela noite, Rodrigo se insinuou pela primeira vez para Beatriz e foi rispidamente advertido por Clarisse.
- Quero deixar bem claro pra você que não aceito aproximação sua ou de qualquer outro a minha filha. Ela é só uma menina, mas não está indefesa. Ela tem a mim. Fui clara?
- Tudo bem, Clarisse... Sem problema.
Clarisse tinha quase cinqüenta anos, loira, baixa e gordinha. Catarinense e filha de imigrantes alemães. Sua filha Beatriz, aos quatorze anos de idade, possuía corpo de sereia e apesar de ser a mais baixa do grupo, era linda. Já estava quase da altura de sua mãe. Foi ela quem acordou Clarisse quando Rodrigo jogou uma perna por cima de seu corpo enquanto todos dormiam uns perto dos outros. Demoraria até tentar algo com ela novamente. Sua mãe era um obstáculo praticamente intransponível. Beatriz se sentia atraída por ele, principalmente quando Rodrigo passou a andar de tanga como Marcel e Animal. Tinha um físico cultivado e Bia gostava daquilo, mas estava com medo por ser virgem e também respeitava muito sua mãe e sua opinião. Animal quase enlouqueceu dias antes, ao vê-la se despir para tomar banho na cascata próximo a sua cabana. Ele ficara escondido observando-a. Antes que amanhecesse estavam todos de pé prontos para continuar. Animal brincou com Marcel dizendo que Clarisse havia gostado dele.
- E aí, parceiro? Vai ou fica? Depois de tantos anos sem mulher, apareceu este bifão pra você.
- Obrigado, mas prefiro ficar mais vinte anos na seca.
- Há, há, há...
- Você está rindo por que? Não come ninguém há séculos. Era pra estar chorando, isso sim.
- Minha longa privação está pra terminar.
- O que é que você está dizendo? Não se meta com essa gente, está ouvindo? Como você mesmo disse, você está querendo se redimir.
Antes de anoitecer novamente, chegaram ao Povoado Zumbi. Aquelas criaturas pacificas olharam pra todos com desdém. Animal tentou reconhecer alguém entre eles, mas não conseguiu. Seu vilarejo havia aumentado tanto que já tomava todo o cume da montanha. Àquela altura, já não existia mais a Floresta Cadú, nem a localidade onde viviam as perigosíssimas aranhas gigantes que mataram Flávio e Mário. Caminharam horas por entre os zumbis amarelados até chegar até chegar ao final do pico, onde começaram a descer. Exaustos, acamparam durante dois dias. Durante a estadia no povoado, beberam e estocaram muita água, sabendo que mais a frente teriam problemas pra encontra-la, e assim foi até chegarem ao lago onde outrora Animal conheceu os Canibais Aquáticos. Como sua memória ainda estava fresca a respeito daqueles estranhos anfíbios, alertou a todos para que não saíssem do raso.
À caminho da Tribo dos Nacacos, o grupo foi emboscado por um casal de tigres dentes de sabre. Os dois enormes animais saíram de dentro da mata espessa e se posicionaram logo a sua frente, ameaçadores. Clarisse caiu de joelhos ao chão e começou a rezar em voz alta. Para surpresa de todos, Luciano puxou uma pistola 9mm de dentro do bolso da bermuda e fez dois disparos certeiros na cabeça do macho, que se encontrava ligeiramente mais à frente. O grande felino mudou suas feições bruscamente, mas não caiu de imediato. Tentou dar alguns passos e tombou em seguida. A fêmea pareceu não saber que atitude tomar. Lambeu o macho enquanto todos se afastavam, andando de costas, sem tirar os olhos dela. Quando perceberam que estavam fora de perigo, abordaram Luciano.
- O que você faz com isso aí dentro do bolso? O que mais escondeu de nós?
- Calma, Rodrigo. Isso é pra nossa segurança. Ajudou, não foi?
- O que mais tem aí dentro desses bolsos todos?
- Só algumas caixinhas de munição e duas granadas.
- Duas granadas...???
- Você roubou isso no quartel, cara?
- Não roubei. Peguei emprestado.
- Emprestado é o cacete... Isso é roubo. Se voltarmos, você vai ser preso, cara.
- Eis a questão... Se Voltarmos.
- Cara, você premeditou tudo isso... Você se preparou pra vir pra esse lugar e nos trouxe junto com você. Que espécie de amigo você é, cara?
- Não premeditei nada. Eu só me precavi para o caso do fenômeno ocorrer comigo como aconteceu com meu pai. Sabia que havia uma pequena chance de ser sugado pra este lugar, embora não acreditasse de fato que fosse ocorrer, então trouxe esta arma, munição e granadas. Pensei que vocês fossem estar fora do raio de tração do efeito espiral no corredor, mas estava enganado. Nunca arriscaria a vida de pessoas que gosto. Nunca. Estou muito arrependido de tudo e estou tentando consertar. Me perdoem.
Todos fizeram silencio. Sabiam que Luciano estava sendo sincero. Restava agora seguir Animal e ver no que daria. Os olhos de Eduardo faiscaram ao ver a pistola. O que se passava em sua cabeça? Já estavam em Katáris havia seis meses e alguns dias quando chegaram a Tribo dos Nacacos. Animal sabia que vovó provavelmente não vivia mais. Os filhotes os cercaram, muito curiosos, mas logo se dispersaram a golpes de gravetos dados por um ancião. Animal o reconheceu. Era um dos Nacacos mais próximos do grupo de Lúcio quando da expedição original. Eduardo deu alguns tapinhas em seu ombro. Ele reagiu fazendo o mesmo. Acabou lhes conduzindo até sua barraca, onde estavam outros dois Nacacos mais jovens, que prepararam uma papa esverdeada que foi consumida avidamente por todos ali presentes. Permaneceram na aldeia mais de duas semanas. Era seguro e tinham hospitalidade. O grupo ficou muito amigo dos símios e Clarisse chorou quando tiveram de ir embora. Parece que previa o que estava pra lhe acontecer naquele mesmo dia á noite. Todos dormiam no meio do mato em torno de uma fogueira quando um grito de Clarisse os acordou. Tudo o que puderam ver foi ela ser arrastada rapidamente por entre as árvores, mordida por um tigre da raça de Puma e Juma na altura do ombro esquerdo. Tentaram perseguir o animal, seguindo os gritos desesperados da empregada, Luciano já de arma em punho. Foi em vão. Os gritos se cessaram e ela nunca mais foi vista. Beatriz ficou em estado de choque durante toda a noite e a manhã seguinte. Quando se recobrou, presenteou Luciano com tremendo e súbito tapa na cara. Ele não reclamou. Nem podia. Bia passou a ser reconfortada por Rodrigo e o que não podia deixar de ser ocorreu. Em meio a fortes abraços de consolo, surgiu um beijo. Os dois passaram a se relacionar. A noite, por alguns minutos, Luciano e Juliana saiam de perto do restante do grupo para ficar a sós. Quando voltavam, o outro casal fazia o mesmo.
- Lú... Será que aquele animal era a fêmea que deixamos viúva dias atrás?
- E veio se vingar? Acho pouco provável.
- Ela pode ter seguido nosso cheiro.
- Acho a hipótese um tanto absurda.
- Eu achei que a Bia ia enlouquecer.
- Ela está esquecendo se entregando de corpo e alma pro Rodrigo.
- Você não o achou um pouco oportunista?
- Sim. Ele se aproveitou da situação. Deu o ombro quando ela mais precisava.
- Será que ela faz alguma coisa pra evitar concepção?
- Duvido. Pelo que sei até alguns dias atrás era virgem. Por que teria trago anticoncepcional ou camisinha?
- Deixe de ser lesado... Estou falando de fazer como nós dois... Coito interrompido.
- Ah, sim... Talvez.
- O que você faria se eu engravidasse neste lugar?
- Aguardaria nosso filho nascer e me estabeleceria de vez em alguma dessas aldeias, como fizeram alguns amigos de meu pai.
- Você está louco... Eu não vou terminar meus dias nesse lugar. Principalmente com uma criança.
- Juliana, você tem que começar a se acostumar com a possibilidade de nunca mais voltarmos.
- Seu pai conseguiu. Vamos conseguir também.
- Espero que esteja certa. De qualquer maneira, acho que já estamos perto de saber. Animal falou que dentro de algumas semanas estaremos chegando na Colina dos Traquinas.
No dia seguinte, quando já estava para anoitecer, pararam diante do famoso despenhadeiro que antecedia o campo onde Lúcio abateu o morcego gigante albino. Pelas histórias que Luciano leu e ouviu não dava pra ter noção do diâmetro do problema. Era bem mais alto do que ele imaginou. Ninguém ali estava com coragem de saltar, nem mesmo o único ali presente que já o havia feito antes, ou seja, Eduardo Animal. Luciano entendeu que deveria ser ele a tomar tal atitude. Lembrou-se que seu pai contou que saltou sem olhar pra baixo e ocupou o pensamento em outra coisa. Pensou em um parque de diversões, tapou os olhos com as mãos e se jogou de pé. A viajem foi mais curta do que ele imaginou. Só depois que retornou a superfície pensou que poderia estar morto naquele momento. E se o nível do rio tivesse diminuído com o passar dos anos? Já quase chegando a margem do rio, percebeu um reboliço dentro da água e se desesperou. A uma velocidade espantosa para um animal de grande porte, uma espécie de lagarto aquático que lembrava um crocodilo estava alguns metros atrás dele. Nadou mais e mais rápido e conseguiu evitar o pior por alguns segundos. Já em terra firme, sacou a pistola instintivamente e tratou de destrava-la. Olhou pra cima. Seus amigos gritavam algo que não conseguia entender. Olhou apressado pra trás, mas a principio não conseguiu enxergar o grande animal que se aproximava, pois a noite já vinha caindo e seu pelo era castanho escuro. Quando o preguiça gigante já estava bem perto, Luciano pode vê-lo e passou a disparar contra ele, até que ficou sem balas. Daquela distancia tinha certeza de que não havia errado um só tiro, mas o monstro continuava avançando, até que parou diante de Luciano e com um tapa o arremessou três metros de distancia. Ele caiu ferido sobre o solo e sem perder um segundo, meteu sua mão direita dentro de um dos vários bolsos de sua bermuda e tirou um pente de munição. Para sua surpresa, não chegou a usa-lo, pois num salto espantoso, o réptil que a pouco quase o devorou dentro d’água abocanhou a cabeça do megatério, quebrando seu pescoço e puxando-o para dentro do rio, onde certamente saciou a fome. Luciano passou a mão no rosto, que estava muito quente e percebeu que estava sangrando. Achou que iria desmaiar a qualquer momento e começou a se arrastar pra longe da margem. Sabia que podia se tornar a próxima vitima do crocodilo. Instantes depois, desfaleceu. Pela manhã, Animal olhou toda a extensão do rio a procura do tal réptil, mas não conseguiu vê-lo. Chegou a conclusão que não estava mais por ali. Para ter certeza, jogou um toco seco lá embaixo. Não houve nenhuma reação. Juliana percebeu sua intenção e se dirigiu a ele.
- Está pensando em pular?
- Não tem outro jeito. Voar é que não podemos.
- Aquela aberração está lá em algum lugar.
- Não está não. A água é cristalina. Daria para vê-lo. Você viu o tamanho do bicho que ele comeu. Não vai querer comer mais nada por dias. Até logo. Espero vocês lá embaixo.
Juliana não acreditou no que seus olhos viam. O louco realmente saltou. Sem maiores problemas, chegou do outro lado do rio e correu para socorrer Luciano. Juliana ficou mais aliviada quando viu Eduardo ajudando seu namorado. Percebeu que Rodrigo pegava Bia no colo, contra a sua vontade, e apesar dela se debater tanto na tentativa de se livrar do aperto dele, viu, espantada, o amigo saltar. Seu medo se tornou real quando olhou pra trás e viu Marcel empurrar-lhe, jogando-se em seguida.
- Como ele está?
Era Juliana, toda molhada e tremendo de frio quem perguntava a Eduardo o estado do namorado.
- Respirando, porém, vivo.
- Que sangue é esse?
- O monstro feriu ele na têmpora. Luciano deu sorte. Uma pancada daquela fratura um crânio brincando, o que não foi o caso dele. Levou alguns cortes e vai dormir por mais algum tempo.
- Mas isso pode infeccionar.
- Você não está na terra, benzinho. Não há vírus nem bactéria neste lugar. Ele vai ficar bem dentro de pouco tempo. O cérebro deu uma chacoalhada, mas vai sarar. Sabe o que é mais incrível? O pai dele abateu um morcegão neste exato local há anos atrás. Queria que vocês tivessem visto aquilo. Foi realmente incrível.
Acamparam ali para que Luciano pudesse se recuperar. Horas depois, ele acordou reclamando de dor de cabeça e no pescoço e perguntou por sua arma. Juliana procurou em seus bolsos, mas só encontrou um carregador e nem mesmo as granadas estavam mais com ele. Se desesperou.
- Foi ele... Foi o desgraçado do Eduardo. Ele pegou minha arma e as granadas, além dos outros cartuchos.
- Calma. Você não pode se estressar agora. Tem que relaxar. No momento certo, vamos dar um jeito nisso.
- Ele só pode ter guardado naquela mochila improvisada de couro animal que está com ele.
- Fique quieto e descanse. Não ficarão com ele muito tempo.
Porém, Animal, malandramente, dormiu abraçado à sua mochila, atitude que, para Luciano, provava que fora realmente ele quem furtara suas coisas. Preferiu esperar estar totalmente recuperado para tomar dele o que lhe pertencia. Reiniciaram sua caminhada rumo a Colina dos Traquinas. Agora, a aldeia dos pequeninos já não lhes parecia um sonho distante. Rodrigo olhou pra seu relógio, que mostrava a data. Era dia dezesseis de setembro de 2009, mas só chegaram ao pé da montanha em vinte e dois de setembro.
- Aí está... É ela. É só subir a montanha.
Menos de uma hora depois de começada a escalada, Traquinas armados de lanças desceram de armas e ao perceber que se tratavam de seres humanos, passaram a escolta-los durante todo o trajeto até a aldeia. Juliana sorria. Estava esperançosa ao extremo. O coração de Luciano disparou ao adentrar aquele lugar fantástico. De longe, avistou uma mulher de meia idade, gorda, que carregava lenha em baixo do braço. Ela ainda não os havia visto. Luciano correu ao seu encontro, sendo seguido pelos outros. Bruscamente, puxou-a pelo braço, fazendo largar toda a madeira que carregava.
- Senhora... Pode nos ajudar? Estou procurando meu pai.
Elaine fitou o grupo, não acreditando no que seus olhos lhe mostravam. Ao reconhecer Marcel e Animal, caiu pesadamente ao chão, desmaiada. O marido dela, Álvaro, que assistiu tudo de longe, se aproximou de arco e flecha na mão, pronto para alvejar qualquer um deles.
- Afastem-se dela. Quem são vocês?
- Não está me reconhecendo, velho amigo?
Era Animal quem se diria a ele e num rápido reflexo sacou a pistola de dentro de sua tanga, já com uma bala na agulha, apontando-a para a cabeça de Álvaro. Para sua surpresa, Marcel, que se encontrava a seu lado, lhe aplicou uma gravata e segurou seu braço pra cima. Um tiro foi disparado e o projétil acertou um tronco de arvore.
- Largue.
- Logo você... Que traição é essa.
- A traição partiu de você e não de mim. Solte a arma, Eduardo, antes que Álvaro dispare a flecha.
Ele obedeceu. Sabia que não demoraria muito para ser executado se não largasse a pistola. Marcel pegou-a e a devolveu ao dono. Animal caiu de joelhos na grama e Álvaro relaxou os braços.
- Você é o Marcel? Pensamos que tivesse morrido.
- Eu sou meio duro na queda.
- Este rapaz é filho de Lúcio. Você sabe de seu paradeiro?
- Filho de Lúcio... Meu Deus!!! Claro que sei. Está vindo em nossa direção.
Todos olharam na direção em que Álvaro apontou. Realmente vinha Lúcio de arco atravessado no peito e segurando pelo menos cinco flechas com a mão esquerda. Atrás dele, sua filha Vivi, Ana Cláudia e Wesley Junior. Todos foram alertados pelo som do disparo da arma de fogo. Elaine começou a recobrar os sentidos e foi levantada pelos filhos Vitor e Milena que também haviam corrido pro local. Eles já eram dois adolescentes.
- Lúcio, lhe apresento dois amigos que voltaram do mundo dos mortos. Marcel e Animal.
- Que loucura é essa, Álvaro? São eles mesmo?
- Em pele e osso. Eduardo, como sempre, aprontando as suas. O tiro que vocês ouviram foi dado por ele, que por sua vez foi desarmado pelo Marcel.
- E os outros, quem são?
- Não me reconhece?
Ao dizer isso, Luciano, se aproximou de Lúcio, que só percebeu que se tratava de seu filho ao analisar sua mente. Abraçou-o com toda a sua força, chegando a deixar o rapaz sem ar. Os dois choraram copiosamente.
- Não era pra ter vindo pra Katáris. De jeito algum era pra ter vindo. Como conseguiram chegar até aqui?
- Tive pesadelos horríveis com o senhor. Captei muito sofrimento e dor e precisava de alguma maneira saber o que estava lhe acontecendo, mas não acreditei realmente que pudesse vir para aqui.
- Estamos todos bem. Não há dor ou sofrimento, pelo menos em nosso povoado. Mas me responda de que maneira chegaram até esta dimensão.
- Da mesma maneira que você. O elo de entrada foi a sala de aula. Pai... Como fazemos pra voltar para casa?
- Não fazemos...
- Que quer dizer?
- Desenvolvi alguns poderes naturais dos Maleks, mas não sei criar o efeito espiral. Na verdade, venho tentando há anos, sem sucesso algum. Não faço a menor idéia de como isso é possível.
- E os Maleks, não poderiam ajudar?
- Talvez. Não tenho contato com eles há muitos anos.
- Pai, precisamos encontra-los. Não podemos ficar presos aqui pra sempre. Essa é minha namorada, Juliana. O casal é Rodrigo e Beatriz. Perdemos a mãe dela no trajeto. Um felino enorme a levou.
- Estou admirado de só terem perdido ela.
- Na verdade o diretor do colégio também faleceu. Foi logo na queda.
- Entendo. Sinto muito. Vamos entrar na minha cabana. Temos muito sobre o que falar.
- O que faremos com o Eduardo?
- Amarrem esse safado.
Durante horas e horas conversaram a respeito de tudo. Quando anoiteceu, Lúcio deixou três Traquinas vigiando Animal, que estava amarrado a uma árvore com cipó. Ele recebia água e comida. O grupo se sentou em volta de uma grande fogueira e continuou a fazer um balanço de suas vidas até ali. Ficou combinado que no mês seguinte iriam de encontro aos Homens Leopardo. Lúcio passaria em Savana Paradiso para pegar Moreno e alguns de seus Bóraxes para garantir a segurança da expedição. Nos dias que se seguiram, Luciano e Juliana ganharam uma cabana só para si assim como Rodrigo e Beatriz. A pouca idade de Bia gerou comentários perniciosos entre Ana Claúdia e Elaine. Marcel ficou hospedado na casa de Lúcio. O líder queria seu grande amigo, que considerara morto durante tantos anos, perto de si. Luciano todos os dias ia caçar com o pai e os outros. Traziam animais de portes diversos, sempre auxiliados bom um bando de Traquinas. Na volta de uma dessas caçadas, Luciano puxou assunto.
- Pai... Se você não domina o efeito espiral, e portanto não o acionou para que eu viesse pra esta dimensão, quem o fez, já que Harakit e Kolosh estão mortos, como o senhor mesmo disse?
- Não sei exatamente como o efeito espiral funciona, Luciano. Parece ser uma espécie de encantamento de longa duração. Não entendo como ele é acionado. Espero que meus amigos Homens Leopardo possam me explicar.
- Outra coisa que não entendo é como pode minha irmã ter herdado seus poderes, quando na realidade eles eram de um Málek.
- Somos dois a não entender. Parece que sua telepatia e telecinésia estão em meu DNA. Acho que se tornou hereditário. O que mais me impressiona é que as habilidades de Vivi estão crescendo assustadoramente. Dentro de alguns anos ela vai me superar. Já consegue erguer quase tanto peso quanto eu próprio.
- Você nunca mais sonhou com Kolosh ou o pai dele?
- Nunca.
- Existe alguma chance de um deles não ter morrido?
- Nenhuma. Tiramos a pulsação de Harakit e não havia batimentos cardíacos. Quanto a seu filho Kolosh, vimos ele ser mastigado por um imenso animal pré-histórico.
- Então acho que só seus amigos felinos podem nos ajudar.
- Acho que talvez nem eles. Já tentei isso uma vez. O que você precisa saber é que há como ser feliz em Katáris, caso não tenham êxito em retornar pras suas casas.
Com a caravana formada e equipada com os mais variados tipos de armas primitivas, com exceção da pistola automática de Luciano carregava consigo, partiram. Lúcio avisou a Animal que se fizesse corpo mole tomaria chibatadas de gravetos nas pernas. Tinha os braços amarrados por cipós e reclamava do tratamento áspero o tempo inteiro. Ninguém teve pena dele, a não ser Marcel, que preferiu fingir não ouvir as súplicas. Dias e dias após, viajando sem incidentes por motivo do grande extensão do grupo armado, chegaram ao paradisíaco lar de Moreno, Josilene e filhas. Jade, a filha mais velha puxou a cor e os olhos da mãe. Era bem clara, olhos azuis marcantes, loira e muito bonita. Tinha se tornado uma linda adolescente. Sua irmã era morena como o pai, mais simpática e sorridente, cabelos castanhos claros compridos e não menos bela. Aparentava ter a mesma idade de Beatriz contra uns dezessete anos da irmã. As duas meninas andavam pela aldeia vestidas somente na parte baixa do corpo. Não tiveram reação de se esconder ao nos ver, mas logo foram enxotadas para dentro de casa pelo pai que as mandou cobrir os seios. Bia ficou visivelmente com ciúmes de Rodrigo, que tentou aparentar indiferença. Vitor, filho de Elaine, ficou tenso e excitado ao ver Jade. Há tempos nutria paixão pela colega, que só o queria como amigo. Ao deixar a cabana de seus pais, cumprimentou-o e não pode deixar de perceber o quanto cresceu no espaço de tempo em que não se viram. Estranhou a mudança de seu corpo e sua curiosidade deixou Vitor feliz. Estaria ficando interessada por ele? Esperava que sim, afinal de contas, não havia muitas opções pra ela naquele lugar. Josilene franziu o cenho quando percebeu caras novas, mas reconheceu imediatamente Animal ao vê-lo. Olhou para Moreno, que repreendeu Lúcio.
- O que esse assassino desgraçado faz aqui na minha aldeia?
- Calma, velho amigo. Trouxe-o por não saber o que fazer com ele. Não podia deixa-lo amarrado na árvore onde estava até retornarmos.
- Por que não o atirou aos animais? Pensei que isto estivesse morto há anos.
- E este aqui, também quer atirar aos animais?
Lúcio apontou para Marcel.
- Meu Deus... Não acredito. É o Marcel? É ele mesmo, Lúcio?
Dizendo isso, abraçou-o forte a convidou todos para se sentar em volta da fogueira para comer a refeição que estava para ficar pronta.
- Quem são os outros?
- Acredite se quiser, aquele abraço a namorada Juliana é meu filho Luciano. O outro casal é Rodrigo e Beatriz. Todos chegaram da Terra via Colégio Inspiração há um ano atrás e estamos tentando nos virar para manda-los de volta pra casa. Alguma sugestão?
- Que loucura... Sabe que não faço a menor idéia.
- Pensei em contar com tua ajuda pra chegar a aldeia dos Homens Leopardo. O que você me diz? Se estiver muito ocupado, entenderei perfeitamente.
- Nunca me deixou na mão, amigo. Como poderia te negar. Te devemos muito. Sempre vou reconhecer.
- Eu quem devo a vocês. Não teria conseguido nada sem meus amigos.
- Bom... Eles já estão aqui há um ano. Não vai haver problema se permaneceram mais alguns meses. Estou em tempo de colheita. Há muito trabalho a fazer e certamente vocês me ajudarão. Depois disso, colocaremos o pé no barro mais uma vez, e quem sabe, o impossível não acontece mais uma vez. Com você no comando eu acredito em qualquer coisa, Lúcio.
Wesley, o mais velho dos humanos nascidos em Katáris e filho adotivo de Lúcio não tirava os olhos de Jade e isso estava irritando tremendamente Vitor, mas parecia agrada-la. Cansado do descaramento de seu melhor amigo, sussurrou ao ouvido da irmã Milena o que estava ocorrendo. Há dois anos que o casal vinha se relacionando. Ela, que era de atitude, da mesma faixa etária de Lorena, gorduchinha, porém sexy e de rosto muito bonito, levantou-se e deu um sonoro tapa na cara de Júnior. Os adultos, que conversavam, fizeram silêncio e passaram a observa-los, sem entender nada. Milena retirou-se chorando. Wesley ficou com uma bochecha vermelha de dor e a outra vermelha de vergonha, enquanto Jade somente sorria. Conversaram durante todo o resto do dia, a noite toda e por parte da manhã do dia seguinte, até que, exaustos, dormiram em torno da brasa. Quando Milena acordou, tratou de chamar Wesley pra uma conversa.
- E aí, você vai negar que ficou encarando a Jade?
- Não vou negar não.
- Então é cara de pau, mesmo... Assume na minha cara.
- O que é que você quer? Namoramos de beijinho na boca há dois anos e nada.
- Olha só o que você ta falando. Eu ainda sou muito nova pra isso.
- Então está bem. A Jade é mais velha. Já está na idade.
- Wesley... Por que está fazendo isso comigo? Por que está me magoando desse jeito? Eu te amo.
- Se ama, então por que não quer nada? Eu já tenho dezoito anos e ainda sou virgem.
- Vou falar com minha tia Ana e ela vai te dar uma bronca.
- Se você fizer isso eu termino tudo. E agora... Ta chorando... Eu não te entendo mesmo.
- Você acha que a Jade vai se deitar com você sem mais nem menos?
- E por que não? Ela não tem ninguém.
- Ela tem o meu irmão.
- Você sabe que ela nunca gostou dele.
- As coisas mudam. Agora ele já é homem. Vi a maneira como olhou pra ele quando chegamos na savana.
- Está mentindo.
- Não estou, não. Espere mais um pouco por mim. Eu vou perder o medo logo... Prometo.
Milena se aproximou dele e logo os dois tinham os lábios colados. Do outro lado da savana, debruçados sobre o chiqueiro onde Moreno criava enormes “javalis” para o abate, Vitor e Jade conversavam. A filha mais velha de Josilene tentava disfarçar ao olhar pro braços e peito do amigo. Tentava entender como a natureza podia ter avançado daquela maneira. A cada minuto que passava, seu interesse por ele aumentava. Estava gostando até da voz do rapaz, que não era mais de criança. Não queria de maneira nenhuma que ele percebesse. Era orgulhosa demais. Mas como poderia obter uma reação mais intima por parte do filho de Álvaro se não lhe permitisse entender que estava accecível? Sem saber como proceder, teve uma atitude puramente instintiva. Segurou o rosto do rapaz com as duas mãos e deu-lhe um beijo que durou minutos. Ao se desgrudarem, se olharam por alguns segundos e voltaram a se beijar intensamente. Nos dias que se seguiram não se desgrudaram por um só minuto. Milena ficou feliz e aliviada ao ver que os dois haviam se entendido. Menos de uma semana depois do primeiro contato, os dois tiveram sua primeira experiência sexual no mato e no dia seguinte, mal podiam esperar pela oportunidade de repetir. Estavam ansiosos e seus pensamentos acabaram sendo interceptados pela única pessoa no vilarejo que possui poderes telepáticos. Lúcio se aproximou do casal que se encontrava num canto isolado, enconstado em uma cerca e os advertiu.
- Cuidado com o que estão fazendo. Sexo exige certos cuidados. Procurem conversar com seus pais sobre como proceder. Criar bebês em Katáris pode ser algo muito complicado, principalmente para jovens.
Os dois, que sorriam antes da intervenção de Lúcio, ficaram constrangidos e assustados, mas sabiam que ele tinha razão. Porém, como se abrir com os pais? Qual seria sua reação? Provavelmente os impediriam de voltar a se ver, e tudo que eles queriam naquele momento era continuar aproveitando a forte paixão que havia invadido suas vidas. Neste caso, foram pedir conselhos a Luciano e Juliana. Pareciam ser um casal experiente e talvez guardassem segredo.
- Vocês poderiam nos ajudar?
- Ajudar como, Vitor?
- Eu precisava saber algumas coisas, mas queria que guardassem segredo absoluto.
- Mas que mistério... Tudo bem. Tem nossa palavra. Do que se trata?
- Eu e Jade... Sabe como é que é... Nós... Como posso dizer...?
- Ah... Entendi. Vocês querem... Transar?
- Isso mesmo. Seu pai disse que ela pode engravidar. Como podemos evitar?
Após meia hora de conselhos e sugestões, Luciano desejou boa sorte ao recente casal e se afastou com Juliana sorrindo. Os dois se entreolharam e adentraram o mato, onde fizeram amor pela segunda vez, tomando os devidos cuidados. Se por um lado este casal havia descoberto o prazer do sexo, por outro lado, o casal Wesley e Milena continuavam sem se entender neste quesito. Júnior não aceitava a privação. Agora que percebera a empatia entre Vitor e Jade, via seu sonho de perder a virgindade mais distante e descontava sua ira na namorada, pessoa que considerava responsável por tudo o que vinha passando.
- Eu quero uma data. Uma certeza. Quanto tempo vou ficar nessa dúvida? Aqueles dois já devem estar transando e eu aqui nessa secura.
- Eu já te falei que ainda tenho medo. Deixa acontecer naturalmente.
- Naturalmente... Sei... Vou ser naturalmente virgem pra sempre, isso sim.
Wesley Júnior era magrelo, alto, narigudo e feioso. Parecia muito com o pai falecido. A namorada dele era sisuda, gordinha, porém bonita. Aquele impasse duraria ainda muito tempo. Viviane exibia, ali perto, seus poderes telecinéticos para Rodrigo e Beatriz, que aplaudiam, gerando sorrisos na menina. Vivi era pura simpatia e charme. O auge para ela foi ter conhecido seu meio-irmão Luciano, de quem seu pai tanto falara. Ficou feliz também por ter conhecido gente nova. Não achou que fosse ter essa oportunidade em Katáris. Teve uma empatia instantânea por Bia e não desgrudava dela, o que começava a incomodar Rodrigo que contava com privacidade para ficar mais à vontade com a namorada. Ainda assim, não reclamou nem fez comentários.
A colheita terminou bem antes do previsto, graças à ajuda inesperada do grupo de visitantes. Após terminar os trabalhos, Lúcio fez nova reunião com todos ali presentes e explicou que começariam uma longa jornada no dia seguinte pela manhã. Deu conselhos a todos e deixou claro que o pior trecho que teriam de transpor seria provavelmente o deserto. Avisou também que ao ouvir o grito do grande lagarto, deveriam imediatamente escalar árvores próximas, por não havia como abate-lo sem gerar perdas consideráveis. Depois da conversa que durou horas, foram dormir e ao acordarem, pegaram uma trilha, seguidos por um exército de Bóraxes e Traquinas. Ainda naquele dia, passaram pelos Basilíscos, que como sempre, abriam e fechavam seus radares ao perceber a presença de estranhos. Alguns dias depois, passaram pelo território do grande lagarto, e apesar da tensão entre eles, não viram nem ouviram o animal. Mais de uma semana depois, avistaram um grande descampado. Ao passar por ele, Rodrigo sofreu um corte profundo no pé direito e passou a ser carregado por um Bóraxe.
- Vocês viram? O que me cortou foi um puta caco de vidro. De onde veio?
- Aquele caco de vidro pertenceu a uma redoma que destruímos anos atrás. Ela era a maior e mais fedorenta prisão que já na vida. Estamos próximos da Tribo dos Homens-Peixe. São velhos conhecidos nossos. Passaremos por lá pra descansar alguns dias.
Horas depois o grupo chegava ao tal lugar, repleto de poças d’água térmicas. Fizeram companhia aos anfíbios por quase duas semanas. Era difícil deixar aquele local, principalmente sabendo que a próxima localidade era o oposto dali. Se sentiam em verdadeiras piscinas de hidromassagem, mas tinham de ir pro deserto. Encheram todos os cantis, reservando o máximo de água possível e partiram. Poucos dias depois, perceberam que o deserto já não estava distante, pois o solo da floresta onde estavam começou a ficar arenoso. Era resultado das intensas tempestades de areia que afligiam aquele lugar. Eles teriam de encarar três delas enquanto avançavam o deserto. Foi um sufoco pelo qual conseguiram passar, graças aos fortes Bóraxes, que pareciam não ser afetados pelos escaldantes areias. Quando chegaram ao oásis, Rodrigo olhou pra seu relógio, que ainda possuía bateria. Era vinte e um de dezembro de 2010.
- Este oásis será nosso presente de natal.
Contrariando Lúcio, que pretendia seguir o mais rápido possível, acabaram permanecendo por ali mais de dois meses. Os jovens curtiram aquele lugar como se fosse um parque de diversões. Foi ali também que ocorreu a tão esperada transa de Wesley e Milena, naturalmente, como era o desejo dela. Este ato não passou despercebido pelo líder do grupo, e assim como surpreendera Vitor e Jade, o fizera com eles. Era necessário. Lúcio lhes disse como proceder. Os dois prometeram tomar os devidos cuidados e pediram para que não dissesse nada aos outros. Lúcio guardou segredo como sempre foi de seu feitio. A decisão de ir embora dali surgiu e foi apoiada por todo o bando depois que um terrível incidente ocorreu. Beatriz pisou por acidente em um pequeno animal espinhoso que estava escondido em baixo de vasta folhagem e adoeceu. A pobre menina agonizou com vômitos, vertigens e delírios por dias sem que ninguém pudesse fazer nada, até que silenciou. Katáris havia tomado a vida de mãe e filha. Rodrigo ficou inconsolável. Começou a dizer que não queria continuar sem ela e teve de ser conformado e convencido pelos amigos. Após o enterro, todo o grupo partiu em direção ao Rochedo dos Lagartos. Foram dias de tristeza e frustração, até que foram abordados pelo Povo Lagarto, que possuía um novo rei. Assim como ocorrera com o antigo soberano, Lúcio ficou amigo do novo rei lagarto. Dias se passaram até que começou a temporada de chuva e Shrink convidou o novo amigo para caçar o Drak. Lúcio nunca viu tantos daqueles animais. Abateram muitos deles, que logo descobriram que era o prato preferido daquele povo de guerreiros réptilescos. Um verdadeiro banquete foi servido e após ele, Lúcio e seu povo se despediu dos amigos lagartos para seguir viagem. Estavam muito próximos dos Máleks e isso o deixou ansioso. Ansiedade que se tornou desespero e frustração ao adentrar a aldeia que se encontrava desabitada.
- O que foi que aconteceu? Será que eles se mudaram, Lúcio?
- Não, Álvaro. Teriam levado seus pertences. Veja... Abandonaram tudo o que tinham. Parecem ter fugido de algo.
- Pode ter sido um ataque do grande lagarto.
- Não. Teriam retornado pra sua vila depois, o que não ocorreu. Algo os atacou e chegou a destruir algumas residências.
- E agora, o que faremos?
- Não sei. Estou aberto a idéias.
- Os Bóraxes estão revirando toda a vila a procura de alguém ou de alguma pista.
- Eu sei, mas alguma coisa me diz que é no castelo de Harakit que vamos descobrir o que se passou aqui.
- No castelo? Mas por que? Harakit e o filho estão decisivamente mortos, você mesmo disse isso, lembra?
- Sim... Não acredito que algum deles tenha sobrevivido, mas algo nos aguarda lá, isso eu posso sentir.
- Lúcio... Kolosh pode ter deixado um filho, assim como ocorreu com Harakit.
- Não. Eu saberia, pode ter certeza. É outra coisa. Algo está emanando de lá. Acho que conforme nos aproximarmos, ficará mais claro pra mim. Não vamos perder mais tempo aqui. Temos de descobrir que ameaça está se formando agora. Seja lá o que for, não tem boas intenções pra nós.
A medida que seguiam seu curso, Lorena começou a se aproximar de Rodrigo e ao chegar ao Parque Aquático, todos puderam ver os dois se beijar. A filha de Moreno aquela era uma plena mulher. Josilene ficou preocupada e tratou de advertir o marido sobre os dois.
- Não estou gostando nada disso. Nossas duas filhas estão namorando. É melhor você ir falar com esse rapaz.
- E dizer o que? Não transe com minha filha? Vá dizer você, Josi.
- Moreno... Você não percebe como a coisa é séria? Quer criar netos neste lugar?
- Mas claro que sim. Daqui a cem anos seremos uma plena colônia.
- Enlouqueceu...
- Claro que não enlouqueci. Essa terra é a nossa terra agora, Josi. É claro que não quero que minhas filhas engravidem tão cedo, mas a natureza tem de seguir seu rumo. Nossas filhas vão se “casar” assim como nós fizemos.
O semblante de Josilene se fechou. Começava a mostrar marcas da idade e da dura vida que levava em Katáris, mas apesar disso ainda era bonita. Interrompeu o assunto com a aproximação de Ana Cláudia, que a chamou para preparar comida. Quando se dirigiam a fogueira improvisada no acampamento, viram sair de trás de árvores seres com cara de onça que possuíam grandes chifres. Eram pouco mais de vinte Máleks. Os Traquinas empunharam suas armas ameaçadoramente, mas foram contidos por Lúcio por sinais e gestos. Pareciam muito tristes e abatidos. Também estavam magros e arfantes. Lúcio se aproximou de um deles que reconheceu e telepaticamente perguntou de onde vinham.
- Estamos vindo de um acampamento improvisado aqui perto. Colhemos água pra nosso consumo aqui todos os dias. Quando me aproximei, senti sua presença.
- O que aconteceu na aldeia?
- Fomos atacados.
- Por quem?
- Foi ele, Lúcio. Foi Harakit!!!
Lúcio se arrepiou ao ouvir a revelação do Homem Leopardo. Não podia acreditar naquilo.
- Como é possível? Vi ele morto. Tocamos nele. Estava morto.
- Vocês mataram o corpo dele, Lúcio. Não sua consciência. Quando partiram, a excênsia de Harakit invadiu a mente de Kolosh, assumindo o controle. O tempo todo foi ele, e nunca o filho, quem estava ali. Kolosh foi sincero com vocês quando disse não concordar com as ações do pai. Harakit sabia disso e não pensou duas vezes quando invadiu a mente dele.
- Mas o corpo de Kolosh também foi destruído. Como pode ter atacado vocês?
- Quando o corpo de Kolosh dominado por Harakit foi devorado pelo animal que habita o grande rio, a mente do destruidor vagou um certo tempo, até encontrar outro hospedeiro, uma fêmea de nossa aldeia. Uma vez dentro do corpo dela, passou a nos atacar, matando muitos e banindo o restante, que somos nós.
- Quantos de vocês ainda vivem?
- Quarenta e sete.
- Ele quase conseguiu extingui-los.
- Sim... E irá conseguir muito em breve.
- Não permitirei.
- Não pode fazer nada, Lúcio. Se mata-la, ele assumirá o corpo de um dos quarenta e sete que restaram. A única maneira de conseguir acabar com ele é acabar conosco primeiro.
- Ele assumiria o corpo de outra criatura. Maldito. Tem de haver um jeito. Pense, amigo... Pense em algo.
- Há uma chance remota de destruir sua mente pra sempre, mas pra isso, a fêmea teria de estar desacordada.
- Podemos tentar.
- Mas entenda, Lúcio. Não podem mata-la. Devem faze-la perder os sentidos. Se ela morrer, sua mente vai vagar até assumir outro corpo e tudo estará perdido.
- E depois que ela desmaiar, o que faremos?
- O resto é conosco. Nós, os Máleks assumiremos, e será o fim definitivo daquela aberração.
- Onde ela está?
- No lugar de sempre. No castelo.
- Vocês virão conosco?
- Sim. Desta vez nós iremos com vocês. Tem de ser agora ou nunca.
- Muito bem, meu amigo. Tomou a decisão certa.
- Meu nome é Kérnell. Irei pegar o que sobrou de meu povo no acampamento que virou nosso refúgio. Ficaríamos felizes se nos acompanhassem.
Lúcio chamou o restante da expedição e passou a acompanhar os felinos mata adentro.
- As Formigas Guerreiras ainda são o exército de Harakit?
- Nada mudou a esse respeito. Estão com ele também os que vocês chamam de Canibais Aquáticos e os perigosos pigmeus.
- Pode me dar idéia de números?
- Não são muitos ainda. Ele não teve tempo de reagrupá-los.
- Há quanto tempo ocorreu a debanda de seu povo?
- Há alguns anos. Desde então, temos vivido aqui precariamente, escondidos. Não ia demorar muito pra sermos encontrados.
- Quer dizer que o destruidor efeminado agora é uma verdadeira mulher.
- Efeminado? O que quer dizer esta palavra?
- Deixe pra lá, Kérnell. Espere aí, este é o acampamento onde deixamos mulheres e crianças escoltados por guarda-costas anos atrás quando fomos de encontro ao castelo.
- Sim. Sei que Harakit nunca iria imaginar que nos esconderíamos aqui, onde ele próprio outrora os atacou.
Lúcio aguardou aquele povo recolher o que lhes era de maior importância. Estavam aflitos e cabisbaixos. A esperança parecia ter desaparecido. Prosseguiram. Passaram uma vez mais pelo Parque Aquático, rumo ao grande rio. Como fizeram várias vezes no passado, tornaram a confeccionar embarcações para transpô-lo. Lúcio ficou muito preocupado com seus filhos e os de seus companheiros, mas não confiava deixa-los seja onde fosse. Preferia te-los ao alcance da visão. Ao mesmo tempo que ficou desesperado ao saber que Harakit ainda vivia, ficou esperançoso pela possibilidade de obriga-lo a mandar todos de volta ao seu planeta natal. Estaria ele mais fraco por ter agora um corpo feminino? Achava que não, porque o forte do destruidor era a mente e não o físico. Começaram a atravessar o rio e chegaram a ver alguns Canibais Aquáticos que os observavam ao longe. Não interfeririam, provavelmente por estar em número muito reduzido. Dessa maneira chegaram em segurança a outra margem do rio, de onde viram a fortaleza das Formigas Guerreiras. Centenas delas acumulavam-se em torno da construção, porém não intercederam na caminhada do grupo. O temor deles agora estava em esbarrar com pigmeus, afinal de contas, a região que estavam pra adentrar pertencia a eles. Lúcio se recordou de Marina. Será que sua tribo ainda era pacifica? Decidiu seguir pra lá. Se pudesse contar com a ajuda deles, seria um reforço de peso. Horas de caminhada foram suficientes para chegar a aldeia. Para surpresa de todos, o líder agora era o filho mais velho de Marina. Ele os recebeu bem, porém sempre carrancudo. Lúcio e os outros puderam ver também a irmã dele entre os pigmeus. Eram horrorosos. Como não conseguia ver o irmão do meio, Lúcio leu a confusa mente de Tallalac, o rei pigmeu, e percebeu que seu irmão havia morrido alguns meses atrás, emboscado por pigmeus de sua própria espécie, porém de tribo rival. Ele foi morto a golpes de tacape e depois assado e comido por seus assassinos. Lúcio percebeu também muita mágoa contra si por causa da morte de sua amada mãe humana. O pai morrera de causas naturais anos atrás. Apesar da bronca por Lúcio, Tallalac sabia que tinham um inimigo em comum e topou ajudar no que fosse possível. Cedeu abrigo e alimento para todos por alguns dias e depois os guiou pela selva sem problemas até estarem diante do grande castelo, lar do demônio destruidor. Tiveram o cuidado de permanecer escondidos entre as árvores da floresta e começaram a bolar um plano. Alguns formigões carregavam blocos de rocha e as levavam castelo acima. Parecia que Harakit estava ampliando seus domínios. Por que seria?
- Já tem algo em mente, amor?
- Não, Ana. Pensei numa manobra, mas me parece meio absurda.
- Pode me dizer do que se trata?
- Chegar até ele enquanto dorme, se é que dorme. Os Máleks então se encarregariam dele.
- E como saberíamos o momento exato em que ele, ou ela, foi dormir?
- Eis o problema. Eu poderia saber mentalmente, mas não sem antes nos denunciar.
- O que é isso na sua cintura? A arma de seu filho?
- Sim. Pedi a ele emprestado. Vou precisar dela quando tivermos de encara-lo de frente. Ele não tem poderes diretos sobre objetos de nosso planeta, lembra-se?
- Lúcio, você poderia mata-lo facilmente com isso.
- Sim... Tudo o que não queremos no momento. Esqueceu-se que ao morrer ele assume outro corpo? Sem falar que não voltaríamos pra nossa terra natal. Esta pistola é pra o ultimo caso. Um caso de vida ou morte.
- Por que será que ninguém sonhou com ele desta vez? Seus poderes podem estar menores.
- Duvido. Ele está é mais cauteloso. Viu no que deu seu excesso de confiança nas vidas anteriores. Não quer nos subestimar dessa vez, mas pretende se vingar, por isso trouxe Luciano até Katáris.
- Lúcio... Você tem razão. Ele quer usar seu filho pra te causar dor.
- Por isso a pistola está comigo e também as granadas.
- Você percebeu que o portão principal de acesso ao castelo foi modificado?
- Sim... Está mais alto.
- Por que será?
- Não faço idéia, não foi à toa a mudança.
- Será que já sabe que estamos aqui?
- Acho que não. Não senti nada.
Como que para contrariar o que Lúcio havia dito, o grande porta do castelo se abriu lentamente, até revelar, preso por correntes ao seu gigante pescoço, o T-Rex da dimensão paralela, ao qual os humanos apelidaram de grande lagarto. Assim que a porta cessou o avanço, as grossas correntes libertaram o animal sem que ninguém o fizesse mecanicamente. Bufando e babando, o réptil, insandecidamente, correu na direção em que eles estavam, mesmo sem poder vê-los, como se soubesse que ali estavam. É claro que todos trataram de subir as árvores em redor o mais rápido que puderam. Lúcio puxou o pino de uma granada com os dentes e gritou para atrair a atenção do monstro, que passou a balançar a árvore onde ele estava, olhando para cima, com a boca entreaberta. Era tudo que o líder dos humanos queria. Jogo-a e viu quando ela rolou pela língua do animal, mas foi quando ela passava pela garganta que explodiu. A morte foi instantânea. Os outros gritaram insanamente, agradecendo ao amigo e líder.
- Vamos descer e atacar imediatamente. Ele já sabe que estamos aqui. Concentre-se em Harakit o máximo possível. Deixei-no ocupado. Quanto menos ele puder pensar, melhor. Invistam contra ele o tempo topo... Vamos!!!
Aos berros, todos ali presentes pularam e correram feito loucos em direção as Formigas Guerreiras que já se posicionaram para receber o impacto da horda. Mesmo protegidas por escudos de madeira desta vez, as formigas de Harakit não foram pareis para os Bóraxes de Moreno. Quando poucos delas ainda resistiam e a vitória já parecia certa, todo o castelo foi cercado por criaturas de todo tipo e espécie naturais de Katáris. Até animais irracionais estavam entre eles, como que adestrados para a guerra. Lúcio percebeu que eram milhares. Seus amigos Bóraxes e Traquinas se viravam como podiam, mas estava claro que o inimigo era superior em pelo menos dez vezes. Seria um massacre sem precedentes. Quando viu que o grande portão já começava a fechar à sua frente, empurrou e guiou todo o contingente humano de seu exército, alguns Máleks e cinco Bóraxes para dentro do pátio do castelo. Correram pelos corredores do mesmo, vasculhando cada cômodo, até que no terceiro andar, a sua espera, encontrava-se uma fêmea Málek, de braços cruzados e de expressão altiva.
- Sei o que tem em mente. Já soube da aliança entre meu povo e o seu. Não esperem conseguir me colocar pra dormir. Não terão sucesso.
- Você está sempre se enganando, Harakit. Todas as vezes. A autoconfiança está sempre te traindo. Por que desta vez seria diferente?
Ao terminar a frase, Lúcio sacou rapidamente a pistola que já se encontrava destravada, apontando-a para o inimigo, desta vez caracterizado num corpo feminino.
- Mande seus escravos cessarem as hostilidades imediatamente contra meu exército, ou eu atiro.
- Esqueceu que seus pensamentos não são segredo pra mim, Lúcio? Sei que só mataria este corpo em último caso. Sei que veio ao meu encontro desta vez com outra intenção. Deseja que eu os mande pra casa. O que você não imagina é que estou disposto a esquecer o que houve no passado e atender ao seu desejo. O que me diz?
- Por que faria isso?
- Por que estou evoluindo. Pretendo deixar os povos e raças de meu planeta seguirem seu rumo natural. Deixarei-os em paz e corrigirei o mal que fiz a vocês humanos mandando-os de volta ao seu verdadeiro lar.
- Se realmente mudou, por que atacou os Máleks, quase extinguindo-os?
- Isso foi assim que assumi este corpo. Estava confuso e irado e só pensei em destruir tudo e todos ao meu redor. Porém, quando voltei ao meu retiro, meditei e cheguei a conclusão que não era correto. Jamais voltei a atacar outro povo desde então.
Lúcio tentou invadir a mente do inimigo, mas percebeu que era uma barreira impenetrável. Apesar disso, o que dizia parecia fazer sentido.
- Mande seu exército parar as agressões e conversaremos.
- Pronto... Está feito.
Com um comando mental, Harakit ordenou a sua horda que cessasse o ataque e assim se fez, poupando-os. Lúcio também mandou uma mensagem para seu exército, dizendo a eles que se retirassem, pois caso fosse um ardil do demônio, estariam a salvo.
- Como posso acreditar no que está dizendo se continua escravizando seres deste planeta?
- Pretendo libera-los assim que mandar seu grupo de volta ao planeta Terra. Eu sabia que vocês viriam e precisava me proteger, por isso os selecionei, mas vou liberta-los assim que firmarmos nosso acordo. Viverei em meu castelo sem incomodar ninguém. Serei guardado apenas pelas Formigas Guerreiras, que me são fiéis sem a minha influencia mental.
- E os Máleks?
- Eu já disse... Não incomodarei ninguém.
Moreno se aproximou de Lúcio e sussurrou em seu ouvido, esquecendo-se que o que diria não podia passar despercebido pelo felino de chifres.
- O que está esperando, Lúcio...? É a oportunidade de nossas vidas.
- Quero ter certeza de que os Homens Leopardos ficarão em segurança.
Todos ali presentes estavam nervosos e ansiosos com a possibilidade de deixar aquele lugar definitivamente.
- Eu aceito, desde que estes Máleks nos acompanhem.
- Deseja leva-los consigo para seu mundo?
- Sim. É a garantia que tenho de que não serão extintos.
- Que assim seja.
- Só mais uma pergunta. Se não nutre mais desejo de vingança, por que trouxe meu filho a Katáris?
- Eu não o trouxe. O portal que criei naquela sala de aula acionou o efeito espiral ao reconhecer o seu sangue. O DNA de seu filho o trouxe pra cá.
Harakit sentou-se em seu trono de pedra e abriu os braços, altivo como sempre, fazendo surgir um turbilhão que já era conhecido por Lúcio. A tempestade de vento então sugou-os, deixando intocados apenas os Bóraxes e Traquinas ali presentes. Um caminhão freou a poucos centímetros de todos. O motorista custou a acreditar que toda aquela gente havia caído bem no meio da rua, vindos não se sabe de onde. E o que era mais impressionante... Aquelas “fantasias” de leopardos com chifre não pareciam ser fantasias. Todo o transito parou. Um guarda municipal se aproximou de Álvaro, que era o único que estava caído no chão e constatou que ele havia desmaiado. Lúcio precisou da ajuda de Moreno para carrega-lo. Foram guiados pelo tal guarda para uma pensão e ali todos ficaram aguardando a viatura da policia que foi solicitada pelo numero 190. Mais de cem pessoas se acumularam em frente à pensão. Todos queriam ver as criaturas fantásticas que ele estavam. Os homens e mulheres de tanga passavam até despercebidos aos olhares curiosos. As atenções estavam mesmo voltadas para os assustados Máleks. Uma viatura chegou e fez contato com a central, que sem entender o que o policial dizia, enviou outras duas, e após elas, mais dois veículos da policia militar chegaram ao local, que sem saber o que fazer diante daquela situação, levaram todos para a delegacia mais próxima, que ficava a poucos metros dali, menos Álvaro que foi encaminhado ao hospital Getúlio Vargas, também nas proximidades. Já dentro da DP, um policial civil perguntou por que Animal tinha as mãos fortemente atadas, e após ouvir as explicações, tratou de retirar o cipó e algemou-lhe. Horas mais tarde, alguns homens vestindo terno levaram os sete Homens Leopardos em duas vans pretas com vidros filmados. Lúcio insistiu com os policiais civis para que lhe dissessem para onde iam, mas eles alegaram não saber. Disseram apenas que os homens de terno eram delegados federias. Só parou de interroga-los quando viu sua mãe entrar pela porta. Ela o abraçou e chorou compulsivamente. Lúcio quase não a reconheceu. Havia envelhecido muito. Luciano se juntou a eles, apertando-os com os braços. Aos poucos, os parentes dos outros foram chegando à vigésima segunda DP, causando grande comoção. A mãe de Josilene e o pai de Elaine chegaram a passar mal e tiveram de ser medicados. Ainda assim, a maior surpresa daquele dia foi à súbita recuperação de Harakit. Como pode esquecer as diferenças entre Lúcio e seus seguidores? Aquilo certamente era um mistério que ninguém ali queria saber de decifrar. O importante, e incrível, é que aquelas pessoas estavam em casa novamente, após tanto tempo de exílio. Alguns deles sequer conheciam aquele lugar que os pais chamavam de lar. A imprensa começou a lotar a delegacia e o delegado titular tratou de libera-los o mais rápido possível, um por um, com exceção de Eduardo Animal que foi autuado e encarcerado. Os repórteres então os assediaram, entrevistando-os na calçada. Um tumulto se formou, porque os parentes dos mesmos não queriam que a impressa os detivesse. Queriam seguir pras suas casas o mais rápido possível e após alguns empurrões, a paz voltou a reinar. Lúcio chegou na casa de sua mãe acompanhado por ela, Ana Cláudia, Viviane, Luciano, Wesley e Cristiane. Juliana já havia partido com os pais, assim como Rodrigo. Sorrindo, foram tomar banho de chuveiro, um por vez. Ana Cláudia e Viviane entraram juntas no boxe, uma vez que aquilo era novidade para a filha. Estavam todos felizes como nunca. Não era um sonho. Estavam realmente em casa novamente. Viviane comentou com a mãe que gostou muito do tal de shampoo. Era cheiroso e cremoso. Luciano olhou para o marcador de seu relógio que dizia que aquele era o nono dia do mês de março de 2011. Faltava pouco mais de um mês para que completasse vinte e dois anos de idade. Após o banho, todos se sentaram à mesa para jantar. Estavam famintos. Depois da refeição, esgotados, dormiram. Estranharam muito o conforto e acordaram cedo. Lúcio avisou logo a todos que iria visitar o amigo Álvaro no hospital imediatamente. Ao chegar lá, foi avisado de que ele já havia tido alta. Os médicos lhe disseram que o desmaio foi provavelmente causado pela queda.
- Ele deve ter batido a cabeça no asfalto, mas não foi nada grave. Fizemos uma tomografia do crânio dele. Está tudo em ordem.
Lúcio teve vontade de se comunicar com o amigo, mas não sabia onde morava sua família. Teria que ficar pra depois. Voltou a pé pra casa de sua mãe e sentou na sala de estar com os outros, onde por horas, contaram pra amigos e parentes tudo o que lhes ocorrera naquele lugar sinistro e sombrio.
Capítulo 4
Inferno na Terra
No dia em que completaria dois anos de casado com Juliana, levantei por volta das sete da manhã para ir trabalhar e depois de beija-la a parabenizei. Era dia cinco de maio de 2014. Ela agradeceu e se virou pro outro lado. Só teria que se levantar meia hora mais tarde, para abrir o salão de cabeleireiro que gerenciava ali bem perto de nosso apartamento, que ficava praticamente em frente ao autódromo da Barra da Tijuca. O apartamento era financiado, assim como o de meu pai, que não teve o dele leiloado graças a minha avó, que o manteve pago com a pensão que recebia todos os meses enquanto ele estava em Katáris. Cheguei a garagem e liguei o motor do meu Prisma. Ao lado dele estava o carro de minha mulher, um Punto, parado em sua devida vaga. Minutos depois, estava chegando ao Info Barra onde trabalhava com meu pai em seu quiosque de informática. Menos de dez minutos depois ele chegou e para minha surpresa me deu os parabéns.
- Como você lembrou?
- Pra te dizer a verdade, li na sua mente.
- Ah... Claro.
- Compre o jornal pra gente.
Fiz o que ele me pediu e como era habito de todos os dias, sentei-me em um dos bancos da pracinha que precedia o mini-shopping para ler as novidades. Um pequeno trecho do jornal relatava um acontecimento muito estranho. Dizia que um homem havia sido visto levitando a mais de cinco metros de altura no bairro da Piedade por várias testemunhas. Levei pra meu pai, que riu e disse se tratar de sensacionalismo.
- Quero ver o dia que irão dizer algo sobre os Máleks. Já são mais de três anos sem noticias deles.
- O que as autoridades dizem sobre eles?
- Que a existência deles é ficção. Já tentei de tudo. Até carta pro presidente da república eu já mandei.
- E aí?
- Sem resposta. Eles os seqüestraram e esconderam e agora dizem pra todos que nunca existiram.
- E quanto ao Álvaro? Já o encontraram?
- Não. A família diz que ele nunca mais foi visto desde que saiu do hospital.
- O que pode ter acontecido?
- Não sei... Talvez perda de memória. O médico me disse que ele bateu com a cabeça no chão quando retornamos de Katáris.
- Pode ter até virado mendigo.
- É... É uma possibilidade. Coitado.
- Tem visto Vitor e Milena?
- Só Milena. Ela vai lá em casa as vezes. O namoro dela com Wesley está durando mais do que eu e Ana Cláudia imaginamos. Elaine me disse que Vitor já está pra casar.
- Com Jade?
- Não. Terminaram há muito tempo. Ele namora uma menina que conheceu na escola há quase dois anos.
- Tem noticias de Jade e Lorena?
- Não. Pensei que você tivesse. Afinal de contas Rodrigo ainda namora a Lorena, não?
- Não. Também terminaram. Brigaram por causa de ciúme. Lorena achava que Jade dava em cima dele.
- E ela dava?
- Rodrigo disse que não, que era coisa da cabeça da namorada. Ele falou que Jade está um avião.
- Faço idéia. Sempre foi mesmo bonita. O ultimo contato que tive com os pais dela foi há dois meses atrás. Pensei em frente a uma banca de jornal no centro da cidade e vi a fotos deles dois na revista Veja. Comprei a revista e li a entrevista que deram. Gostei muito e liguei pra elogiar. Moreno ficou radiante.
- Pai... Eu não consigo deixar de pensar em Beatriz e na dona Clarissa. Me sinto tão culpado pelo que aconteceu a elas. Procurei alguém da família, mas não consegui nada. Elas eram do sul e não sei se tinham algum parente vivo.
- Depois de ajudo a procurar na internet, agora vamos trabalhar. Arrume essas placas que chegaram ontem na prateleira.
No final do expediente, comprei alguns hambúrguers e batatas fritas e levei para casa. Ao entrar no apartamento tive uma surpresa. Juliana havia saído mais cedo do salão e tinha preparado um jantar a luz de velas. Guardei as embalagens que continham os sanduíches dentro do forno microondas e beijei-a durante minutos.
- Este é o seu presente, agora falta você me dar o meu.
- Amor... Me desculpe, eu não trouxe nada. Depois de jantar podemos ir ao shopping pra você escolher alguma coisa, ok?
- Não quero esse tipo de presente...
- Ah... Já entendi. Pode deixar. O presente que você deseja está garantido.
- Eu sei, por isso aquelas garrafas de vinho estão no gelo.
Fizemos amor a noite toda. O vinho era mesmo afrodisíaco. Na manhã do dia seguinte, comprei o jornal como fazia todos os dias e fiquei mais uma vez surpreso. O tal homem voador foi visto novamente, desta vez em Bonsucesso e chegou a ser filmado por um pedestre, de longe. Corri para acessar a internet, na certeza de que as imagens já deviam estar circulando no YouTube. Batata. Lá estava ele. A imagem era de má qualidade, feita por um telefone celular, com duração de apenas quatro segundos, terminando quando o tal homem sumia por trás de um prédio comercial. Não esperei meu pai chegar. Liguei pra ele, que ficou visivelmente preocupado com aquilo. Ao chegar, mostrei-lhe a filmagem. Ele empalideceu.
- Este homem flutua da maneira exata como Harakit fazia.
- Será que tem alguma relação com ele?
- Não sei... Talvez.
- Pai... O que é que está acontecendo?
- Também queria saber, Luciano. Gostaria muito que meus amigos Máleks estivessem aqui agora.
No domingo, meu pai apareceu em minha casa de surpresa na parte da manhã, trazendo em DVD nas mãos e pediu, tenso, que eu o colocasse no aparelho. Queria me mostrar algo e parecia muito assustado. Ao reproduzir a imagem saquei de imediato o motivo de todo seu stress. Uma nova filmagem do misterioso homem voador foi feita por um cinegrafista amador da janela de seu apartamento no Andaraí. O rosto do tal homem aparecia com qualidade desta vez. Era a fisionomia de Álvaro. Reconheci ele de cara. Olhei em direção a meu pai, que parecia em transe.
- O que quer dizer isso, pai? Álvaro adquiriu poderes de levitação?
- Não acho que seja isso, filho.
- O que o senhor acha, então?
- O pior é que eu não acho... Tenho quase certeza de que fomos enganados pelo destruidor.
- Por Harakit? Como assim?
- Acho que o a mente do demônio invadiu o corpo de Álvaro no momento em que o efeito espiral foi acionado em Katáris. É ele quem está no controle, e não nosso amigo. Por isso o desaparecimento dele do hospital.
- Mas por que?
- Domínio!!! Ele pretende dominar nosso planeta. Precisava do corpo de um de nós para transitar por aqui sem chamar a atenção e então o fez.
- Sem chamar a atenção? O que acha que ele está fazendo voando daquele jeito?
- Ele precisava passar despercebido até se adaptar ao nosso mundo, o que já deve ter acontecido nesses mais de três anos que chegou aqui.
- O que ele está tramando, pai?
- Não sei, mas vou descobrir. Vou dar um jeito de chegar até ele. Pode ter certeza.
Tratei de ligar pra Elaine, mas quem atendeu foi Milena, chorando.
- Por que está chorando?
- Você ainda não soube? Meu pai está voando por aí.
- Liguei pra comunicar sua mãe, mas pelo visto ela já viu a gravação.
- Sim, desde ontem à noite.
Falei pra ela sobre a suspeita de meu pai e ela desligou pra ir encontrar-se com a mãe a quem pretendia contar tudo. Disquei para a casa de Moreno e Josilene. Quem atendeu foi ele. Ficou surpreso com a novidade. Pediu pra eu não deixar meu pai sair até ele chegar. Queria conversar pessoalmente.
- Lúcio, meu amigo... Temos que formar uma força tarefa com nossos sobreviventes. Ele deve estar planejando escravizar a raça humana.
- Não tenho duvidas sobre isso. Vamos começar agora mesmo a contatar os outros.
Ficamos os três telefonando o dia inteiro para os remanescentes da turma 1.102. Deixaríamos as mulheres e os adolescentes em segurança, cuidando de seus lares. Somente os homens iriam atrás de Harakit. Israel e Carlinhos a principio não toparam, mas ao anunciar na televisão que Harakit, na forma de Álvaro, havia invadido a residência oficial do presidente da republica e assassinado seus seguranças, tendo o próprio presidente e sua família escapado por pouco, aderiram-se a nós. Nosso grupo, nos dias que se seguiram, passou a contar com meu pai, eu próprio, Bicudo, Carlinhos, Moreno, Marcel, Wesley, Vitor, Alberto, Rodrigo e Israel. Animal havia sido julgado e sentenciado por homicídio doloso e estava preso e ainda que não estivesse não teria sido convidado e César tinha morrido vitima de acidente de transito junto com sua mulher e uma enteada meses antes. Passamos a pesquisar as aparições de Álvaro em locais públicos, de maneira que chegamos a conclusão de teria sido visto com freqüência no Méier. Partimos praquele bairro procurando pistas que nos levassem até seu esconderijo, quando o celular de meu pai tocou. Ele estava no viva-voz.
- Alô...
- É Lúcio quem fala?
- Sim.
- Sr. Lúcio... Quero pedir que retornem pras suas casa imediatamente e aguardem ser contatados. Estão interferindo em uma sigilosa investigação federal.
- Quem é você?
- O que posso lhe dizer no momento é que trabalho pro presidente.
- Estamos procurando o covil do destruidor. Não vamos parar até encontra-lo. Não tem idéia do que estamos prestes a enfrentar.
- Tenho idéia, Lúcio. Já sabemos de tudo. Os Máleks nos informaram da ameaça. Sabemos que Harakit está por trás disso.
- Pois bem, então entende a nossa necessidade de descobrir onde está escondido.
- Nós já sabemos onde ele está, Lúcio. Vocês estão muito próximos dele neste momento, por isso liguei pra você. Não é hora de ataca-lo. Precisamos saber exatamente como lidar com ele antes disso. Não queremos que saiba que já descobrimos seu paradeiro.
- É...? Então escute bem o que tenho pra lhe dizer. Ou você nos leva ao encontro dos Homens Leopardos agora mesmo ou eu estouro o esconderijo dele, está me ouvindo?
- Ok... Fiquem onde estão. Estamos indo busca-los.
Duas vans pretas com insul film nos vidros pararam diante do nosso grupo poucos segundos depois e ao abrir suas portas, convidaram-nos a entrar. Reconheci aqueles veículos como sendo os mesmos que levaram os Máleks da delegacia na Penha Circular anos atrás. Um homem aparentando uns trinta anos, de terno escuro, nos dirigiu a palavra.
- Fui eu quem fez contato pelo telefone de Lúcio. Meu nome é Rui. Sou agente federal. Fui colocado no comando desta operação pelo presidente. Hoje pela manhã, seu velho conhecido atacou outro alvo, o prédio da policia federal localizado na Praça Mauá. Matou vários funcionários e seqüestrou um delegado. Achamos que fez isso na tentativa de descobrir onde seus desafetos estão escondidos.
- E o que estão esperando para tirar eles de lá? Harakit vai dizima-los.
- Não. O delegado não sabe de nada. Nem sequer sabia da existência dos Máleks.
- O chifrudo não é de bobeira. Vai descobrir mais cedo ou mais tarde. Eles estarão mais seguros conosco.
- É? E por que? Como pretendem defender eles? Com alguns revolveres enferrujados?
- Sobrevivemos a essa aberração durante todos esses anos. Não duvide do que somos capazes.
- Contarei com a ajuda e a experiência de vocês, sim, mas estaremos nessa juntos.
- Já pensou em pedir ajuda ao exterior?
- Tudo o que for feito terá de ser a nível nacional. Ninguém de fora será chamado.
- Não venha com orgulho nacional agora. Harakit vai começar dominando a cidade, depois o país e enfim o planeta.
- Não creio que um alienígena preso no corpo de um homem, ainda que com algumas habilidades, entre elas o poder de flutuar, possa, sozinho, dominar o mundo inteiro.
- Acontece que, se bem o conheço, ele já não deve estar mais sozinho.
- Desculpe, mas terei de pôr uma venda em vocês agora.
Nossas vendas foram retiradas quando já estávamos dentro de um elevador. Vi quando um dos homens de Rui apertou o botão do vigésimo terceiro andar. Era um prédio de trinta andares. Fiquei me perguntando se o agente não fazia idéia de que uma venda era inútil para meu pai. Ele parecia desconhecer que ele era um tremendo telepata, ou simplesmente não acreditava. Ao chegarmos ao andar vinte e três, passamos por vários setores até parar de frente para uma sala cercada de janelas de vidro fumet por todos os lados. Lá dentro estavam os Máleks. Não podiam nos ver, mas percebi que notaram nossa presença mentalmente porque ficaram muito agitados. Mais tarde, meu pai disse que se comunicou com eles.
- Nobres amigos... Como tem passado?
- Estamos presos aqui há anos, desmotivados para continuar vivendo. Eles nos obrigam a fazer testes científicos. Alguns de nós já passou até mesmo por cirurgias.
- Isso acabe aqui. Vou leva-los comigo custe o que custar.
- Lúcio... Sentiu o que senti.
- Não. O que houve?
- O destruidor... Ele acabou de chegar a este prédio. Temos de ir agora. Não vai demorar pra chegar até aqui. Está com sede de sangue. Ele veio nos matar, amigo.
- Rápido, Rui... Abra a sala. Deixe-os sair.
- Não será permitido.
Para surpresa de todos, Lúcio enfiou a mão no bolso da calça e tirou uma granada. A mesma que me pertencera, e antes que os agentes pudessem imobilizá-lo, removeu o pino e a jogou em direção a porta. Intuitivamente, os homens felinos se afastaram. Moreno, meu pai e Alberto se atracaram com os três seguranças, até que Rui, que estava parado a minha frente, ficou sob a mira de minha pistola. Ele então ordenou aos seus homens que se rendessem. Eles foram algemados, assim como seu chefe. Os Máleks se aproximaram de nós e disseram mentalmente a todos que havia pouco tempo. Cada um dos sete tocou nossa testa, deixando de faze-lo apenas com Israel, Marcel, Wesley e meu pai, que se encontravam mais afastados, caindo ao chão em seguida. Verificamos o pulso de todos. Não tinha batimento.
- Aconteceu novamente. Eles nos deram seus poderes. Abdicaram de suas vidas por nós. Vamos... Vamos sair daqui. Harakit está próximo. Seremos presas fáceis.
Todos seguimos meu pai para o elevador. Rui e seus agentes, mesmo algemados nos seguiram. Meu pai falou a Rui que só poderia vir ele, sem seus homens.
- Mas vocês já tomaram as armas deles, o que mais eles podem fazer?
- Só você ou ninguém.
Rui acatou. Deixou seus agentes pra trás e veio conosco, aturdido com o rumo dos acontecimentos. Minutos depois, seu celular tocou e ele atendeu. Era um de seus homens que acabara de ficar para trás. Disse que Harakit apareceu no andar, quebrando tudo ao seu redor e matando a todos. Apesar do corpo ser de um ser humano, sua força e agilidade eram sobre-humanas. O agente só sobreviveu porque se fingiu de morto, passando a observa-lo. Harakit se aproximou dos corpos felinos e ao constatar que sua vida havia lhes abandonado, partiu, quebrando a vidraça de uma janela.
- Tio Lúcio... Quero saber o que farão quando depararem com ele. Não pretendem mata-lo, não é? Meu pai morreria junto com ele.
- Fique tranqüilo, Vitor... A intenção não é mata-lo. Não resolveria nada, como já estamos cansados de saber. Vamos tentar pôr em prática o plano dos Máleks, já que agora temos os poderes deles.
- Não sinto nada de diferente. Já tentei e não consegui ler a mente de ninguém.
- É normal. Leva algum tempo.
Alugamos sigilosamente um galpão no centro de Duque de Caxias e improvisamos uma base de operações nele. Pretendíamos ficar pouco tempo e depois partir pra outro local, pois sabíamos que não demoraria até Harakit nos encontrar ali. Minha função era ficar ligado na TV, afim de saber qualquer noticia do destruidor e de suas façanhas. Em poucos dias ele voltou a atacar, desta vez incendiando o CPOR, quartel do exército em que servi outrora junto com Rodrigo. Ele provavelmente achou que nos encontraria lá. Pensei em nossas famílias, que há semanas atrás havíamos mandado para o exílio, na Argentina. Estariam mais seguros lá. Eu tinha muita saudade de Juliana, mas evitada falar com ela até mesmo pelo telefone. Foi quando percebi que meus poderes telepáticos começavam a surtir efeito. Eu via o trajeto que ela fazia, nas ruas do país vizinho, pelo ângulo de seus próprios olhos. Era uma nova e fantástica experiência. Meus companheiros que foram agraciados pelos Homens Leopardos também manifestaram o dom na mesma ocasião. Quando chegamos minutos depois do ataque ao quartel, Harakit já havia desaparecido. Havia vários carros do corpo de bombeiros contendo o incêndio. O portão principal de acesso estava retorcido e alguns militares eram socorridos em ambulâncias. Mais tarde fiquei sabendo por colegas que o demônio fez quatorze vitimas fatais. Nos dias que se seguiram estávamos tensos e ansiosos a espera de outro ataque que nos levasse a encontrar e enfrentar o chifrudo. Gritei para os demais ao ouvir no plantão da rede Globo que um ser voador havia entrado no prédio do tribunal federal por intermédio de uma janela e ainda se encontrava lá dentro. Era a chance pela qual tanto esperamos, mas o local ficava no centro da cidade do Rio de Janeiro. Precisávamos correr. Entramos rapidamente nas duas vans que há nos serviam como condução e em menos de meia horas estávamos diante do edifício. Vimos a tal janela, com os vidros quebrados. Não se via ou ouvia nada do lado de fora. Ambulâncias, carros do corpo de bombeiros e muitas viaturas policiais estavam ali em frente, aguardando algo. Um grupo de operações especiais da policia chegou e se posicionou por todo o perímetro, fazendo mira, inclusive dos telhados vizinhos. Um helicóptero da policia dava cobertura a tudo, enquanto um outro da rede Globo filmava o evento. Pensei comigo que ficaria complicado para Harakit sair daquele local. Mas do que adiantaria abate-lo? Como meu pai costumava dizer, não adiantaria nada. Em pouco tempo ele assumiria um outro corpo. Fiquei chocado quando o capitão do BOPE, empunhando seu fuzil, se virou em nossa direção e começou a metralhar as vans em que estávamos. Seus homens, pegos de surpresa, passaram a atirar em nós, imitando seu superior, sem saber ao menos o que se passava. Ouvi um projétil passar zunindo ao lado de meu ouvido. Meu pai e Rui, que estavam na direção de nossos veículos, aceleraram rapidamente, fugindo dali. Paramos em frente ao hospital Souza Aguiar para socorrer Marcel, Rodrigo e Wesley que foram baleados. Marcel estava desacordado e sangrava muito. Uma bala havia entrado pelo peito direito, perfurando pulmão e omoplata e saído pelas costas, outra entrou pelo abdome e saiu por trás, perfurando o intestino grosso e dilacerando um rim. Rodrigo levou um tiro na canela esquerda que deixou seu pé pendurado somente pela pele. Gritava e se contorcia de dor. Já a bala que acertou Wesley, para sua sorte, atingiu-o no braço esquerdo de raspão. Apesar de sangrar muito, ele não sentia dor. Ficamos ali de plantão no hospital, esperando noticias de Rodrigo e principalmente de Marcel. Wesley Júnior já se havia sido medicado e tinha no braço um curativo feito por uma enfermeira. Um grupo de bombeiros que estava em frente ao tribunal chegou ao hospital trazendo feridos e Rui os abordou, mostrando seus documentos.
- Sou agente federal... Quem vocês trazem aí?
- Alguns servidores do tribunal feridos.
- Algum magistrado?
- Não... Os três magistrados mortos foram direto pro IML. Fora os cinco advogados que também vieram a óbito.
- Quem eram os três magistrados?
- Ainda não sabemos, mas eram dois juizes e um promotor.
- O que aconteceu lá depois do tiroteio?
- O capitão do Batalhão de Operações Especiais saiu voando do local. Você acredita nisso? Eu vi com meus próprios olhos... O cara decolou e foi embora.
- E quanto ao homem voador que invadiu o prédio pela janela?
- Foi encontrado sem sentidos e levado sob custódia pela policia.
Era uma boa noticia. Meu pai não precisou me dizer o que havia acontecido. Eu sabia que Harakit havia abandonado o corpo de Álvaro e invadido o do capitão, em seguida alvejou os carros em que estávamos. Restava saber se Álvaro se recuperaria e se as autoridades iriam entender que ele nada tinha a ver com os homicídios cometidos. Minutos depois um médico nos trouxe a noticia que estávamos esperando. Maciel não havia resistido aos ferimentos e Rodrigo precisou amputar a perna. Com ódio nos olhos, meu pai disse que iria resgatar Álvaro onde ele estivesse e foi contido por Rui.
- Calma, amigo... Tudo tem seu tempo certo. O amigo de vocês vai ser liberado, eu garanto.
E foi mesmo. Não sei se o libertaram por saber que Harakit o havia aprisionado mentalmente ou se por influencia de Rui junto ao presidente. Lembro-me de estar em frente à TV como sempre, quando vi meus amigos se dirigirem à porta do galpão e aos berros comemorarem a chegada de Álvaro, trazido por Lúcio e Rui. Em falar nos dois, meu pai e o agente estavam cada vez mais ligados. Conforme o tempo passava, se tornaram grandes amigos e companheiros. Colocamos Álvaro sentado no meio no galpão e o circundamos. Foi uma avalanche de perguntas. Ele estava bem mais magro e parecia muito abatido. Tinha dificuldades em falar e estava meio sem ar.
- O que você sentiu quando Harakit invadiu sua mente, assumindo o controle sobre você?
- Não sei... A última coisa de que me lembro é que ele ergueu as mãos e um forte vento me puxou pra dentro do efeito espiral. Depois disso, acordei num hospital levando tapas na cara de vários policiais alguns dias atrás.
- Não se lembra de mais nada?
- Nada... Absolutamente nada. Como estão meus filhos?
- Bem... Estão na Argentina.
- O que fazem lá?
- Estão com a mãe em companhia de vários familiares do nosso grupo. É mais seguro pra eles.
- Minha mulher está bem?
- Sim... Já sabe que está livre da influencia do chifrudo e louca de saudades de você. Foram anos de sofrimento com o seu desaparecimento. Assim que se recuperar melhor, você vai estar com ela.
- Mande-a vir.
- Não Álvaro... As coisas estão complicadas por aqui. É melhor aguardar.
Meu pai recebeu uma ligação pelo celular e chamou Rui para ir pegar Rodrigo que acabara de receber alta. Passamos a tarde toda interrogando Álvaro, até que eles retornaram. A cena foi triste e deprimente. A van se abriu e Rui ajudou Rodrigo a descer de cadeira de rodas. Ele não nos olhava nos olhos. Estava cabisbaixo e deprimido. Sugeri aos outros que o mandassem para a Argentina de encontro á família, mas ele disse que não iria de maneira alguma. Queria ficar e ajudar no que fosse preciso para acabar definitivamente com a ameaça de Harakit, então acabou herdando meu posto de observador em frente à televisão. Dias depois Rodrigo foi presenteado com uma prótese e pode voltar a andar. Foi nessa ocasião que Rui colocou meu pai em contato com o presidente pelo telefone celular, que, do exílio, convenceu-o a transferir sua equipe para uma base militar da marinha próximo à ponte Presidente Costa e Silva. Ali estariam mais seguros e teriam todo o quartel a sua disposição sob o comando de Rui. Lúcio topou com uma ressalva. As ordens partiriam dele próprio. Recolhemos tudo o que tínhamos e partimos para Niterói. Fomos recebidos como verdadeiras celebridades. Ganhamos uma sala com maquinário moderno e passamos a fazer vários contatos e a investigar o paradeiro de Harakit. Um tenente chegou correndo a nossa sala dizendo que o demônio estava destruindo o galpão que servia de base pra nosso grupo dias atrás. Saímos de lá no tempo certo. Não teríamos sobrevivido a um ataque surpresa. Uma filmagem amadora que chegou em nossas mãos algum depois mostrava que Harakit já havia trocado de corpo mais uma vez. Parecia ter se tornado um hábito, pois menos de um mês depois ele fora visto planando várias vezes, em todos os casos apresentando características físicas diferentes. Começamos a treinar muitíssimo nossas novas habilidades, principalmente a telecinésia. Os ataques de Harakit se tornaram mais e mais freqüentes, mas nunca conseguíamos chegar a tempo. Numa certa investida dele, que ocorreu contra um paiol da aeronáutica, ele foi abatido. O corpo sem vida de seu hospedeiro foi recolhido para um centro de pesquisas das forças armadas enquanto ele assumia o corpo de um pedestre que passava próximo dali. O demônio felino, que muitos anos atrás, quando da ocasião de seu primeiro contato com meu pai, não sabia como mover objetos inanimados de nosso mundo, agora havia desenvolvido seus poderes a tal ponto de erguer uma casa de dois andares. Jogava pessoas umas contra as outras com um simples pensamento e possuía a habilidade de incendiar coisas da mesma maneira. Meu pai achava que com muito treinamento poderíamos fazer o mesmo com o tempo, mas isso me parecia um tanto impossível. As pessoas já não perambulavam pelas ruas com a mesma freqüência. Um misto de medo e tensão pairava no ar. Mais de um ano havia se passado desde o primeiro ataque de Harakit, e a saudade de nossas famílias já beirava o insuportável. O presidente dos Estados Unidos da América mandou uma equipe altamente treinada em combate, para tentar capturar o destruidor, mas eles sequer conseguiram chegar perto dele. Numa manhã de quarta-feira, dia dezessete de agosto de 2016, fomos tirados da cama pela estridente sirene do quartel. Era o alarme de intruso que tocava. Senti a presença de Harakit e corri para o alojamentos vizinhos, que pertenciam aos meus colegas. Ouvi tiros serem disparados bem a minha frente e de imediato soube que ele estava no corredor. Sem ser tocado, um soldado que disparava seu fuzil logo à minha frente foi impulsionado com toda força de encontro à parede e teve o crânio esmagado, caindo sem vida. Os tiros cessaram e vi Harakit, para minha surpresa, agora ocupando seu corpo original. Era enorme, ostentando mais músculos que o próprio Arnaud Shawaznegger no ápice de sua carreira. Tinha os braços cruzados e flutuava, vestido um saiote no estilo escocês. Tentei invadir sua mente e levei um choque elétrico no cérebro como resposta. Caí de joelhos no chão. Olhei ao meu redor na intenção de obter uma reação de ajuda por parte de Vitor ou Carlinhos que estavam ligeiramente atrás de mim. Vitor percebeu meu desespero e saltou na direção dele, com um punhal na mão direita. Harakit parece ter se surpreendido com a súbita demonstração de coragem dele, e antes que fosse degolado, abriu um portal que nos sugou os três. Sabia o que aquilo significava, então me preparei para me segurar em algum galho e consegui evitar a queda, assim como Vitor. Carlinhos despencou aos gritos e bateu a cabeça no chão gramado lá embaixo, desmaiando. Desci o mais rápido possível, e Vitor fez o mesmo, me observando da árvore ao lado, onde havia se segurado. Sabia que a qualquer momento um daqueles sanguinários animais que habitava a Floresta Marcel apareceria para devora-lo. Com a ajuda de Vitor, colocamos ele em segurança acima de um galho. Não chegamos a ver nenhum carniceiro, mas sentimos a presença deles nos farejando ali perto. Vitor chorou e se desesperou, mas eu disse a ele que era melhor estar ali do que estar morto. Foi por pouco. A atitude dele nos salvou a vida, pelo menos naquele momento. Havia pouco a ser feito. Devíamos ir de encontro aos amigos Traquinas, depois aos Boraxes e então fazer uma visita aos poucos Máleks que restavam. Se alguém ali poderia nos ajudar, seriam eles. Não descansaríamos mais de um dia em cada acampamento com exceção da Colina dos Traquinas e da Savana Paradiso. Não havia tempo a ser perdido. Harakit estava ganhando a guerra em nosso planeta. A população mundial não tinha noção da real extensão da ameaça que a presença dele no planeta Terra significava. Escravidão absoluta e até mesmo extinção faziam parte de seu plano. Seguimos a trilha que levava a cabana de Marcel assim que Carlinhos recobrou a consciência. Ao chegar ao local, demos de cara com um carniceiro. Não pensei duas vezes. Invadi a insana mente do animal e torci seu cérebro primitivo até que ele tombou, babou um pouco e depois morreu. Meus amigos ficaram surpresos com o que consegui fazer àquele monstro, mas quem mais se surpreendeu fui eu próprio. Vitor já tinha a faca na mão e para nossa surpresa, Carlinhos tinha sacado um revolver calibre trinta e oito. Nem eu nem Vitor sabíamos que ele portava uma arma. Bom pra nós. Ela seria útil mais adiante. Como já tínhamos combinado, passamos somente uma noite naquele lugar, recolhendo o Maximo de viveres possível e carregando conosco na direção da aldeia dos pequenos Kwai, onde por eles foram bem recebidos, trocando roupas por alimento. Dormiram somente uma noite no local e partiram rumo ao Pico dos Zumbis. Na subida, uma chuva tão intensa fez rolar grande volume de terra, quase soterrando a nós três. Recuamos quase um quilometro, empurrados por barro, água e galhos. Ficamos cobertos de feridas e pequenos cortes pelo corpo todo e perdemos toda nossa água e comida. Já na aldeia, tentamos apelar por um pouco da papa nutritiva que é a base alimentar daqueles gigantes amarelados, mas eles não nos deram confiança. Estávamos morrendo de fome, quando Vitor teve a idéia de induzir mentalmente uma criança que almoçava logo na nossa frente. É claro que funcionou, mas a mãe dele não gostou nada. Caminhamos por horas até chegar a uma nascente onde matamos nossa sede. Segundo Carlinhos, estávamos perto do local onde Carlos Eduardo morreu vitima de um javali gigantesco. Durante nossa travessia pela comunidade, tomamos o cuidado de só nos alimentar de tubérculos e outros vegetais. Descemos a montanha em ritmo acelerado. Ao chegar lá embaixo, acampamos dentro de uma caverna úmida, onde acabamos por passar a noite. No dia seguinte pela manhã, Vitor tentou nos convencer a descansar por mais um dia naquele refugio. Mostrou o pé direito esfolado e acabou nos convencendo. À tarde, deixamos ele na gruta e fomos caçar. Nem precisamos ir longe. Ouvimos um ruído esquisito e seguimos na direção dele. Escondidos atrás de plantas, vimos aves azuis maiores que perus. Eram mais de vinte. Estavam se cortejando e acasalando. Animais idiotas. Fazendo tanto barulho num território tão hostil. Matamos cinco delas com nossas flechas e deixamos o local.
- Que galinhas esquisitas...
- Veja... Não tem asas. Possuem penas mas não tem asas, Luciano.
- Vamos logo mostrar isso pro Vitor.
É claro que tratamos de assar duas delas tão logo chegamos. Bastava ter comido uma, mas o animais eram tão saborosos que não resistimos. Um pouco de tempero certamente daria um tom de banquete, mas era algo que não estava disponível naquele lugar. Luxos como esse seriam só lembranças se não arranjássemos um meio de retornar ao lar. Ao lado da gruta ficava uma pequena cachoeira, onde nos banhamos na manhã seguinte antes de partir. Chegamos a uma floresta de árvores altas e de copas largas. Algumas horas de caminhada depois, Carlinhos, que já vinha transparecendo uma certa irritabilidade, freou repentinamente, olhando em volta de onde estávamos. Eu já imaginava o que havia acontecido. Estávamos perdidos.
- E agora? Por onde seguimos?
- Em frente, eu acho.
- Você acha?
- O que é que você esperava? Sabe quantos anos eu estive longe desse planeta? Guiei vocês até onde minha memória ajudou. E você... Por que não percebeu que seguíamos pelo caminho errado?
- Você não tem culpa. Eu estou estressado, desculpe. Vamos continuar seguindo em frente, então.
E assim foi até anoitecer. Paramos para armar acampamento e dormir. A geografia do local em nada havia se alterado. Começou a chover, mas as copas altas e fartas das árvores nos ajudaram muito. Na madrugada, ouvi um ronco e acordei, na certeza de que não era nenhum de meus amigos. Sabia que se tratava de um grunhido animal. Olhei na direção de Carlinhos sem mexer muito a cabeça e dei graças a Deus ao perceber que ele já puxava o cão do revolver para trás, ao mesmo tempo em que apontava a arma. Virei na direção em que ele esticou seu braço fazendo pontaria a tempo de ver o imenso javali ser alvejado varias vezes, mas o que realmente o matou foram dois disparos certeiros na cabeça dados à queima-roupa. Vitor somente então acordou, gritando de susto. É claro que não conseguimos mais pegar no sono. Aproveitamos a fogueira para assar parte do suíno e “ensacamos” o que deu pra levar. No dia seguinte, pelo caminho, não falamos de outra coisa.
- Você usou todas as balas?
- Sim...
- Por que não deixou alguma munição?
- Você não viu? Acertei pelo menos três tiros na barriga do animal e ele simplesmente se virou na minha direção e atacou. Se não acerto aqueles dois balaços na cara dele agora não ia estar aqui conversando com você.
- Não trouxe munição extra?
- Não, Luciano... Por acaso eu podia imaginar que ia voltar pra Katáris? Se eu soubesse teria trago uma bazuca.
- E eu, um tanque de guerra.
Após uma semana e meia de caminhada a esmo, chegamos a uma clareira onde havia uma aldeia. Ficamos abaixados, escondidos, observando as criaturas que ali viviam. Eram símios, mas não se pareciam com os já conhecidos Nacacos. Eu sabia que já havia visto seres como aqueles, mas não me recordava em que localidade de Katáris. Possuíam aproximadamente um metro de altura, pelos avermelhados, magros e cotós. Ágeis, porém não viviam em árvores como a maioria dos macacos de seu porte. Exibiam lanças e ornamentos, mas nenhuma roupa. Nos descobriram antes que nos anunciássemos. Gritando como é comum entre os primatas, fizeram um verdadeiro alvoroço, sem se aproximar de nós, temerosos. Decidimos nos afastar, antes que começassem a nos alvejar. Para nossa surpresa, eles passaram a nos seguir a distancia, ainda em êxtase. Carlinhos jogou um pedaço de javali pra eles, que pensaram que era um ataque. Revidaram jogando em nós frutas, pedras, galhos e outras coisas. Quando nos demos conta, estávamos cercados por milhares deles. Várias pedradas me acertaram. Procurei proteger somente a cabeça com as mãos, temendo um traumatismo. Vitor recebeu um pedaço de galho na têmpora esquerda e cambaleou ao meu lado. Fiquei desesperado. Seriamos trucidados em poucos minutos. Não sobraria nada de nós. De repente, fizeram silencio e passaram a olhar em volta, como se tentassem ouvir algo. Em seguida, debandaram. Desapareceram por entre árvores e plantas em silencio absoluto. Apesar de aliviado, sabia que a súbita atitude dos pequenos significava perigo imediato. Sua gritaria havia atraído algum predador. Predador este que nós humanos não conseguíamos ouvir se aproximar, ao contrário do ouvido treinado daqueles símios. Empurrei Vitor para dentro de um tronco oco caído na grama e tratei de também entrar nele, seguido de Carlinhos. Apenas segundos se passaram, quando avistei pelo buraco do tronco sete felinos enormes que chamávamos de dentes-de-sabre. Meu sangue gelou. Eu sabia que se eles nos encontrassem ali, não teríamos a menor chance. Saímos da frigideira pra cair direto no fogo. Sussurrando, Carlinhos me disse que deveríamos correr pras árvores o quanto antes, pois aqueles animais tinham o faro apurado e iriam nos achar ali com toda a certeza. O problema é que a árvore mais próxima estava mais distante que os felinos e eles continuavam se aproximando, lentamente, numa atitude de caçador que espreita a presa. Quando o maior dos machos, que vinha ligeiramente à frente do bando, ergueu o focinho, farejando algo, e se virou na direção de nosso tronco, senti que seria nosso fim. Vitor também havia visto e começou a chorar. Carlinhos disse que não iria morrer daquela maneira e se projetou pra fora do esconderijo, sendo visto pelos animais. Correu com todas as suas forças em direção a uma árvore, sendo seguido pelas famintas criaturas. Percebi que sem querer nosso amigo havia nos concedido a melhor chance que poderíamos ter de sobreviver, desviando a atenção dos tigres para si. Saímos as pressas de dentro do tronco. Percebi a presença de um charco, onde entrei com Vitor, sem fazer barulho, permanecendo afundado nele somente com nossas cabeças pra fora, escondidos por mato que saía pela margem do mesmo. Dali vi quando Carlinhos, urrando de pavor, tropeçou e caiu ao chão. Me preparei pra cena de horror, porém, como muitas outras vezes em Katáris, me surpreendi com o que se seguiu. O tal macho enorme que parecia ser líder ou pai dos outros cheirou todo o corpo de Carlinhos, que se encontrava deitado na grama, com os braços erguidos, pedindo ao animal para não devora-lo. Foi aí que o tigre dentes-de-sabre lambeu seu rosto e começou a se roçar nele, como fazem os gatos de estimação. Não acreditei no que via. Os outros animais passaram a fazer o mesmo. Carlinhos começou a chorar, emocionado.
- Puma.............. Puma................. É você, bichano... É você... É você mesmo, meu gatinho.
Ficamos ali abaixados, até que Carlinhos, seguido pelos felinos, veio de encontro ao tronco. Ao olhar dentro dele, se assustou por não nos ver. Começou a gritar por nós, mas preferimos não responder. Estávamos apavorados com a presença daquelas enormes criaturas. Não sabíamos qual seria sua reação para conosco. Só quando Carlinhos fez menção a partir dali sem nós, respondemos as suas súplicas.
- Estamos aqui.
- Aqui onde?
- Duzentos metros a sua esquerda. Dentro do charco.
- Charco... Que charco. Ah... Aí estão vocês. O que estão fazendo aí?
- Está brincando?
- Vamos... Saiam daí.
- De jeito nenhum. Ele conhece você, não eu e Vitor.
- Deixa de ser covarde... Eles já viram vocês aí. Se quisessem, já teriam pego os dois. Vamos... Ganhamos reforço de peso.
Saí primeiro, mas Vitor só tomou coragem depois que alisei o pelo de Puma, que tomou nossa dianteira, parecendo que queria que o seguíssemos, e foi o que fizemos. Estávamos mesmo perdidos... Nos dias que se seguiram Puma e seus adeptos conseguiram farta caça pra todos nós, além de fazer nossa segurança. Num certo momento, Carlinhos achou ter reconhecido um trecho do lugar por onde passamos. Ele então parou e olhou tudo em volta. Só então percebi também que estávamos na Floresta Clarisse. Anos atrás, a empregada de minha tia havia perdido a vida naquele lugar. Por ironia do destino, um animal da mesma raça daqueles que agora nos protegiam ceifou sua vida.
- Estamos perto do despenhadeiro.
- Sim. Acho que é por aqui. Vamos.
Desta vez, os felinos nos seguiram, e não nós a eles. Ao chegar diante do abismo, a dúvida... Teríamos coragem de saltar? Carlinhos se despediu de nossos tigres de estimação com abraços e apalpadas, depois tampou o nariz com dois dedos, brincando e, sem olhar, pulou de pé. Não acreditei no senso de humor dele diante daquela situação. Nem tive tempo de avisa-lo sobre o crocodilo pré-histórico. Vitor chegou na beirada do precipício para observar a queda de Carlinhos e aproveitei pra empurra-lo, saltando em seguida. Já dentro do rio, Vitor revezava entre engolir água e me xingar. Chegamos em terra firme sem incidentes. Tratei de olhar tudo em volta, me recordando do Megatério que quase me matou.
- Estão vendo aquela árvore?
- Já sei... Animal me contou. Foi onde meu pai alvejou o morcego albino. Está vendo esta margem? Foi onde um crocodilo pré-histórico salvou minha vida devorando o bicho-preguiça gigante que me atacava.
- Não acredito que estamos tão próximos de nossos amigos Traquinas. Vitor está chorando... O que é que há com ele?
- Você ainda pergunta, Carlinhos? Ele nasceu e foi criado na Colina dos Traquinas.
Esta é uma prévia. Em breve, todo o conteúdo desta obra estará disponibilizado aqui. Aguarde.